sexta-feira, 16 de novembro de 2018

[Oficina literária 11] O CRÉDITO BANCÁRIO NÃO CONSEGUIDO – conto de Kalunga

Ouviu na rádio, no noticiário das treze, que a China estava a conceder crédito para os agricultores com uma fazenda ou algo parecido, onde se podia colher bastante tomate, couve, laranjas, maçãs, enfim, muito vegetal e muita fruta. Juntou toda a documentação que tinha e, no dia seguinte, foi para o local onde, segundo a notícia, deveria ser entregue.

Posta no local, encontrara uma tremenda fila e lenta, dando a escutar diversos temas da vida angolana: desde a delinquência juvenil, a violência doméstica (que nos últimos tempos não acontecia apenas às crianças e mulheres, mas também aos pais, maridos), a prostituição, a crise económica e financeira, a corrupção nas instituições e, sobretudo, a saída do presidente, a escolha do cabeça de lista do Partido maioritário e as qualidades daquele que foi escolhido.

Os chineses apelavam à calma e garantiam que todos os que ali estavam concorreriam ao crédito, sem discriminação de raça ou cor partidária. Avó Mariana aguardava calmamente a sua vez, porque o terreno que tinha nas zonas do quilómetro trinta, em Luanda, há muito estava abandonado, e ela queria comer também um pouco do dinheiro do gigante asiático.

Ouviu tantas conversas e, como uma das poucas mais velhas que ali se encontravam, ensinou vários missossos1 aos jovens. E enquanto ela contava um mujimbo2, o chinês que se encontrava na porta a fazer o papel de segurança daquele local gritava: «pioritati palos machi veios, amigo». Assim sendo, um dos que atentamente se deleitava com o mujimbo da velha, com uma audição aguçada, própria da juventude, disse: «mamoite3, baza4 já, o chinês está chamar as vengó5». Velha Mariana, que há muito não corria, esticou os pés, meteu-se a passar entre os jovens naquela fila e chegou mesmo a ultrapassar as outras velhas que lutavam para chegar a frente do chinês que continuava a dar prioridades aos mais velhos, em escassez naquele local. 

Velha Mariana chegou à frente do segurança chinês e disse: «papá yetu ué, ó mamá weza kya6. O chinês olhou para a expedita velha e antecipou: «mamã, tchinês no fala potuguês muito». A velha olhou para ele e refilou: «Songa dya mamenu! Maji ó Kimbundu yame é português7!? Tá aqui os documento, posso entrá?» O chinês olhou para ela e disse: «Entla mamã, Mariano». A velha, com um olhar de quem está há duas semanas sem comer, deu uma olhada ao chinês e, imediatamente, entrou para ser atendida.

Dentro do escritório a velha sentia saudades do calor de lá fora e, sem entender o porquê da repentina mudança, de calor para frio moderado, indagava consigo mesma como era possível sair dum sítio quentíssimo e entrar, hoje em dia, numa sala e sentir um frio ameno depois de alguns segundos, enquanto no seu tempo era impensável suceder isso. A velha olhava timidamente os vidros que cobriam as janelas de alumínio e observava os movimentos e empurrões dos jovens que compunham aquela fila que se parecia com o curso do rio Kwanza.

Viajava em pensamentos da sua infância, adolescência e juventude, quando uma jovem chinesa, com os olhos rasgados, pele quase amarela, seios pequenos, de estatura kambuta8, metida numa blusa branca, saia preta e saltos-altos vermelhos, a executiva, a chamou: «Mamã, vem aqui». A velha, atrapalhada, dirigiu-se até à secretaria da jovem mulher e foi atendida. A chinesa verificou a documentação que provava que ela era angolana, anexou-a e em seguida deu-lhe um formulário escrito em Mandarim para levar a sua casa e trazê-lo, um dia depois, preenchido. A velha, contente demais, agradeceu em Kimbundu: «Ngasakidila, monami9». E sem mais querer aguentar o frio inexorável que adentrava os seus ossos, muitos já ofegantes pelo sofrimento da pobreza, saiu daquele escritório às pressas.

Chegou a sua casa, pegou alguns trocados e foi à procura de um estúdio de asiáticos, propriamente vietnamitas, onde faziam fotocópias, encadernavam trabalhos escolares, imprimiam documentos, permitiam os fedelhos jogar através dos computadores, digitalizavam documentos, enfim, ajudavam aqueles que eram analfabetos eletrónicos ou aqueles que de informática entendiam, mas, quando não tinham pachorra, procuravam um chinês nesses espaços em certas necessidades de uso de um computador, uma impressora e a internet.

Quando chegou ao estúdio de um asiático (para ela, todos os asiáticos que tinham estúdios eram chineses) pediu ao suposto chinês que traduzisse o formulário em português, mas este, que só estava em Angola há quase três meses, não entendia patavina de mandarim nem de português e pediu ao seu trabalhador angolano, que era um menino de catorze anos, escurinho, com um corte de cabelos à crista do galo para aconselhar a velha a ir a um outro asiático. Ela foi a outro estúdio e o asiático também não compreendia mandarim, só deu o mesmo conselho que o do primeiro.

Para tanto, a velha andou em estúdios vizinhos e circunvizinhos da sua casa, mas não conseguiu a tradução. E como os pés já lhe doíam e a noite se aproximava, decidiu voltar para a sua casa sem que, tristemente, chinês algum encontrasse e traduzisse aquele formulário que seria o seu baluarte económico e financeiro.

E antes de a velha Mariana entrar no seu quintal, questionou, com uma voz cheia da vivacidade típica dos angolanos, para que asiáticos, e em particular os chineses e os angolanos que falavam mandarim, pudessem perceber: «Maji em Angola não tem chinês que fala chinês?». MAHEZU10       

Glossário
1missossos: contos, histórias (do Kimbundu)
2mujimbo: boato (do Kimbundu)
3mamoite: mãe, mais velha (calão)
4baza: vai (calão)
5vengó: mãe, velha (calão)
6papá yetu ué, ó mamá weza kya. (frase em Kimbundu)
6nosso pai, a mãe já chegou.
7Songa dya mamenu! Maji ó Kimbundu yame é português!? (frase em Kimbundu)
7vagina da tua mãe, mas o meu kimbudu é português!?
 8kambuta:pequena (do Kimbundu)
9Ngasakidila, monami. (frase em Kimbundu)
9obrigada, meu filho.
10MAHEZU (usado em Kimbundu para indicar o fim de uma história, conto) Ponto final, acabou.
         
SOBRE O AUTOR

Kalunga é o pseudónimo de João Fernando André. Escritor, ensaísta e professor de língua portuguesa e literatura. Bacharel em Letras, Língua e Literaturas em Língua Portuguesa, pela Faculdade de Letras da Universidade Agostinho Neto. Membro da Academia Oeirense de Artes (Brasil). Vencedor, nas categorias de Conto e Crónica, do 26º Concurso Internacional de Poesias, Contos e Crónicas e menção honrosa nas categorias de poesia e conto do 27º Concurso Internacional de Poesias, Contos e Crónicas (realizados pela Academia Internacional de Artes Letras e Ciências, Brasil, RS). Tem textos publicados nas antologias “Poesia Com Reticências” (Pastelaria Studios Editora, Portugal), «5 Sentidos», no Jornal Cultura (Angola), na revista Palavra & Arte (Angola) e na revista eisFluências (Portugal/Brasil).
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