Ouviu
na rádio, no noticiário das treze, que a China estava a conceder crédito para
os agricultores com uma fazenda ou algo parecido, onde se podia colher bastante
tomate, couve, laranjas, maçãs, enfim, muito vegetal e muita fruta. Juntou toda
a documentação que tinha e, no dia seguinte, foi para o local onde, segundo a
notícia, deveria ser entregue.
Posta
no local, encontrara uma tremenda fila e lenta, dando a escutar diversos temas
da vida angolana: desde a delinquência juvenil, a violência doméstica (que nos
últimos tempos não acontecia apenas às crianças e mulheres, mas também aos
pais, maridos), a prostituição, a crise económica e financeira, a corrupção nas
instituições e, sobretudo, a saída do presidente, a escolha do cabeça de lista
do Partido maioritário e as qualidades daquele que foi escolhido.
Os
chineses apelavam à calma e garantiam que todos os que ali estavam concorreriam
ao crédito, sem discriminação de raça ou cor partidária. Avó Mariana aguardava
calmamente a sua vez, porque o terreno que tinha nas zonas do quilómetro trinta,
em Luanda, há muito estava abandonado, e ela queria comer também um pouco do
dinheiro do gigante asiático.
Ouviu
tantas conversas e, como uma das poucas mais velhas que ali se encontravam,
ensinou vários missossos1
aos jovens. E enquanto ela contava um mujimbo2,
o chinês que se encontrava na porta a fazer o papel de segurança daquele local
gritava: «pioritati palos machi veios, amigo». Assim sendo, um dos que
atentamente se deleitava com o mujimbo da velha, com uma audição aguçada,
própria da juventude, disse: «mamoite3,
baza4 já, o chinês está
chamar as vengó5». Velha
Mariana, que há muito não corria, esticou os pés, meteu-se a passar entre os
jovens naquela fila e chegou mesmo a ultrapassar as outras velhas que lutavam
para chegar a frente do chinês que continuava a dar prioridades aos mais velhos,
em escassez naquele local.
Velha
Mariana chegou à frente do segurança chinês e disse: «papá yetu ué, ó mamá weza kya6. O chinês olhou para a expedita
velha e antecipou: «mamã, tchinês no fala potuguês muito». A velha olhou para
ele e refilou: «Songa dya mamenu! Maji ó
Kimbundu yame é português7!?
Tá aqui os documento, posso entrá?» O chinês olhou para ela e disse: «Entla
mamã, Mariano». A velha, com um olhar de quem está há duas semanas sem comer,
deu uma olhada ao chinês e, imediatamente, entrou para ser atendida.
Dentro
do escritório a velha sentia saudades do calor de lá fora e, sem entender o
porquê da repentina mudança, de calor para frio moderado, indagava consigo
mesma como era possível sair dum sítio quentíssimo e entrar, hoje em dia, numa
sala e sentir um frio ameno depois de alguns segundos, enquanto no seu tempo
era impensável suceder isso. A velha olhava timidamente os vidros que cobriam
as janelas de alumínio e observava os movimentos e empurrões dos jovens que
compunham aquela fila que se parecia com o curso do rio Kwanza.
Viajava
em pensamentos da sua infância, adolescência e juventude, quando uma jovem
chinesa, com os olhos rasgados, pele quase amarela, seios pequenos, de estatura
kambuta8, metida numa
blusa branca, saia preta e saltos-altos vermelhos, a executiva, a chamou:
«Mamã, vem aqui». A velha, atrapalhada, dirigiu-se até à secretaria da jovem
mulher e foi atendida. A chinesa verificou a documentação que provava que ela
era angolana, anexou-a e em seguida deu-lhe um formulário escrito em Mandarim
para levar a sua casa e trazê-lo, um dia depois, preenchido. A velha, contente
demais, agradeceu em Kimbundu: «Ngasakidila,
monami9». E sem mais querer aguentar o frio inexorável que
adentrava os seus ossos, muitos já ofegantes pelo sofrimento da pobreza, saiu
daquele escritório às pressas.
Chegou
a sua casa, pegou alguns trocados e foi à procura de um estúdio de asiáticos,
propriamente vietnamitas, onde faziam fotocópias, encadernavam trabalhos
escolares, imprimiam documentos, permitiam os fedelhos jogar através dos
computadores, digitalizavam documentos, enfim, ajudavam aqueles que eram
analfabetos eletrónicos ou aqueles que de informática entendiam, mas, quando
não tinham pachorra, procuravam um chinês nesses espaços em certas necessidades
de uso de um computador, uma impressora e a internet.
Quando
chegou ao estúdio de um asiático (para ela, todos os asiáticos que tinham
estúdios eram chineses) pediu ao suposto chinês que traduzisse o formulário em
português, mas este, que só estava em Angola há quase três meses, não entendia
patavina de mandarim nem de português e pediu ao seu trabalhador angolano, que
era um menino de catorze anos, escurinho, com um corte de cabelos à crista do
galo para aconselhar a velha a ir a um outro asiático. Ela foi a outro estúdio
e o asiático também não compreendia mandarim, só deu o mesmo conselho que o do primeiro.
Para
tanto, a velha andou em estúdios vizinhos e circunvizinhos da sua casa, mas não
conseguiu a tradução. E como os pés já lhe doíam e a noite se aproximava,
decidiu voltar para a sua casa sem que, tristemente, chinês algum encontrasse e
traduzisse aquele formulário que seria o seu baluarte económico e financeiro.
E
antes de a velha Mariana entrar no seu quintal, questionou, com uma voz cheia da
vivacidade típica dos angolanos, para que asiáticos, e em particular os chineses e os
angolanos que falavam mandarim, pudessem perceber: «Maji em Angola não tem
chinês que fala chinês?». MAHEZU10
Glossário
1missossos: contos, histórias (do Kimbundu)
2mujimbo: boato (do Kimbundu)
3mamoite: mãe, mais velha (calão)
4baza: vai (calão)
5vengó: mãe, velha (calão)
6papá yetu ué, ó mamá weza kya. (frase em
Kimbundu)
6nosso pai, a mãe já chegou.
7Songa dya mamenu! Maji ó Kimbundu yame é português!? (frase em Kimbundu)
7vagina da tua mãe, mas o meu kimbudu é português!?
8kambuta:pequena (do
Kimbundu)
9Ngasakidila, monami. (frase em Kimbundu)
9obrigada, meu filho.
10MAHEZU
(usado
em Kimbundu para indicar o fim de uma história, conto) Ponto final, acabou.
SOBRE
O AUTOR
Kalunga é o pseudónimo
de João Fernando André. Escritor, ensaísta e professor de língua portuguesa e
literatura. Bacharel em Letras, Língua e Literaturas em Língua Portuguesa, pela
Faculdade de Letras da Universidade Agostinho Neto. Membro da Academia Oeirense
de Artes (Brasil). Vencedor, nas categorias de Conto e Crónica, do 26º Concurso
Internacional de Poesias, Contos e Crónicas e menção honrosa nas categorias de
poesia e conto do 27º Concurso Internacional de Poesias, Contos e Crónicas (realizados pela Academia Internacional de Artes Letras e Ciências, Brasil,
RS). Tem textos publicados
nas antologias “Poesia Com Reticências”
(Pastelaria Studios Editora, Portugal), «5
Sentidos», no Jornal Cultura
(Angola), na revista Palavra & Arte
(Angola) e na revista eisFluências
(Portugal/Brasil).
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