Prosa

Conto | "UMWE WAYONGWILE UKEMA" / "O FULANO QUE QUERIA FAMA" (sabedoria popular em Umbundu e Português)


Foto: Rede Angola
Umbundu | UMWE WAYONGWILE UKEMA (*)

Kwakala ukwenje umwe wainda lesakalalo, cokuti lotulo ka kwatele. Wainda lokulipulapula ukwenje wu ndeti. "Cilingila nye okuti, ame ndicimumba cocimatamata, letosi lyukema si kwete?! Cilingila nye okuti layumwe ño, vimbo, ofetika ombangulo yokuti nditukwiwa ame?”
Ukwenje wiya ocisokolola swim… okwiya wakwata ocisiminlõ cimwe “culoño”. Wavanjiliya okuti, catete, kuyuna omunu oyongola ukema, okukulihã pi pakasi omwenyo womanu vimbo. Etambululo lyeli okuti: povava! Omo okuti, ndaño mwenle cina oholwa, alopo yinywã ovava.

Cina mwenle okuti ka kwacile ciwa handi, ukwenje mba olimba vonjila yokocisimo (ale onjombo). Eci apitinlã vali, ka suminle: ofetika okuniã. Eyumbu lyocili, halyo lihenlã syõ, pomenlã wonjombo yovava vokunywã. Noke eye wasyapo oluhaku waye. Olondona eci vyakapitinlã lomenle, oco vitape ovava, vyasaña okuti, hayo!, elundu lyeniñã lyekongo. Vokasimbusimbu, olwiya wowo kowiñi. Eci tumõla nye?!

Ukwenje kefetikilo wasanjukile, ndayu ocipango caye catelinsiwa. Pwãi, oku ceya okupitinlã, ema lyolyo ho. La Sekulu yimbo, Soma haye tiyu yayi, wovanjela ovitangi. Oco Nda hem tulinga tuti Soma ocilyangu, yu wanyõlã ocimumba caye? Cilingila nye okuti ukulu wendamba okulonga ovimumba ka citenla, vakwê?!

Osapi yondaka tunõlãpo yeyi okuti: onjila yokusanda ukema ciyongola okuyenda ciwa, momo ukema kuli vo una ka waposokele.
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(*) Olusapo woponjango kimbo lyetu.
Gociante Patissa, vo Mbaka, keteke lyakwim vavali, kosãi ya Kupemba, kuyãmo wolohulukãi vivali lekwim la umosi
www.ombembwa.blogspot.com
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Português | O FULANO QUE QUERIA FAMA

Havia um jovem que andava bastante aflito, o que resultava em insónia mesmo. Não parava de se questionar. “Como é que eu, sobrinho de entidade, não tenho um pingo de fama sequer?! Como é que, na aldeia, nunca sou objecto de conversa?”

Pôs-se então o jovem a matutar… até que teve uma “sábia” descoberta. Notou que, o básico para quem procura fama, urgia determinar onde reside a “vida colectiva”. A resposta foi: na água! Porque até o mais incorrigível dos bêbados bebe água.

Foi pela madrugada em direcção ao poço. E sabia bem o que fazer assim que chegasse. Tanto o sabia como o fez: defecou ali mesmo. Certificando-se de ter expelido bosta em volume (e fedor) suficientes para os fins publicitários que se propunha, cuidou de deixar ali a sua alparcata. Algum tempo depois, foram chegando, uma atrás da outra, as donas de casa, na tradicional missão de acarretar água. A palavra espalhou-se à velocidade de cruzeiro.

Satisfeito da vida estava o jovem, que se (ou)via na boca do povo pela primeira vez na vida. Mas pouco durou a alegria, porque se começou a questionar até que ponto o regedor não seria bruxo e passado o mal para o sobrinho. De outro modo saberia impor autoridade de encarregado em relação ao sobrinho.

Moral da estória: na procura da fama alguma moderação é necessária – é preciso não procurar a cadeira com o cú – pois nem toda fama é positiva.
(*) Contos contados nas fogueiras da Nossa Terra.


Gociante Patissa, em Benguela, no dia 25 de Maio de 2016
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Crónica | PUBLICIDADE NÃO TEM HORA NEM IDADE CERTA (*)

Riram-se dele, como nunca se devia rir à custa de ninguém. Ele, a muito custo, não soltou disparate algum.


E foram-se rindo, de tal forma que parecia nunca mais terminar. Ele, só raiva no peito. Era um dia com tudo a correr muito bem no quintal. Os mais-velhos, como sempre para celebrar a vida, andavam embalados naquele dialéctico lamentar por isto e aquilo, ladainhas que retiram do foco qualquer mais-novo ali presente. Não é que um olhar fora de mão foi logo espreitar pelo intervalo entre a carne e o tecido dos calções do rapaz?! Pronto, acabou vendo o que não esperava. Lá estava o que devia estar… e o que não devia também. Uma camisinha envolvendo o instrumento do menino de oito anos apenas. Não se via bem com que adereço mais se prendia o insólito, dada a diferença cronológica entre os diâmetros do homem e da borracha. Mas, também, até aí, não é olhar demais?

«Use a camisinha», vive repetindo a máquina da propaganda, muitas vezes lacónica demais para se lembrar de dizer como e quando. «Use». A publicidade não tem hora nem idade certas. Logo, porquê a chacota, se o rapaz estava apenas a usar como muitas vezes ouve?

Para os demais, era com certeza uma iniciativa precipitada e longe do previsto pela máquina da propaganda. Perguntar, que é bom, nada. Talvez com algum tabu implícito. Só depois de se cansarem de tanta consumição se aperceberam de que não se tratava de brincadeira, antes de uma solução para não fazer xixi na cama.

Quer dizer, se um gajo faz xixi na cama, riem-se. Se passa dia e noite com camisinha, como forma de evitar os raspanetes, riem-se. É chato ser-se puto, não é?!

Bairro da Santa Cruz, Lobito, 1 Fevereiro 2012

Gociante Patissa, 25 Maio 2013. In «O Apito Que Não Se Ouviu», 2015. Pág. 41. União dos Escritores Angolanos. 1.ª Edição. Luanda, Angola . 2015 Colecção: «Sete Egos»
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(*) livro de crónicas disponível na Livraria Sucam e na Tabacaria Grilo, em Benguela, ou na sede da União dos Escritores Angolanos, em Luanda, sita no Largo das Escolas. Mil Kwanzas o exemplar
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Conto | NO REINO DOS RASCUNHOS

O velho estava velho, muito velho, logo doente. Para ser confirmado inerte, só lhe faltava parar o fôlego. Vendo bem, aquilo até podia ter outro nome, respirar é que não era.
Humilhante o que a velhice faz! É que a pessoa já não é pessoa… Onde é que já se viu um rei que usa bacio?! Até em aldeias frequentadas por tigres, hienas e leões, os homens fazem as necessidades longe dos olhos da família: ou atrás da montanha, ou protegidos pela noite. Mas o caso dele era pior, já que desapertava mesmo nas calças, logo um soberano… A sorte era ter bons vasekulu-vonjango[1] e akwenje-velombe[2] que sustentavam as aparências.
Um ano naquela situação, era inevitável a substituição. E o herdeiro tinha de ser alguém com ligação consanguínea ao soberano, seguindo os paradigmas do poder real. Havendo descendentes, a cadeira não passa para outra família. Ora, tendo filhos machos, estava fora de questão cooptar um sobrinho da linhagem matrilinear, que alguns costumam julgar mais legítimo do que o próprio filho, na desconfiança de que só a mulher conhece em bom rigor o verdadeiro autor da gravidez (mas é melhor não irmos por aí, que isso é maka para outros contos que não este).
O soberano tinha três lares e um bom número de filhos mas, na hora de sondar o sucessor, foi prioridade a casa mais-velha, a da primeira mulher. Teoricamente fácil, mas difícil na prática, pois havia dois filhos varões com a mesma idade, porque gémeos. Normalmente, é mais-velho o que sair primeiro, e ganha o nome de Njamba[3]; o segundo é Hosi[4]; o terceiro, caso se chegue a tanto, é Ngeve[5]. Costuma-se contar com a perícia da mãe em colocar sinal para os distinguir. Mas, oh tragédia, ela fez o trabalho de parto sem assistência, tendo perdido os sentidos a dado momento e com eles a certeza da ordem de nascimento.
Urgia o desempate para o êxito do ciclo milenar. Como? E lá surgia detalhe de peso para um dos gémeos que, recordo, nada provava que fosse o Njamba. Tinha, sim, uma namorada, cujos pais gozavam de boa reputação, portanto virtualmente com estatuto de casado. Uma vez identificado o sucessor do Rei, aos conselheiros cabia a missão de o formatar, não obstante a irónica fatalidade de não terem sangue nobre nas veias e, por conseguinte, virem a ser súbditos de franganote.
No ano seguinte, a investidura do Rei-filho durante o varrer de cinzas, sete dias após o funeral. Das três ovimbumba[6], a primeira permaneceu na Ombala[7], junto dos filhos. As demais foram devolvidas em cerimónia própria às respectivas famílias, uma espécie de fim de mandato. Eram muito novas, é preciso dizê-lo, e seria escândalo se viessem a ser cortejadas ali. Isso é que não!
Cacimbos e remoinhos dissolvem lágrimas, todas elas, e amainam corações. Cada colheita traz um novo ano, enquanto nos contos e nas canções ganha a cultura. Conversa é a chuva nos trilhos da enxada para bagres de rios e lagos, a semente, o trabalho, a esperança, enfim, a vida que continua.
Quanto mais deslindasse os bastidores do poder, mais inconstante a sensação de realizado. Nem as duas décadas no trono impediam o Rei de viver, às vezes, o reflexo do bambu, em que o diâmetro aparente é proporcional ao vazio interior. E tinha as suas razões. Uma delas era a incerteza da ordem de nascimento, que ditaria quem dos gémeos o mais velho e sucessor. Teria usurpado a predestinação do irmão? De nada adiantava culpabilizar a mãe, cuja perda de sentidos no momento do parto causara tão fatal incerteza. Incomodava-lhe, por outro lado, e talvez em maior grau, uma máxima em particular: «kapiñala ka lisoki la mwenle[8]».
Em salas pequenas, o professor domina a turma, o que não garante determinar de que bunda vem cada peido. Um Rei domina a aldeia, sem que possa localizar precisamente de que boca vem cada má-língua. E as inúmeras madrugadas de insónia levaram o soberano a pensar, a propósito e a despropósito, até brotar uma estratégia de gestão que viria a revolucionar o Reino. Uma vez achada, coube aos assessores convocarem uma espécie de comício.
Na data marcada, os aldeões iam chegando à praça. Nunca são poucos. Mas já o Rei estava debaixo da mulemba, alimentando pelo facto certa especulação, pois era antes de o sol raiar, a hora combinada.
— Serei breve, ó aldeia do meu sangue. — justificou-se o Rei, um tanto misterioso, ao tomar a palavra. — Tenho andado pelas lavras e não pensem que não sinto a alegria do êxito do cultivo. Ninguém lamenta a falta de peixe do rio nem de carne de caça, é porque também estamos bem. Há dez anos e tal que não amarramos gatuno. A nossa aldeia é um espelho de água. Ainda assim, algo me fere o coração. Desde os nossos ancestrais que, na Ombala, a única morte que conta é a do Rei. Será justo?! São os conselheiros que fazem um Rei ao longo das sucessões. Se assim é, está na hora de os homenagearmos!

A assistência não sabia definir o que sentia, pois nunca ninguém ousou pensar até ali. De modo que custava antever aonde o Rei queria chegar. E este continuou:
— Vamos dar o descanso merecido aos nossos vasekulu-vonjango. Duas vezes por semana, pelo menos, é organizar onjuluka[9] para cultivar nas lavras dos nossos vasekulu. Ouvi também que um deles quer casar mais uma mulher e não tem casa. Então, como sempre fazemos, os homens nos adobes, as mulheres no capim e na água e na comida. É ou não é?!
— Éééééé! — ouviu-se a aldeia em coro, satisfeita pelo nobre gesto, mas foi de pouca dura, uma vez que o Rei continuou:
— O mbwale[10] Kataleko vai cuidar do património! — a plateia reagiu com estupefacção, pois tratava-se de um surdo-mudo. Como prestaria contas, se não sabia ler? — Mbwale Ngandu é o conselheiro! — as palmas não conseguiam abafar os cochichos. O nomeado era cego. Como diferenciaria manhã de tarde, nos dias em que faltasse a quentura do sol? — Mbwale Simbwokemba vai cuidar da ordem! — e lá estava outra vez a aldeia a resmungar. Como aplicaria bofetadas correccionais, sendo ele paralítico dos membros inferiores? Pediria ao réu para abaixar?

Se era impensável contrariar abertamente, não se conseguia porém tomar como normal a nomeação de um conselho da Ombala formado na íntegra por ovifeto (rascunhos na língua Umbundu). Pessoa com deficiência fora sempre vista como ocifeto (obra inacabada). Raramente chegava a casar. O ancião Ndya-Ngenda, que nutria mais amor pelo kaporroto do que pelas suas duas mulheres, era impecável em conversas paralelas, quase sempre inconvenientes. A cada surpresa, um franzir de testa e um provérbio de repulsa. «Ocilema vacitaisa, ka vawutola[11]».
Nos protestos alinhavam também, de corpo e alma, progenitores de rascunhos. Mas virulento como o ancião Ndya-Ngenda, não havia. Veio dele este boato: «Soma wakava okuyeva kowiñi, oyongola okuyevelela kongolo[12]». Especulava-se que ao Rei ficaria facilitada a usurpação do património, a cargo de um surdo-mudo, porquanto, e outra vez recorrendo à força destrutiva de um provérbio, «camanle calinga eti mbanje, ka calingile eti mopye[13]». Ao conselheiro faltariam fundamentos para criticar; «ocili viso[14]». Por outro lado, «U kwendi laye ka kukutila ko epunda[15]», daí o paralítico.
O Rei, inspirado num daqueles sonhos reveladores que só aos nobres calham, seguia apenas a recomendação de ter o mais expressivo simbolismo para o exercício assertivo do poder: de vez em quando, um líder precisa de experimentar a cegueira para superar seus medos, da paralisia para a prudência na tomada de decisões, e fazer-se de surdo-mudo para a diplomacia e cortesia. Era isso.
Os percalços da inovação eram logo visíveis no começo das actividades do recém-eleito Conselho da Ombala. Desde que mundo é mundo que os seres humanos estão condenados a minimizar as suas fraquezas, logo com eles não era diferente. Às vezes, com a força dos copos, ficava a nu o revanchismo. Para o cego, o surdo-mudo era inútil, por colocar gestos no lugar das palavras, como se também conseguisse captar movimentos e arco-íris na largura dos olhos. O paralítico julgava-se o maior de todos, na altura que o busto lhe permitia. O surdo-mudo achava despida de sentido a vida, sem ver nem correr. E da Ombala, a rivalidade espalhou-se pelos rascunhos mais anónimos, crescendo as chacotas e a rabugice por conta do favoritismo das famílias.
Tinha chovido a noite inteira. No kimbo, depois da chuva, aos olhos do velho de chapéu, as gaivotas são outras crianças, com a vantagem apenas de andarem mais perto do céu. Manhãs assim, não há como não serem inspiradoras. O Rei dirigiu-se aos conselheiros:
— As mulheres têm a mania de achar que os homens são péssimos cozinheiros, não é isso?
— É sim, ó mais-velho. — anuíram os três em simultâneo.
— Pois, hoje vai ser um dia diferente. — anunciou o Rei. — Vamos almoçar ohita[16] com ocipoke[17] e efwanga[18]. Cada sekulu se encarrega de uma panela. Temos os ingredientes, a lenha, o petróleo e o isqueiro, as panelas de barro também. Portanto, cada um vai preparar a lareira, de uma pedra apenas. É para essas mulheres nos respeitarem.

No fim da tarde, apresentaram-se ao Rei, envergonhados e esfomeados. Fora um fiasco a incumbência. Impossível cozinhar na lareira de uma pedra de apoio apenas. Perceberam então que o poder é uma panela ao lume, que exige equilíbrio entre as três pedras sobre as quais assenta.
Unindo os rascunhos da Ombala, uniam-se os demais. Desde então, vêm conquistando a sua dignidade. Mas não faltam lugares, neste mundo do agreste, onde tarda chegar o exemplo do Reino dos Rascunhos. E de como a luta nasceu, o Rei não esquece nem recalca.

Gociante Patissa, in «Fátussengóla, O Homem do Rádio que Espalhava Dúvidas» (pág. 33-40). GRECIMA. Programa Ler Angola. Luanda, 2014





[1] Anciãos conselheiros.
[2] Milícias.
[3] Elefante.
[4] Leão.
[5] Hipopótamo.
[6] Viúvas.
[7] Aldeia do Soba grande; sede da autoridade tradicional e tribunal.
[8] Substituto é inferior ao dono.
[9] Trabalho colectivo voluntário.
[10] Ancião (enquanto título).
[11] Que o aleijado nasça na família, não se acolhe de outrem.
[12] O Rei fartou-se de ouvir o povo, agora quer conselhos do seu próprio joelho (ditadura).
[13] Coisa alheia é para ver apenas, não para falar.
[14] Verdade é o que for visto.
[15] Não te prepara a trouxa quem contigo não viaja.
[16] Funji.
[17] Feijão.
[18] Folhas de mandioqueira, iguaria conhecida também pelo nome Kimbundu de kizaka.
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Crónica | O APITO QUE NÃO SE OUVIU (*)

Morreu o Kalú, da maneira mais trágica e ao mesmo tempo digna. Soa irónico falar em morte digna, se tivermos em conta o abismo de uma precipitada partida. Daí que seja normal nos indagarmos se as mortes dignas não podiam ao menos aprender a ser generosas também, a ponto de devolver o ente querido aos seus, como seria justo. 

Graciano António Canhama Sousa, o Kalú, deixava à vista de todos uma postura de orgulho pelo seu emprego. Apito à boca, estrada, caos e sol. Era agente de trânsito, função a que emprestava — e digo como quem o conheceu desde garoto — o dinamismo de aprendiz de mecânico de motorizadas na oficina de um seu parente de nome Karuta, bem como a visão periférica afinada na infinidade estatística das partidas de futebol no pelado, lá no bairro da Santa-Cruz. 

Já liberto da farda, Kalú fazia-se o «Lebo-lebo» da malta, no chão que um dia foi talhão de cana da açucareira 1.º de Maio, lá onde o Lobito se perde na Katombela. Estatura média, aspecto bem nutrido. É neto de Tchikulo, oriundo do município do Balombo, um dos primeiros a ter uma moageira na banda. 

Chamado a atender um cenário de acidente na zona da Baía do Santo António, no passado dia vinte e oito de Outubro, fez-se ao local para as medições e demais perícia, protegido pela sinalização reflectora dos cones e pelo bom-senso dos utentes da via que leva à vila piscatória da Baía Farta. O vazamento de gasóleo decorrente do embate entre as viaturas sinistradas aconselhava para aquele perímetro a mais prudente das velocidades, facilitando em certa medida o trabalho dos Serviços de Protecção Civil e Bombeiros, que cuidavam da lavagem do piso. São aproximadamente vinte e duas horas, fora das localidades. O que vem a seguir é a polícia que tem a coragem de contar, que em mim já pouca força resta: 

No cumprimento de mais uma missão, depois de o agente ter fixado cones, foi surpreendido por uma viatura de Toyota Dina, cor creme, matrícula LBC-18-93, vindo do Sul para o Norte que, aproximando-se ao local da ocorrência, com velocidade excessiva, desobedecendo ao sinal ali fixado, se apercebeu do perigo. E na tentativa de frear a viatura, desviou-se para o lado direito, atropelando mortalmente o Agente de Trânsito, projetando-o para o veículo ora envolvido no acidente. 

Aos vinte e sete anos de idade, o Kalú frequentava o segundo ano do curso de Direito na Universidade Jean Piaget, provavelmente perspectivando já uma carreira na corporação, efectivo que era do Comando Provincial da Polícia Nacional há coisa de cinco anos, com última colocação na Unidade de Trânsito de Benguela. 

Ironicamente, acabou engolido pelo monstro da sinistralidade rodoviária, quando se encontrava justamente a dar o seu melhor para combatê-la a pedido da pátria. Oh, amigo meu de infância, embora eu tenha alguns anitos mais do que ele, no bairro da Santa-Cruz, onde morei entre 1987 e 2008. Sempre que nossos caminhos se quisessem cruzar, não fazia outra coisa, senão tratar-me por um silabado pronunciamento do meu nome completo, seguindo-se um elegante gesto de mão à pala. 

Kalú foi a enterrar [2013]. Todos o sabiam, e foram ter com ele, menos eu que passei o dia enfiado num aeroporto e com o telemóvel inoperante. Paz à sua jovem alma, coragem à viúva e aos dois filhos que deixa. Foi-se o agente de trânsito, inerte ficou o apito, que não mais se ouviu.

Gociante Patissa, Benguela, 11 Dezembro 2015. In «O Apito Que Não Se Ouviu», 2015. Pág. 95-96. União dos Escritores Angolanos. 1.ª Edição. Luanda, Angola. Colecção: «Sete Egos»
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(*) livro de crónicas disponível na Livraria Sucam e na Tabacaria Grilo, em Benguela, ou na sede da União dos Escritores Angolanos, em Luanda, sita no Largo das Escolas. Mil kwanzas o exemplar

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Conto | O TEMÍVEL

— Onde habita gente, há sempre alvoroços. Por isso, existe a polícia, quero dizer nós, para assegurar a ordem! Mas quando uma testemunha aparece em todos os casos a registar, a coincidência estatística deixa de o ser, torna-se pista. E quando essa testemunha é apenas uma assinatura, está instalado o drama. “O Temível”, um autógrafo de misteriosa omnipresença, que mexia com o sono de qualquer um naquela vila — contava D. Judith.

Qualquer coisa contada por D. Judith — que, convém explicar, fazia questão de não mais ser tratada por «Comandante Dith», tendo em conta que, naquele exato dia, ela passaria à reforma — tem sempre um sumo peculiar. Era capaz de pôr um cágado a ganhar maratonas nos jogos olímpicos de atletismo, tal é a forma como abre os olhos, esperneia, ajoelha, bate o murro na mesa, e tudo mais se necessário, para dar vida ao relato! É muito provável que tenha escolhido a profissão errada. Uma comandante policial não seria de prender a atenção das pessoas no fluir da voz, ainda por cima sensual.

Mulher prática e líder de esquadra apaixonada. Peito erguido, cabelo a rapazinho. Daquelas cidadãs que preferem a companhia do braçal, no piquete, ao aconchego do marido, no colchão do lar, sempre que em causa esteja a tranquilidade pública; polícias de corpo e alma. Assim era D. Judith. Repito, ser-me-ia mais fácil, e até justo, tratá-la pelo título «Comandante Dith», mas exigia ser tratada por D. Judith! Acreditava que tal facilitaria a adaptação à vida civil, uma passagem que vinha adiando (desde que, há dezoito meses, recebeu a ordem de despacho), enquanto não desvendasse o mistério do “Temível”.

Pouco depois de iniciado, o relato sofria interrupção. Era hora do café, que a secretária servia com pontualidade orgânica no apertado gabinete, sem falhar uma única vez em vinte e cinco anos. D. Judith, como sempre, agradeceu com uma vénia, enquanto o comandante substituto aguardava, ansioso, pela retirada da secretária e consequente 
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A Última Ouvinte
regresso ao conto “O Temível”. Eu também, de caça-palavras em punho, mal podia esperar — era a minha oportunidade de caprichar num artigo para o Jornal de Angola e ser promovido a correspondente efetivo.
— Uma localidade, não importa quantas ruas possa ter, divide-se sempre em três partes… e meia, digo. A entrada, a saída e o centro. A meia parte é geralmente o descampado onde a coletividade vai fazer as necessidades maiores assim que a noite cair.
— Curiosa esta geografia, não? — disse, sorrindo, o novo comandante.
— São lições do tempo, comandante. — assegurou D. Judith.
— Claro, prosseguindo…
— Um camião, que vinha da Alta, na entrada, perdeu os travões. Matou duas senhoras e um catequista. O motorista era um miúdo de 14 anos.
— Como assim, comandante?! Até onde vai o…?
— Era um aprendiz de mecânico que queria impressionar a namorada. Para ludibriar os nossos agentes, escreveu «EXPERIÊNCIA» num papelão e aplicou no focinho do camião.
— E houve testemunhas?
— Houve e não houve. O que encontramos, a única coisa consistente, era uma assinatura a vermelho feita com spray em jeito de graffiti: “O Temível”. O resto era testemunhos desconexos, aquilo a que chamo de fontes poluídas.
— Quem viria a ser esse temível? — questionou o novo comandante.
— Neste dia, não demos importância.



Uma pausa obrigatória na conversa. D. Judith saía em defesa do seu café, que corria o risco de arrefecer. E como se tivéssemos combinado, estávamos os três com os olhos alcançando o teto, numa obediência à lei do gole.
— Algum tempo depois, uma velha foi violada quando vinha da sentina. Fomos ao local e encontramos a mesma assinatura: “O Temível”.
— E deixou algum rasto, digo, para além da assinatura?
Gociante Patissa
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— Não, comandante. “O Temível” era só testemunha fantasma. Numa operação simples localizamos o infrator. Era o genro da vítima, traído pela escuridão. A esposa estava de parto fresco… e ele queria uma via rápida…
— Então, mas que raio de pessoa era esse Temível, que estava sempre no lugar certo, na hora certa, sem impedir o crime de acontecer?
— Por aí começava a nossa dor de cabeça, como polícias. Fazia sentido associar a assinatura “O Temível” com a onda de criminalidade, nunca antes vista na vila. E justamente nesse impasse, vai-me logo surgir, assim do nada, um cidadão que se arrogava de ter a resposta. Não foram poucas as vezes que me deu uma gana de algemar o gajo, que era um subversivo do caraças.
— Que tese defendia esse cidadão?
— “O Temor a Deus é o princípio da sabedoria”, logo, “eram sinais dos tempos” (Provérbios 19:23 “O Temor do SENHOR encaminha para a vida; aquele que o tem ficará satisfeito, e não o visitará nenhum mal”).
— E com isso, a canção do arrependimento, da fé, do dízimo, certo?
— Se dissesse que não, o comandante acreditava…?! — retorquiu, irónica.
— Pois é, continuando…
— Os crimes continuaram a ocorrer e, como era de esperar, a assinatura “O Temível” chegava antes da polícia. O charlatão comovia cada vez mais seguidores, visto como um profeta que pregava ao vento num mundo de materialistas teimosos. O número de fiéis cresceu até formarem a Congregação do Princípio e Anúncio da Sabedoria (COPAS). Já a nossa reputação perante a população é que andava abaixo de zero. Como diz aquela máxima: “quando acertamos ninguém se lembra, quando erramos ninguém se esquece”.
— Sempre o dilema: como louvar uma polícia que tarda em esclarecer casos de crime, né?
— Ora, nem mais! Mas, com o tempo, a minha intuição alertava: tinha que haver alguma ligação entre o profeta e os crimes.
— Bom, mas ele tinha algum antecedente criminal?
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A Última Ouvinte
— Não por acaso, ele sempre respeitou os semáforos. Mas como entender… a mesma letra, a mesma palavra no local do crime “O Temível”, e o mesmo argumento de sinais dos tempos, o mesmo cinismo do profeta?!
— É… — tentou dizer algo o comandante, mas viu que o melhor era calar.
— E justamente nesse impasse, para usar o seu termo, saía a ordem de despacho para a sua reforma, comandante?! — provoquei.
— Vê lá tu o meu azar. Abandonar o comando da investigação era como se os trinta e tal anos a vergar a farda do interior não valessem a pena. Algumas vezes sentia que estávamos muito perto da verdade, mas quase sempre regressávamos ao ponto zero. E esses avanços e recuos, mais recuos do que avanços, só reforçavam a minha desconfiança: era um crime cuidadosamente preparado, com todos os pormenores para ludibriar a polícia. Quando olhei para o calendário, já um ano tinha ido p’ro caraças… O profeta, este sim, prosperava. Até casa própria de construção definitiva, ele tinha.
— E… um ano é tempo considerável quando os negócios correm bem…
— Negócios. É essa é a palavra. O profeta vendia a preço d’ouro a sua fórmula de fé, tal como os brasileiros vendem sentimentos, os americanos a democracia…
— Essa é boa, D. Judith, até vou usar no meu artigo. — voltei a provocar.
— Fica descansado, que não te vou cobrar direitos do autor até te tornares profeta. — depois de uma curta risada, continuou:
— A casa era só o começo. O profeta, que no princípio usava uma bicicleta, foi aconselhado pelo conselho de anciãos da COPAS a adquirir um meio de transporte mais seguro. Um carro. Fez-se, então, uma ordem de saque. E do Dubai veio um Hummer verde, a cor da esperança, que respondia bem aos desafios da evangelização até aos confins da terra (“E não vos esqueçais da beneficência e comunicação, porque com tais sacrifícios Deus se agrada” Hebreus 13:16). O novo estatuto lançou nos olhos do profeta a ramela das grandezas, tanto que se esquecia de descer da viatura para saudar os irmãos. Só buzinava ou fingia olhar para o outro lado. Foi então que surgiram fiéis descontentes, o que era uma oportunidade para as nossas investigações. E alguns relatos dos excessos do homem eram hilariantes. Conta-se que uma senhora, que se dizia aflita tanto quanto o marido, porque nunca mais engravidava, foi ter com o profeta. O pastor, confundindo os seus limites e numa clara manifestação de ignorância, garantiu: “A senhora vai engravidar hoje mesmo! Vou orar com fervor”. E olha que nem sequer procurou saber de eventuais antecedentes de problemas de saúde, se a mulher estava no período fértil e muito menos se o marido estava presente. Será que a fé era determinante para o surgimento de uma gravidez na data em que ele, o pastor, pretendia? O outro caso foi do cidadão que se queixou da humilhação. Foi visitar o pastor, e este pediu que o irmão se levantasse do sofá para deixar o lugar… que era do cão…


Mas acontece que o Hummer servia também para outros fins alheios à evangelização, tipo sair com raparigas para curtir. Numa bela noite, o profeta foi ao mais discreto descampado da vila com uma menina. Lá estavam em pleno filme, quando foram surpreendidos por dois meliantes armados. Estes recolheram o dinheiro, outros bens, e violaram a menina. Não estando satisfeitos com isso, baixaram as calças do profeta e puseram-no no colo, como as mães fazem na hora de colocar pó talco no traseiro do bebé. Só que foram mais longe. Aproveitaram-se do ânus do profeta também, deixando-o inflamado o suficiente para não conseguir sentar. No final, ainda restava spray para escrever à volta do carro “O Temível”.


Foi então que o profeta procurou a polícia para contar a sua verdade. Ele próprio criara a marca através da instrumentalização de quatro jovens, aproveitando que uma localidade, não importa quantas ruas possa ter, divide-se sempre em três partes… e meia. Logo, o primeiro atuava na entrada, o segundo na saída, o terceiro no centro e o quarto nos lados da sentina, o descampado onde a coletividade vai fazer as necessidades maiores assim que a noite cair. Quatro unidades de spray e uma patrulha discreta chegavam para sacudir a vila com o alarmismo. Infelizmente, para o profeta, a arma fugira do controlo do inventor, a marca “O Temível” ajudava outros oportunistas.


In "A Última Ouvinte", Gociante Patissa & União dos Escritores Angolanos, 1ª Edição, Luanda , 2010 (versão com base no novo acordo ortográfico)

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Crónica | O PAPEL DO MULTICAIXA NA PREVENÇÃO DE CONFLITOS


Benguela, cidade, anda movimentada, como devia aliás andar, a caminho de trezentos e noventa e seis anos de existência. É evidente que a data oficial está longe de ser consensual, havendo intelectuais que se indignam por entenderem que, em cada dia dezassete de Maio, festejamos a vitória militar do invasor colonial português, representado por Cerveira Pereira, sobre os nossos antepassados, autóctones Bantu.

Janota, conhecido por doutor muito antes até de tirar a licenciatura, procurava preencher o vazio que tem sido a sua cama, desde que a esposa viajou para a China. Por muito que gostasse e bebesse de filosofia, estava difícil o jejum (devo usar uma linguagem mais ou menos sóbria, já que tenho sobrinhos menores seguindo-me no Facebook). Vai daí que Janota deu um salto ali para as bandas da Sé Catedral, onde se diz haver um bordel. Assim como ao lado de cada direito anda o respectivo dever, pureza e fé têm sempre uma tentação à perna.

Em coisa de minutos, Janota tinha uma rapariga, expedita vendedora de orgasmos simulados e um canto para o labor e o sabor, não sem antes ficar claro o preçário. A menina fê-lo chegar à China por alguns instantes. Ora, completada a viagem, surgia um tipo de conversa mais ou menos imprevista para aquele segmento de negócio. «E agora, como vamos fazer? Posso pagar com cartão?», indagava o saciado, enquanto calçava as meias antes de botar a calça.

A rapariga olhou para ele, como quem diz, caramba!, está aqui um espertalhão. E antes mesmo que ela emitisse uma palavra, o cliente continuou justificando-se: «Sabes como é que é. É fim-de-semana, a função pública pagou. Já circulei pela cidade e cercanias, mas nenhum aparelho tem dinheiro. Mesmo a nível de macroeconomia, honrar os salários dos professores é um caso sério, já que eles não produzem como tal. É um sector nobre, muito importante, mas pobre. Com os militares é a mesma coisa. Não sei como vamos fazer, sabes? Eu gosto de pagar as minhas contas, acontece que não consigo tirar dinheiro do banco, sabes que aquilo enche que nem uma coisa doida.»

A rapariga ouvia, franzindo progressivamente a testa. Pensava por dentro, do tipo, esse gajo não quer com este monte de palavras que no final fique tudo por um crédito sine die, não? «Doutor, pela próxima, quando é assim, avisa antes. Estás a ver se hoje eu não trouxesse o TPA, íamos mesmo se pegar nas camisas. E até não fica bem. Vá, dá lá o cartão multicaixa. Hôko!, assim também querias quê?!»

Bom, ao menos o final foi feliz para o professor Janota, uma vez que a menina, sendo profissional com visão empreendedora, tinha a sua máquina de pagamento electrónico na mesma bolsa em que guardava os preservativos, pensos e lubrificantes íntimos, não tendo sido necessário, como ela mesma disse, «se pegar nas camisas». Como diria o ditado, para um esperto, esperto e meio.
Benguela, 25 Maio 2013
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Gociante Patissa, Benguela, 11 Dezembro 2012. In «O Apito Que Não Se Ouviu», 2015. Pág. 60-61. União dos Escritores Angolanos. 1.ª Edição. Luanda, Angola . 2015 Colecção: «Sete Egos»
(*) livro de crónicas disponível na Livraria Sucam e na Tabacaria Grilo, em Benguela, ou na sede da União dos Escritores Angolanos, em Luanda, sita no Largo das Escolas. Mil kwanzas o exemplar


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Crónica | O ZÉ DO 28, O INGLÊS  E EU NO PORTO (*)

 

Aleija-me profundamente a mentira: a das mulheres, a dos mestres, a dos mecânicos, a dos políticos, a das crianças. Nunca fui, todavia, o primeiro a atirar pedras.

À chegada do interior, tive a felicidade de morar no morro da Quileva. Tem-se vista avantajada do coração da cidade. Cintura verde, a sul, as salinas, no centro, e o mar, a norte. Se desci o morro, foi somente atrás da máquina burocrática para questões escolares. Para lá dos jardins, uma vez na baixa, a cidade sumia, daí o desejo de logo regressar à prateleira. Por exemplo, disputávamos a titularidade de carros que víamos circularem na linha do horizonte.

Em cidades singulares, as portas todas costumam dar em uma só com alma, o porto. Às marés ou aos caudais, faz-se entrada e saída, ao mesmo tempo, o cais. E é este desfile aparentemente desconexo dos navios que adensa na história do meu Lobito o fio.

Com a greve dos professores, foram três meses de tédio, agora no bairro da Santa Cruz, zona com vista limitada, sem o televisor em casa, que por sua vez somava meses no conserto. Tudo levava a crer que o eletrotécnico não despacharia o trabalho sem a paga, posição quanto a nós injusta, porquanto o dinheiro que lhe faltava a ele faltava-nos a nós também. Estamos em 1995, e a presença, às centenas, de capacetes azúis da ONU e demais agências humanitárias ilustrava bem o quadro de penúria que o país atravessava, resultado do retorno à guerra civil entre as forças guerrilheiras da Unita e o exército governamental, com o fracasso da primeira experiência democrática, tendo como mote a não-aceitação pela oposição dos resultados das eleições de 1992.

Não me ocorrendo a posição do pai, decidimos entre irmãos tirar proveito da ONU. Coube-me a missão de juntar a coragem ao meu arrojado inglês e comercializar, tipo zunga, as estátuas de madeira lá de casa. Arrecadaríamos cinquenta e cinco dólares norte americanos, o equivalente a dois salários de professor. Em vão. O televisor já tinha sido extraviado.

O contacto com os capacetes azúis era fruto proibido em certos quartéis. Recordo quando o Eliseu viu o seu negócio confiscado, digamos que de modo ilícito, pela guarnição do Hotel Términus. Mais conversa, menos conversa, prometeu-se subornar o guarda angolano, penhorando o Bilhete de Identidade. Parvo do guarda, já que ficava sempre mais fácil tratar outra via do documento.

Lá conheci o Zé, mais novo e mais alto do que eu. Até em sua casa, no 28 (Zona Comercial), cheguei a beber água. Causava impressão ver-me, baixote, falar «fluentemente» com os estrangeiros, ganhando esporadicamente desde livros, cassetes, a produtos de higiene. Foi o Zé quem decidiu levar-me ao Porto do Lobito, onde esteve naquele dia um navio britânico da ONU. Atleta de basquetebol na escola da Casa do Pessoal, o Zé passava pelo portão sete como água pela garganta. Como entraria eu?

O Zé instruiu-me a dizer ao polícia que iria ter com o guindasteiro Frederico Carlos, meu «pai». O polícia fitou-me, e autorizou. Ainda melhor, disse para voltar a ter com ele, caso alguém me molestasse. Tinha resultado! Antes de degustarmos as iguarias do navio, observei ao longe o guindasteiro. De facto, tínhamos algumas semelhanças, no tom de pele ligeiramente clara e no semblante aparentemente mentalista, enfim.

Hoje, o Zé é um homem feito, fazendo carreira como professor de educação física em colégios. Um dia desses lembrar-lhe-ei aquela emocionante aventura, todavia reprovável.
Benguela, 11 Dezembro 2012

Gociante Patissa, 25 Maio 2013. In «O Apito Que Não Se Ouviu», 2015. Pág. 60-61. União dos Escritores Angolanos. 1.ª Edição. Luanda, Angola . 2015 Colecção: «Sete Egos»

(*) livro de crónicas disponível na Livraria Sucam e na Tabacaria Grilo, em Benguela, ou na sede da União dos Escritores Angolanos, em Luanda, sita no Largo das Escolas. Mil kwanzas o exemplar

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Contos da nossa Terra | UMA VIDA SEM VIZINHOS?


Sobre vizinhança já se falou muito. Ora vizinho supera família, ora só é bom quando não atravessa o muro. É bem um daqueles temas de debate eterno, como o bem e o mal. Via de regra, estão em causa o conflito, o boato, a dívida, a intromissão em assuntos familiares e, já nos últimos tempos, o barulho da música ou do gerador da casa ao lado. Não teríamos mais paz vivendo sem vizinhos? Você já pensou nisso algum dia?

Havia um homem chamado Ferramenta que um dia resolveu realizar um sonho antigo: livrar-se dos vizinhos. Mas como? Foi na procura desta resposta que dedicou bons anos de sua vida a trabalhar duro, poupando ao limite o pouco que conseguiu durante quinze anos. Assim, a esposa só tinha que ir ao salão para tratar da beleza – evitando os dedos da vizinha que ganhava mais um mexerico pela trança; os filhos tinham computador, telemóveis, Internet e todo o aparato possível para fazerem amigos, escusados do entra e sai da vizinhança. Reuniu todo o equipamento de limpeza e higiene possível, deixando para sempre de precisar de mobilizar vizinhos para campanhas de limpeza.

Que não seja possível escolher os pais, avós, irmãos, tios, etc., que gostaríamos de ter, isso é algo com que temos de nos conformar. Cada um nasce e assume os restantes graus de parentesco, como o manda a lei da árvore da família. Não há como escapar. Mas nada mais o irritava do que as refeições atrasadas porque a esposa foi à prosa, os filhos da casa ao lado com lugar cativo à mesa, ou os olhos da rua por cada artigo de valor que o vissem trazer para a casa. Ou não se incluíssem na extensa noção de família alargada do africano Bantu os para-familiares indirectos que são os vizinhos.

Uma vez reunidas as condições, foi ao deserto viver. Casa projectada no isolamento, como sempre quis – sem vizinhos! A distância era por aí quinze quilómetros do seu antigo bairro. Tudo o que se ouvia à volta era o assobiar dos pássaros, o soar do vento e, enquanto tardava o jardim crescer, deleitavam-se observando a variedade de bichos. A vida tinha melhorado, e de que maneira! Afinal, quem é que não gosta de sossego?! Viviam uma paz perfeita até um dia ser invadido por antigos vizinhos numa onda terrível de violência. Do tipo, espancar primeiro, perguntar depois. Tudo porque uma águia que sobrevoava o antigo bairro resolveu roubar um bebé que descansava ao pé da árvore. E então os moradores da aldeia decidiram segui-la. Um tempo depois, e já cansada, a águia decidira largar a presa. Só que – vai-se lá saber porquê – o bebé foi pousar exactamente no território da nova casa do senhor Ferramenta.

– Pois então – indignaram-se os antigos vizinhos – mudaste de bairro é para roubar bebés alheios usando águias? Seu feiticeiro do raio!

Pouco tempo e forças teve o velho Ferramenta para se defender. Sobre ele pesava – e ao que parece para sempre pesará – a incisiva acusação de o isolamento ser só um pretexto para o roubo de recém-nascidos. O grande desafio passou a ser como convencer a sociedade do contrário, já que… querendo ou não, viver é ser vizinho.

Adaptação de Gociante Patissa, 27/05/06. Publicado inicialmente no Boletim “A Voz do Olho” Veículo Informativo, Educativo e Cultural da A.J.S. (Associação Juvenil para a Solidariedade), Lobito, Abril/2007

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Conto A ÚLTIMA OUVINTE

Foto de Nádia Issufo, DW, Frankfurt 2016

Em rádio, o som é o cheiro, a luz, a cor, a forma. O som é tudo. Quando o DJ, tendencioso, despeja músicas sentimentais, para impressionar uma ou várias mulheres que não encantaria com palavras próprias, sabe que é pelo som que o outro lado recebe os recados.
Pela grossura ou magreza da voz concebe-se a imagem do locutor. As entoações completam o resto. Se na locução se fala constantemente «um forte abraço, um forte abraço», os homens começam logo a ver o decote da blusa com os seios saltando cá para fora, as mulheres imaginam já um caenche de camisa desabotoada. Se falam toda a hora «beijinhos, beijinhos, um grande beijo», fica-se logo a imaginar os cantos de uma elegante boca e o batom vermelho em lábios de formato ideal. Todas as pessoas que fazem rádio são bonitas, porque cada um lhes dá a cara que quiser, de contrário não haveria tanta gente apaixonada só pela voz.
Coisa muito rara de acontecer é o caso do locutor Caçule, que vou já contar. Esse Caçule, parece que entrou na rádio com ouvidos de ouvinte, fez o contrário. Em vez de fazer fãs lá em casa, foi logo ele ficar fã da voz de uma ouvinte, que apenas conhecia pelo telefone. Dizia chamar-se Esperança da Graça. Ligava lá do Lobito. Num dia, que até não era sagrado, surgiu a outra no ar e, pronto!, acabou sendo real para o locutor. Dali em diante já não era apenas uma voz ao telefone, era como se ele reencontrasse o pedaço que faltava para completar as peças do xadrez da sua vida.
Bastava o telefone tocar para aumentar o batimento cardíaco do homem. Tal era a saudade! Não se contendo de ansiedade, Caçule lançava olhares de cobrança ao operador até este anunciar pelo intercomunicador o nome do interlocutor. Já não via um operador do outro lado do aquário, via sim um rival sempre que Esperança da Graça surgisse no ar. Como invejava a oportunidade que operador tinha, esta coisa de ser o primeiro a entrar em contacto com os ouvintes! Mas tinha de se conformar. Não se praticava ainda auto-operado na emissora.
O fim de cada programa era início de um novo ciclo de saudades. Um mês. Dois meses. Um trimestre. Já não havia coração que aguentasse o cerco da ansiedade. O locutor resolveu localizar a ouvinte, seguindo o mínimo de cada rasto. Jogava contra ele o facto de não serem permitidas perguntas com segundas intenções durante o programa. Era estagiário e, pela natureza do seu enquadramento na emissora, alvo da supervisão directa do Director. O que parecia ser trabalho leve tornava-se cada vez mais difícil, mais enigmático. Caçule via-se forçado a recorrer às astúcias do tempo de tropa, adquiridas durante as aulas políticas e de contra-inteligência, por muito que odiasse recordar os prejuízos que a vida militar lhe impôs.

* * *

É provável que tenha sido aos nove anos, já que nem ele próprio se lembrava, que começou a lavar a loiça do comando das FAPLA. Por paternalismo, os manpelas passaram a tratar o voluntário pequenote por Caçule. Anos mais tarde viria ser promovido, deixando de lavar a loiça. Passou a municiar os carregadores de G-3.
Há aquele tipo de pessoas que nasceram para estar em desvantagem em tudo o que se metem. Caçule também. E cedo aprendeu a assobiar para dizer os disparates que não podia falar, quando estivesse em desvantagem, claro!
Da mesma forma que não se vê o feijoeiro do nosso quintal germinar, Caçule também foi dormir e no dia seguinte acordou já tropa. Inexperiente e sem passar pela kunga da recruta, ficou na equipa da retaguarda onde aprendeu o trabalho de radista.
Qual cicatriz de circuncisão, o nome Caçule será dele até à morte. Os demais guerrilheiros, nas horas vagas, chamavam-no de «jornalista», só mesmo de abuso, por conta do dinamismo que tinha na articulação das palavras codificadas. E como defesa dizia:
– Um dia’inda vó ser de verdade, vó falar na rádio. Ora viva, ouvintes, camaradas e compatriotas na trincheira… Olha que eu mando uma garganta do caraças!

E, é justo que se lhe reconheça, o rapaz tinha voz! Mas o sonho acabou quando soube que não seria desmobilizado na paz de 1992, mas sim enquadrado no exército único. Ficou triste, mas apenas por pouco tempo. O certo é que ele também não sabia o que haveria de fazer com a liberdade. Nunca conheceu o prazer de acordar relaxado, como qualquer outro jovem da buala. Fez-se homem de batalha em batalha. Cada cicatriz no corpo conta uma história de avanço ou debandada. Vezes sem conta enfiou dentes de alho no ânus para simular febre alta e ser declarado inapto pelo Chefe-Sanitário. Em vão. A execução da estratégia militar dependia muito da sua garganta.
E quando conseguiu adoecer, adoeceu mesmo de verdade! Os maiorais só tiveram uma opção: evacuar o radista e requisitar um outro. O diagnóstico do Chefe-Sanitário oscilava entre forte pneumonia e TB. Numa tipóia improvisada, Caçule foi levado à posição mais recuada, onde aguardaria pelo helicóptero.
Foi nesta ocasião que Caçule conseguiu perceber que o país todo acompanhava o seu esforço pela pátria. Desceu do helicóptero o Chefe do Estado-maior do Exército que, antes de mais nada, quis visitar a caserna do doente. O perfume do maioral cobria um raio mínimo de cinquenta metros. Caçule ainda tentou pôr-se firme e fazer continência. Mas muito mal se conseguia aguentar.
– Deixa-te estar aí!
– Mas, chefe…
– É uma ordem! Determino que continues deitado, a não ser que me queiras desafiar.
– Não, chefe, desculpa. Nunca faria isso…

Era uma ordem que certamente contrariava os seus princípios, princípios que cedo adquiriu na kwemba. Mas, na tropa, quem não manda cumpre. E continuou o alto oficial:
– Então, Caçule, tanto combate levaste nos cornos e uma doençazita de merda te deixa arrumado? Mas passa… Tem que passar!
– É verdade, chefe!
– Se não der para voltar a empurrar capim, o quê que gostavas de ser?
– O chefe é quem sabe.
– Quero resposta inteligente, pá! Como é que eu é que sei? Sabes fazer o quê na vida?
– Primeiro, dar azimutes no rádio de comunicação…
– Sim, isso eu já sei. Tu és radista desde pequeno. Uma outra coisa?
– Disparar, chefe, disparar!
– Tá bom, meu rapaz. Já vi que sabes mazé falar. Vou te levar a Luanda para tratamentos. E se não conseguires morrer, vou te pôr numa escola de jornalismo, a começar por um estágio intensivo. O exército dá-te bolsa.
Muito obrigado, chefe.

Foi mais fácil adaptar-se ao clima pesado de intrigas dentro da rádio do que à agitação de Luanda. A corrupção era outro desencanto da capital. E de vez em quando escapava-lhe um profundo assobio:

Dois caminhos levam ao moinho
O direito passa longe.
Margem do rio é escorregadia.
Na pressa de chegar ao moinho
calcei as alparcatas vigentes
leigo à simbologia dos esquemas do solo
e acabei por cair
sobre os espinhos do rio também.

Caçule continuava à procura de si mesmo, não sabendo sequer os nomes dos membros da sua família. Ao pedir a transferência, Benguela foi a província que lhe saiu na rifa. Hospedou-se na escola de sargentos e continuou com a mesma estrutura de programa.

* * *

Crescia em Caçule a intuição. A ouvinte Esperança da Graça era a chave para desvendar o mistério da sua vida. Tinha que encontrá-la a todo custo, sem levantar suspeitas.
Passo um. Visitar escolas e ler tudo o que era lista nominal nas vitrinas. Mas a questão era o itinerário. Tão eloquente, qual seria o nível académico dela? Esperança da Graça não se encontrava em nenhuma escola do ensino médio, tão-pouco em universidades. Estaca zero.
Passo dois. Lista telefónica, porque através do sobrenome se podia bem localizar. De folha a folha, até chegar à página das Graças onde encontrou seis assinantes. «Que sorte! Uma Benguela, como essa, só cinco pessoas com o sobrenome Graça têm telefone?», julgou, acreditando estar a sorte do seu lado. Já se imaginava, inclusive, a comemorar tal vitória, por mais pequena que parecesse. «Ela tem de ser membro duma dessas famílias», pensou. Curiosamente, todas as casas situam-se no Lobito, sendo que uma na Zona Alta e outra na Zona Comercial pertenciam à mesma pessoa. Ao fim de duas horas, missão terminada. Alvo não atingido.
No programa seguinte, lá estava ela com o mesmo timbre de voz, o mesmo dom de opiniões certas e oportunamente aplicadas. Como perguntar a sua verdadeira morada ou como propor uma amizade fora das ondas hertzianas? Encontrar a resposta, ou o «não é possível» neste caso, não era difícil. Bastava reparar o semblante do Director, do outro lado do aquário, sentadinho ao lado do operador.
Passo três. Caçule passou a fazer caminhadas transversais esquisitas, vencendo dezenas de quilómetros. Sempre desacompanhado. Com um assobio trémulo e profundo. Reduzia o passo ao passar por grupo de moças para explorar as vozes e relacioná-las com a da Esperança. Mas nada conseguia. Como será ela? Clara ou escura? Magra ou gorda? Feia ou bonita? Quando a amizade é através da vaidade do telefone, essas dúvidas são inevitáveis. Mas, pela elegância da voz, servia de consolo imaginar que só podia ser alguém de muito charme. E a beleza crescia a cada dia no imaginário do locutor Caçule, feito detective nas horas vagas.
Passo quatro. Arranjar amigos no bairro em que a ouvinte dizia morar. Costuma calhar que só com simpatias se consegue o que a ciência, a técnica e o dinheiro não podem alcançar. Mas nem isso sequer resultou. «Não, isto se justifica. É perfeitamente compreensível. O bairro é muito grande», dizia sempre de si para si para não se dar por vencido.
No ar o programa. Lá estava a ouvinte Esperança, a graça do programa, apesar de tudo. «E se fosse professora?», indagou-se. As tentativas prosseguiram, com recurso ao suborno e tudo. Primeiro, com alguém da área de processamento de salários na Educação. E só fracassos. Depois, com alguém da empresa de telefones. Aí, sim, descobriu-se o número.
Nda toma! – exclamou em Umbundu, qual caçador acabando de acertar no alvo. – João Tombi, a casa é desse parente! – gritava aos pulos.

«Quem será? Algum parente ou o marido? Não, marido não». Para o locutor, não ajudava muito pensar assim. O nome da rua era «José Samuel», Compão, e não Restinga como ela dizia. «Porque será que ela mente? Mentir? Não! A palavra é muito pesada. Vamos reformular a questão: porque será que o uso do telefone em casa está proibido? Como é que alguém tão inteligente não tem orgulho das suas ideias?». Perguntas mil, resposta zero.
Passo cinco. Rondar o bairro descrito na lista telefónica. Vigiou de soslaio a residência. De cada moça por quem passasse, convém dizer as que tinham um corpo à medida, ansiava ouvir a voz do telefone. «Como perguntar por ela? Com que pretexto? E se ela tiver já compromisso com alguém, um fuzileiro ou comando?», sufocava-se Caçule.
Passo seis. Arriscar. Bateu à porta. Veio ter com ele uma senhora que ia já na casa dos cinquenta anos de idade, mais vinte e tal de vicissitudes:
 – Ela se encontra a descansar, filho, mas deixa só recado.

E chegou o dia em que já nada podia impedir o encontro. A senhora, que o atendera da outra vez, indicou a porta do quarto da moça e autorizou o locutor seguir. Bateu à porta com prudência e uma voz de dentro se ouviu:
– Pode entrar.

A voz do telefone, e agora mais solta, mais sensual. Empurrou suave e docemente a porta, não fosse uma simples falha estragar tudo. Entrou e viu na cama uma mulher tetraplégica, pernas e braços magros-magros de meter dó, entretanto radiando no rosto uma disposição contagiante. Melancolia zero. Moveu o olhar até à região dos seios. Estes, tal como o rosto, imunes à devastação da paralisia, eram a mais bela das paisagens naquele corpo deitado quase inerte, naquela cama. Foi inevitável a erecção. «Que sensação mais estranha agora!», refilou Caçule para si mesmo, mantendo-se insuspeito, enquanto encolhia as pernas para desencorajar a inconveniente saliência na braguilha.
– Olá! Sente-se aí! – acomodou a anfitriã.
– Espero que a minha presença não a perturbe. Não era o que pretendia.
– Não, por amor de Deus!

Quarto rodeado de livros, velas, terço, imagens do menino Jesus na cruz, muitas cores.
– Como conseguiu achar-me?
– Não tenho resistido mais. Tua voz não me sai da cabeça, nem mesmo quando durmo. Às vezes parece que te ouço onde não vejo ninguém. E sofro ainda mais porque não posso marcar um encontro quando falamos, refiro-me ao programa de rádio, porque o meu Director é muito exigente. Qualquer pergunta tendenciosa recebe imediatamente um mau olhar. Aí tenho é que ser profissional. Mas desejava conhecer-te, digo, pessoalmente.
– E agora, valeu a pena lutar contra o destino? Adiantou a aventura?
– Não sei se estive a lutar contra o destino. Sei é que valeu a pena.
– Eu vou lhe contar o meu drama. Mas, por favor, não permito que tenham pena de mim, porque eu mesma não a tenho…

O locutor ouvia, a ouvinte falava. Caçule ficou a saber que ela vivia na cama desde os seus doze anos, ou seja, metade da sua vida.
– Eu não queria que viesses tão cedo. Na verdade, quando o meu tempo de partir chegasse, eu te chamaria. E contigo deixaria a missão de publicar minhas obras, claro, se os editores as julgassem publicáveis. Vivo com a minha mãe, que faz tudo por mim. Quando digo tudo, é tudo mesmo! Sintoniza o rádio e segura o telefone quando entro em linha. Quanto aos poemas que recito no teu espaço, nas horas mortas ela senta aqui na minha cama com um lápis, caderno e borracha. Nem queiras imaginar quantas vezes apaga e reescreve. – rebentou uma inesperada gargalhada, que devolveu um pouco mais de luz ao quarto. – Eu sei que ela sofre, mas sofre mais ainda se não peço. Tive de abrir guarda da minha intimidade. A minha mãe sabe que a vida não me deixou viver a experiência de perder a virgindade, e com ela morrerei. Há doze anos que dependo dos outros, até para tomar banho. Foi difícil e ainda me lembro da minha primeira menstruação, sabes? Custou-me aceitar a ideia de que alguém lava meus pensos sempre que o período aparece.

E no dia em que falou pessoalmente com a ouvinte Esperança da Graça, foi dormir muito mais leve.
Passou a visitá-la frequentemente, mas ela não aceitava oferendas. Dizia que o lado material da vida já não ajudava muito.
A cada dia de programa no ar, o vento soprava a vela da vida do rapaz. O trabalho dele foi sempre falar, e visto dessa forma continuava sendo falar, mas agora era diferente. Era como se dirigisse a chuva para recuperar um terreno infertilizado pela pólvora.
Muito tempo passou, seis meses por aí, até Caçule receber a pior notícia:
– Alô! – era a mãe da moça.
– Está sim, minha senhora, bom dia.
– A tua amiga partiu para o Senhor.
– O quêêê?
– Sim. Faleceu há duas horas. Acabamos de lhe dar o banho, e assim…
‘Tá, vou já aí ter! – interrompeu para poupar a senhora.

Não levou mais de meia hora para chegar ao local do óbito. Era como se a rua tivesse morrido também, porque não se pode dizer que haja vida numa rua onde, em manhã de sol bem-humorado, faltem crianças jogando à bola com balizas improvisadas de pedras, latas e chinelos.
No quarto da falecida. Caçule parou quieto. Nos lábios dela ainda aquele sorriso sensual. Observou demoradamente o rosto, esperando que talvez os olhos abrissem de súbito, que tudo fosse uma mentira. Só uma mentira faria sentido. O toque no ombro, que levava já vários minutos, repetia-se cada vez mais intenso. Como que a despertar de um sono, reagiu virando à direita o pescoço semi-anestesiado. A mãe da Graça tinha algo inadiável.
– Toma isso, é para ti. Ela é quem escreveu. – ambos sabiam o que se queria dizer por «escreveu isso». – E me pediu para lhe entregar, filho.
– Obrigado, mãezinha! – recebeu o envelope com imensa ansiedade.

Caro amigo, isto é quase uma carta para ti,
Parto para outro mundo confiante. Apesar de ter tido uma vida com duplo esforço, tive sempre a cabeça erguida. O Senhor sabe o que faz. Obrigada pelo que soubeste ser para mim, mas não lamento não te ter conhecido antes. Meu verdadeiro nome é Marta Domingas. Sempre esperei pelo momento de ir descansar junto do Pai, aguardei pela graça. Por isso assinava “Esperança da Graça”.
Chegou o tempo. Lembra-te: no meio de tudo o que fui incapaz de fazer fisicamente, a vida me ensinou a descobrir o que podia fazer com os recursos que me restavam, usando o poder da mente. Se não é possível pular, sempre dá para rastejar com segurança. Por isso a minha vida não foi só pranto. Quis ter, e consegui, momentos de felicidade, os quais não levo comigo na esperança de que alguém os virá precisar. Não veja só um mal na supervisão por vezes “chata” do teu Director. Vê também o bem de mereceres a atenção dele (e do teu padrinho do exército). Acabou a guerra e precisamos aprender a viver, de verdade, bem, de maneira normal. E muito traz o futuro, só há que seguir aprendendo. Talento é trabalho.
Não me sinto menos tua amiga só porque te deixo para sempre.
Marta Domingas
“Esperança da Graça”.

Presenciava, inconformado, o funeral. A poucos passos do túmulo, um atraente vaso na cabeceira de uma campa de humilde aparência saltou-lhe à vista. Seria natural ou artificial? Agachou-se. Arrancou uma folhinha. O verde húmido entre o polegar e o indicador, ao esmagá-la, respondia: «natural, claro!». A planta, sem lhe dizer há quanto tempo não era irrigada, só mostrou que tem sobrevivido no meio de outras plásticas em vasos cheios de água. E a conversa com as flores não mais parou, o locutor Caçule ficou maluco.

Gociante Patissa (In "A Última Ouvinte". União dos Escritores Angolanos, 1ª Edição, Luanda , 2010

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Conto | UM NATAL COM A AVÓ 

À memória da tia Adelina Mbali Manuel Patissa

Velha-Mbali encontrava-se a repousar no cadeirão da varanda desde a sua chegada. Confundiam-se, no bocejar, os solavancos da viagem e os restos do sono de quem madrugou para apanhar o primeiro autocarro intermunicipal da SGO. As pausas prolongadas e a economia de palavras eram parte da recuperação do efeito dos vómitos. A anciã teve o incómodo já previsível de usar saco plástico para lançar, foram três vezes nesta viagem de setenta quilómetros para ser mais preciso, uma fatalidade que decerto não será digerida nesta encarnação.
Qual sino de boas-vindas, o efeito acústico resultante do atrito entre a loiça e os talheres, enquanto punham a mesa, lisonjeava os ouvidos da hóspede. Chegava também com agrado a fumaça do peixe na grelha, que era a segunda paixão que Velha-Mbali guardava da cidade depois da família.
Velha-Mbali herdou da mãe uma beleza que compensava a estatura baixa do lado paterno. O rosto era a única vitrina para se lhe ver a pele semi-flácida, obra da idade. Usava panos compridos, de arrastar o chão, como manda a tradição. Os cabelos, maioritariamente brancos, salientavam a ligação entre o lenço e o quimone, ambos de tecido azulescuro de pintas brancas. A sorte de nascer imune à cárie era responsável pela capacidade de competir com os netos em matérias de mastigar, fosse o que fosse. Como é claro, empatava também na hora de palitar.
E enquanto a deixavam descansar sob a sombra da trepadeira, aguardava pelo almoço, calada, mas sempre atenta ao mínimo movimento no quintal. Era esta última a característica que os netos maisgostavam nela: ser fértil em análises dramáticas das makas da sua gente.
A fadiga da viagem não duraria muito, cedo seria suplantada pela emoção de rever os netos, agora bem crescidinhos. Bálsamo mais milagroso do que isso seria, aliás, impossível. Sentia-se inclusive rejuvenescida ao ver a neta caçula, sua chará por sinal, com mais de dez anos. E isso era suficiente para se dar conta da longa ausência na vida dos seus entes, pelo menos fisicamente. Mas para além do desconforto com as viagens por estrada, infelizmente a única via, Velha-Mbali considerava improcedente o convite de viver a beira-mar. E exigia que se respeitasse a sua posição, vontade que resultara com os adultos, mas não com os netos, que eternizavam o debate.
— Ó avó — rompeu o silêncio Waldemar, o primogénito —, a avó veio para ficar já, não?
— Não, kanekulu… Avó vem comer só natal!
E a conversa ainda continuou após o almoço. Para convencer Velha-Mbali a optar por uma vida mais relaxada, os netos esgotaram todos os argumentos de vantagem da cidade sobre o campo. Ao fim de várias horas de debate, por sua vez carregado de mimos no colo e paternalismos de vária ordem, sentenciou Velha-Mbali:
— Omwenyo Okulima, olohombo ovyo vilia opapelo.[1]
Convencidos de que a sua forma de ver a vida era a mais acertada, os netos matavam-se de rir aos exageros da avó que, por sua vez, também se divertia rindo, com agradável malícia, da ingenuidade deles. Mal cabia na cabeça da anciã que alguém maior de doze anos viva dependente dos pais, quando no campo seria capaz de gerir a sua própria lavrinha. Os netos, ajudados pelos pais, chegaram ainda a sugerir que, como meio-termo, a avó passasse também o reveillon. Mas ela era boa a refilar:
— O quê?! Se dia da família é dois dias após o natal, o ano novo é como?!
Era propositado o trocadilho, pois que lhe custava digerir as ausências dos chefes do lar, que andavam de prevenção, o pai na marinha e a mãe no controlo aéreo da aviação civil, só regressando ao lar no dia 27 de Dezembro. E no dia da partida, houve mais alegria do que tristeza. Com a presença da avó, o natal daquele ano foi diferente.
Todas as vezes que veio à cidade, Velha-Mbali se deparou com deselegantes surpresas, mas a desta vez, batia seguramente todos os recordes. A anciã chegou mesmo a tossir de choque ao cruzar com miúdo de doze anos apenas, não mais do que isso, girando a cidade para cima e para baixo com cuecas e sutiãs de mulher adulta no ombro a gritar: «arreou, arreou no negócio, é a última zunga do ano!!!»
E como a ousadia é a alma do negócio na zunga, o rapaz abordou-a insistentemente, para não dizer chatamente:
— Minha mamoite[2], arreou na tanga; olha “mónica”; táqui surtião… Velha-Mbali ainda tentou fingir indiferença, mas não aguentou.
Arremessou, com toda a violência, o galo de raça contra a cabeça do adolescente:
— Vai faltar respeito na tua mãe, que não te deu educação!!!
O zungueiro, que nunca vira tão intempestiva reação de potencial cliente, logo uma “mamoite”, meteu-se a correr. E no máximo da sua quilometragem! 
E devia ter uma cabeça muito rija mesmo, o zungueiro, já que o impacto da pancada fez rebentar a corda que imobilizava as patas do galo. Este, que não imaginava as fêmeas que por ele esperavam para reprodução lá no kimbo, meteu-se em fuga no frenético trânsito urbano em hora de ponta. Era ver o desespero da anciã diante do risco de perder o animal. Isso é que nunca! Eis que arregaçou o espírito, e lá ia atrás do galo, ela que também já não tinha lá muita juventude nas pernas. De repente… — puapualakatá, pumbas! — acabava de ser atropelada por um kupapata, que vinha em sentido contrário.
— Netele, a njali, ndakapele okuteta onimbu[3]
— Amõla wange, watopa muele cokuti vetapalo omo oteta onimbu?![4]
— Vangecele, mamã[5]… — suplicava o kupapata, enquanto se levantava do chão e inventariava os danos.
— Mbi cakulimba okuti olikondakonda opitaela?![6]
O kupapata de imediato ligou para o serviço de bombeiros, que localizou a família e levaram Velha-Mbali ao banco de urgência. Algumas horas mais tarde, estava aplicado o gesso. O kupapata tinha muitos danos, a começar mesmo pela compra de outro galo de raça — regressar de mãos a abanar é que Velha-Mbali não aceitava de modo algum!
Conscientes de que o pior havia passado, os netos partilharam com a avó a alegria de saber que, finalmente, passariam juntos o reveillon. E a velha ainda conseguia fazer troça da própria perna engessada:
— A maka é que na cidade metem perna branca!!!

In «A Última Ouvinte», Copyright © Gociante Patissa & União dos Escritores Angolanos. 1ª Edição: Luanda, 2010

[1] Viver é cultivar. Comer papéis — ou seja, dinheiro — é coisa de cabritos
[2] (calão) mãezinha
[3] É desculpar, minha mãe, a intenção era fazer corta-mato...
[4] És tão parvo assim, meu filho, que queres corta-mato na estrada?!
[5] Perdão, mãezinha
[6] Esqueceste que quem contorna também costuma chegar?!

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NÃO TEM PERNAS O TEMPO (fragmentos)


Perdido e Veremos lamentavam-se, ignorando que os funcionários públicos coleccionavam meses de salários em atraso. Os camponeses de subsistência arriscavam o pouco tutano, mas lá vinham os ladrões, quantas vezes mais robustos, colhendo com pás o que um dia se cultivou com enxadas. A fome nunca foi boa professora de ética nem de estética.

Veremos e Perdido recorriam à combinação dos instintos da criatividade gastronómica e nutricionismo. Aos domingos de tarde, quando havia pouco movimento nas lavras, carregavam na pasta diplomática uma frigideira e palitos de fósforos. Aleatoriamente escolhiam uma lavra, onde faziam pipoca de sementes de girassol ou de bagos de quiabo, estes últimos rijos como os próprios dentes.
(…)
Depois surgiram as cozinhas humanitárias do PAM, que chegaram a ser o céu de muitas famílias. O problema é que as filas eram muito longas, e mutilado fica cansado de tanto aguardar com uma só perna. Perdido tinha que partilhar o pouco que recebia, sem esquecer que, pela ordem alfabética, até chamarem os da letra P, a papa chegava já fria.
(…)
Como se isso fosse pouco, havia esporadicamente cadáveres à beira da estrada, aguardando pela intervenção dos serviços comunitários e o tractor de recolha. À primeira vista, havia mais vida em cadáver do que no homem da recolha.

Certo dia, António Veremos e Grito Perdido decidiram forçar um encontro com o Delegado Provincial da Secretaria de Estado para os Antigos Combatentes e Veteranos de Guerra. 
(…)
Postos lá, e após várias horas pressionando a secretária em como não deixariam para outra altura, o Delegado recebeu-os de pé, a despachar, no corredor. O anfitrião era kambuta, de uma barriga que teimava em esticar a balalaica, vinco de gume nas calças, sapatos quadrados bem reluzentes, risco no penteado, pente no bolso da camisa, enfim. E saltava à vista o brilho oleoso no rosto do mwata, indicador de que a vida lhe corria bem. O Delegado pediu mais paciência, havia coisas mais urgentes do que a preocupação de dois indivíduos, pois atendia os nove municípios da província. Perdido e Veremos exibiram passaportes de disponibilidade, deixando claro que se tratava de ex-combatentes.

— Meus camaradas, tropa nós todos fomos! Já disse para ter paciência, o processo vai correr os trâmites administrativos normais, o tempo que levar.
(…)
— Mas, senhor Delegado, uma vez que estamos aqui, não podíamos falar já do assunto? — Perdido contestou.
— Delegado, nós viemos de comboio do Lobito, tem que pensar nisso… — António Veremos acrescentou.
— Alto aí! Tu não me mandas, eu sou superior hierárquico! Aliás, vê-se bem que nunca foste tropa mazé, senão batias a pala antes de me dirigires a palavra. Não entendes de disciplina militar e me apareces aqui com passe de desmobilizado de gabinete?

Veremos olhava o Delegado e via as infernais troças de Zé do Norte. E ali, — tomas! tomas! tomas! tomas! — quatro valentes muletadas da cabeça. Quando a guarnição entrou, já o chefe estava desmaiado, a sangrar. O agressor era levado à cadeia.

Gociante Patissa, in «Não Tem Pernas o Tempo», União dos Escritores Angolanos. Luanda, 2013

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fragmentos do conto VELHO BATALHA E A BICICLETA QUE NÃO SABIA
CORRER


Santa Cruz ajusta-se à coreografia da máquina. Muito do que era do bairro, hoje é de alguém. Sorte a nossa que a poeira seja impossível de privatizar. Graças a ela, agora menos umbilical e com mais salitre, dá para colher o tempo, polido pelos sentires e dizeres daqui. Um destes caminhos era o do «avô» Batalha, que andava literalmente com a bicicleta na bíblica rotina «casa-trabalho-casa».

Batalha, promovido pela força dos brancos cabelos a avô (da comunidade inteira), foi, até finais da década de noventa do século vinte, o segundo bakongo mais famoso (há quem o ache cokwe), somente suplantado pelo professor Carlos. Este último deleitava a criançada com a sua pronúncia algo franco-abrasileirada (ass bananass… ass crriancasss). Já volto a falar do velho Batalha e sua misteriosa bicicleta, mas desconfio que você se estará a indagar se não há protagonismo feminino na história do meu bairro.

Abro, então, parêntesis para partilhar dois casos (talvez os mais representativos). Quando conhecemos a «tia» Isa, já ela andava metida na yula. Explico: toneladas de produtos alimentares do exército eram desviadas pela madrugada e comercializadas em residências com quintais insuspeitos, estrategicamente seleccionados dentro de um circuito. Calhava de vez em quando um ou outro flagrante, logo cadeia para o dono da casa, nunca tendo ocorrido com ela nem com o marido, de longe menos famoso. Conta-se que certo garoto foi fazer traquinices no território da Sra. Isa, que atirou:
– Você foi educado no sovaco da tua mãe!

O insulto rapidamente chegou aos ouvidos da mãe do ofendido, que não tardou em ir pessoalmente devolvê-lo, trazendo cá para fora uma parte nebulosa do passado da endinheirada:
– Mana Isa, quem és tu para me insultares?! Nós te vimos chegar, andavas aí a esmolar guelras de peixe… Ou já esqueceste o kalulú de sardinha? – tergiversava, sarcástica e triunfal, ao pronunciar a palavra sardinha, conotada com miséria, por causa do seu baixo valor comercial.

Outra mulher, entre as grandes referências lá na banda, é a tia Esperança. Todas as pessoas podiam ter cães, que ninguém se incomodava com isso. E esses cães podiam mesmo ser agressivos, ninguém ligava, desde que não fossem dela.

Gociante Patissa, in «Fátussengóla, O Homem do Rádio que Espalhava Dúvidas» (pág. 89). GRECIMA. Programa Ler Angola. Luanda, 2014

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Fragmentos do conto A ALMA GÉMEA DO MAR 


Titina distancia-se das de sua geração. Doseia com equilíbrio o romântico e o pragmático. Vê-se em suas feições um remoto cruzamento do europeu com o Bantu. As idas ao ginásio são responsáveis pela definição muscular das pernas, o que bem serviria de moeda, se fosse pela sensualidade que ela se quisesse identificar. Nem alta nem baixa, apenas com a altura suficiente para gerar disciplina no serviço e escapar aos estereótipos.
(…)
Mulheres dinâmicas assim só têm um problema, a monotonia. Doente, saía-se terrível. Queixava-se de tudo, até do que ia aos olhos de todo o mundo impecavelmente. O corpo médico andava perto de se fartar de tanto queixume, sim, porque a situação dela até não era nada, se comparada com outros casos. «Boa tarde, senhora, como está a nossa disposição, hoje?». Silêncio. Suspiro dorido. Um olhar à volta da sala em jeito de denúncia. «Como estou, doutor? Como vou estar?», retruca. «É o que espero ouvir da nossa amiga», responde-lhe, sorridente, o profissional. «Está mal, doutor. É uma eternidade presa nesta cama, a pessoa até já sonha com o pior», dramatiza. «Não seja por isso, minha cara, é apenas uma perna engessada, quer dizer, seis dias de cama», minimiza o médico. «Seis dias de cama? Como assim? Ai, e as noites não contam?», rabuja. «Pronto, são seis dias e noites», daria o médico o braço a torcer.

(…)
A ilha de Luanda é um lugar com o poder de aproximar a grandiosidade do mar à imensidão gastronómica de cidade cosmopolita. Numa das esplanadas dali, o churrasco servia de pretexto para celebrar aquele dia bastante descontraído, éramos quatro almas refasteladas em poltronas de junco e esponja. Só a Titina teimava em manter-se de pé. Dois convites tinham sido em vão. Estava bem, dizia, como se quisesse alargar o campo dos alongamentos a que havia sido sujeita no ginásio.

Às tantas, algo capturava-nos os sentidos, num silêncio invulgar, que até parecia combinado. Tudo muito rápido a poucos metros, como num filme: dois ilustres desconhecidos saem abraçados do restaurante vidrado, que dá vida às ruinas de uma doca que se esqueceu da idade, passos conforme as ondas algo bravias. O céu, até há pouco cinzento, cai. Ela não corre, ele muito menos. É já fim de tarde. Está frio, incisivo mesmo. Longe do carro, não perto de casa. E beijam-se. Quem se escuda agora é a chuva. O bar tem dessas coisas. E não são poucas a vezes em que a gente volta de lá com algo de algebricamente valioso, dito por gente desconhecida da mesa ao lado.
 (...)

É escusado dizer que a Titina e eu falávamos mais do que os restantes convivas, o que mantinha praticamente intacta a porção de churrasco que nos cabia. Não era só isso, a cerveja, coitada, aquecia na mão. Mas, isso pouco importava no momento. Era evidente o cuidado da minha parte para não incorrer em indiscrição danosa. É como digo, a partir de certa altura, procuramos viver as coisas em sua plenitude: um sorriso disperso, um suspiro cúmplice, uma promessa de carinho, uma ponta de cigarro. Aí a gente se dá conta de estar a caminhar apressadamente para a velhice.


— Desculpa se estiver a ir longe demais, mas gostava de entender uma coisa. Como é que esses cinco anos se transformam em passado?

— Porque teve de ser, meu caro… Lembras-te do que te falei sobre alma gémea?

— Claro.

— Não era só minha, era também alma gémea do mar. Sabes, em dias de sol ardente no litoral, parece ser de meia hora a distância entre nove da manhã e a hora doze. Sim, chovia suor, de tão quente que isso estava. É nesse hiato que me chegou o aviso.

— Caramba! — exclamei, algo desprevenido, ante a tragédia. — Sabia nadar?

— O quê que tem a ver? É o mar que quis ser feliz. Quando chega a hora, parece que não custa largar o chão. Aliás, não sei quanto aos outros, mas este mar daqui é travesti, tem artigo de homem, mas é corrimento de sangue camuflado no azul que se vê…

Gociante Patissa, in «Fátussengóla, O Homem do Rádio que Espalhava Dúvidas» (pág. 95-102). GRECIMA. Programa Ler Angola. Luanda, 2014

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Conto | O HOMEM-DA-VIOLA


Não acontecia de outra forma. Se tocasse no mato, vinham os pássaros ter com ele, aglutinando melodias. Se tocasse numa zona habitada, poisavam os pombos à sua volta, um atrás do outro. Uns achavam que era da voz, outros achavam que o poder estava na viola. Mas como se vai saber distinguir, se ele nunca deixava o instrumento, se não cantava sem dedilhar?

É um gajo fixe, o Homem-da-viola, mesmo que alguns se assustem porque ele quase nunca ri — o espelho é que lhe disse, certo dia, que ficaria feio pela falta de dois dentes logo à entrada da boca. Então, mas é obrigatório rir para ser simpático?!

Sempre renovou, no seu cantarolar de praguejar a guerra, a promessa de visitar a terra que o viu nascer, a comuna da Chila, logo que calassem as armas. Mas o tão sonhado regresso acabou por não ser do jeito que imaginava. A onda de raiva com que o seu povo o expulsou, antes mesmo que se instalasse devidamente e se refizesse do cansaço da viagem, fê-lo abortar a visita. A sua canção não seduzia apenas pombos, atraía também corujas e corvos. E era disso que as pessoas tinham medo.
— Que dom é esse? — reprovou o líder da comuna, temendo desgraça. — Filho da terra traz esposa, cobertor, sal, não me traz azar. Assim é que não!
— Não faço mal a uma mosca, e isso não depende de mim, pai.
— C’os meu uotenta anuji, meu menino, nunca ouvi história bonita de corujas e corvos. É porque esses bicho é veneno. Senão, caté criava, como galinha-do-mato. Se quer visitar tua terra, não toca viola, também não canta.

Como era de esperar, o Homem-da-viola respondeu que não aguentava um dia sem cantar. Apodreceu a paz. Regressou à cidade, onde a sua trova ao menos não era ameaça para ninguém, nem mesmo para os pombos que volta e meia podiam sucumbir à fisga de putos que fantasiavam heroísmos na gula de petiscar borrachos. Mesmo rejeitado, partia um pouco mais fortalecido no seu íntimo. E, talvez por ser artista, ainda via motivos para celebrar, cantando, trovando…

Não há momento mais fértil para valorizar a paisagem à nossa volta do que quando nada há a fazer, além de esbanjar horas na paragem, aguardando pelo meio de transporte. Finalmente aproximava-se um veículo. Ainda bem, para o Homem-da-viola, porque de contrário pernoitaria ao relento. Nem dá para imaginar o susto que pregaria à comuna (e ao líder desta) com um regresso ao anoitecer. Uma vez confirmada a tarifa, o Homem-da-viola meteu-se na carroçaria do camião DAF do kota Avindo, o único meio que desafiava os solavancos do troço. Lá estava ele a trovar durante a viagem, com mais uma lição aprendida: no sucesso de uma viagem, a questão não é a ida, é o regresso.

Estava a trovar certo dia no jardim. Como de costume os pombos o circundaram. A cena era apreciada por uma loira linda rapariga, que tomava café no restaurante perto dali. Curiosa, aproximou-se de caxexe, metade do seu rosto oculta atrás da máquina fotográfica Canon. As sandálias e a mochila não deixavam dúvidas. Era turista, esse tipo de gente que usa as férias para redescobrir o mundo, fugindo envelhecer. Ela tomou a liberdade de puxar a conversa, o que embora não desagradasse o Homem-da-viola, interrompia a trova de vez em quando. Chamou o prodigioso de artista, como nunca ninguém o fizera, e ofereceu-lhe duzentos dólares. Foi com ela que aprendeu que pobre também podia ser turista, e que o melhor lugar no avião era junto à porta de emergência, onde havia espaço maior para esticar as pernas. Bastava localizar o letreiro «EXIT».

O contato com a estrangeira despertou no Homem-da-viola o impulso de experimentar a vida de turista. Aspirava conhecer o país, o novo sonho-consolo para exorcizar a frustração do regresso à terra natal. A província do Namibe era o primeiro ponto. E já via o deserto de Calahari, para ele, o símbolo da liberdade do voo espiritual. Embarcou. Levava nada mais senão a sua a viola. Viu o letreiro «EXIT» e sentou-se. Entretanto, viu-se invadido por um momentâneo apagão espiritual quando se fechou a porta do avião, aquele bicho insensível que vive separando pessoas sem se importar com o pesar de quem vai ou fica para sempre.

Do alto, observava a paisagem. Uma imprevisível sequência de cenários, sem ser brusca nas sucessões. O verde dava lugar ao castanho, solidariamente, a vegetação cedia para o deserto. Benguela ficava para trás. Os rios, que andavam com o caudal alto, pareciam pequenos fios dourados contornando serras.

Nunca sentiu as nuvens tão perto de si, brancas como montes de algodão. Via-se literalmente a voar, o que se confirmava cada vez que discretamente levantasse os pés do piso e estendesse os braços. A larga extensão de areia desértica assemelhava-se a um lençol caqui, sobre o qual dentro de instantes um casal apaixonado partilharia justas doses de orgasmo. Do aeroporto foi direitinho à marginal. Apetecia um peixe grelhado. Ajoelhado. Olhar perdido no zénite do oceano. Pombos à sua volta, gente também.
— O moço é novo aqui, não? — abordou-o uma moça que, à primeira vista, parecia estar há mais de cinco anos sem sorrir. — Já há muito que os pombos não festejam assim, como dantes, por um visitante.
— É curioso, é curioso. — respondeu, enquanto procurava entender o que faria aquela jovem mulher no seu caminho.

A cama é sempre grande para quem dorme sozinho. O que seria dos humanos se não tivessem as dúvidas, com as quais se ocupam enquanto o sono não chega?! E a dúvida do Homem-da-viola, deitado na sua enorme cama solteira de quarto barato de pensão, era uma: a moça da praia. “Como pode ela entender o comportamento dos pombos? O que a faria estar naquela hora, naquele lugar?” Ao mesmo tempo, desencorajava-se também: “Bom, mas a praia é local público, portanto fértil em coincidências”. E veio o sono.

No dia seguinte, o Homem-da-viola voltou à Marginal para falar com o mar, sentando-se exatamente sob o mesmo chapéu-de-sol do dia anterior. Mas não era o único a querer fazê-lo, a moça (dos cinco anos sem sorrir) já lá se encontrava. Chamava-se Isabel. Os outros nomes que pudessem compor seu nome completo continuaram desconhecidos para o encantado Homem-da-viola. Encontraram-se mais vezes, tudo tão rápido, tão intenso, que iniciaram o namoro na primeira semana que se conheceram. Passados alguns dias de namoro, de muita diplomacia periférica, era normal entre eles crescer o desejo. Não há quem não conheça as fantasias da primeira vez. A deles aconteceria por volta das dezasseis horas.

Faltava finalmente meia hora para a hora. Preparou o quarto e foi banhar. Mas ao sair do WC reparou que o céu se fazia escuro. As nuvens anunciavam chuva imediata. “Que raio de desgraça”, sussurrou. E resolveu explorar a biblioteca humana mais próxima, a lavadeira da pensão, que se encontrava sentada mas a viajar nos pensamentos:
— Acha que vai chover?
— Não, são só nuvens! — assegurou favoravelmente a lavadeira, não sabendo as motivações da pergunta. Mas não parou de escurecer, pelo contrário começou a chover mesmo. Por muito que o quisesse, a viola só tinha o poder de chamar aves, não o de travar a chuva. “Por que comigo, meu Deus, hoje, agora?”, desabafou. Foram três dias e noites de chuva grossa e ininterrupta.

Passada a chuva, o Homem-da-viola saiu imediatamente à procura da casa da namorada. Mal conhecia a morada, mas já não aguentava. Eram dez horas da manhã. O sol por detrás das cortinas anunciava o começo de um sábado agitado. Estava Isabel dividida entre a preguiça — que a obrigava a permanecer no quarto — e a vontade — para começar a fazer limpeza. O disco dos “Cafala Brothers” tocava (suave) as esquinas da alma. De repente toca a campainha. A primeira, a segunda e a caminho da terceira chamada, estava ela a girar a maçaneta…
— Surprise, surprise!
— Oi, entra! Então, a chuva?!
— É verdade, a chuva tramou-nos.

Após o matabicho, o Homem-da-viola pediu-a para dançar. Tocou o ombro dela e esta sentiu toneladas de arrepios em queda livre. Segura e confortável, ela encostou-se no peito dele, dela afinal, conforme mandam as regras do slow. Quando deram conta, já estavam a mudar de camisinha pela terceira vez, possuídos pelo suor sagrado. Nisto alguém abre a porta, no caso, o irmão mais novo do falecido marido, que tinha as chaves da casa. Tudo muito rápido, tudo muito à vista. Estava instalada a confusão.

Reuniram-se as famílias para a resolução do problema. Faltava uma semana para Isabel tirar o luto, o que o apaixonado Homem-da-viola não sabia. Isabel era mulher alheia, afinal. O erro tinha um nome: “Ukoi”. E a assembleia chegou mesmo a desatar-se em estrondosas gargalhadas ao saber que a viola era tudo o que o prevaricador tinha de valor. Foi então que, simbolicamente, dada a sua miséria material, ao artista foi exigido apenas o pagamento de uma vaca.

Ficou acordado que a dívida seria liquidada dentro de um ano, passando a acumular a partir daquele dia gorjetas. Tocaria em bares e em praças. E só o tempo responderia se ficaria ou não com Isabel, se continuaria ou não no Namibe.


In «A Última Ouvinte», Copyright © Gociante Patissa & União dos Escritores Angolanos. 1ª Edição: Luanda, 2010
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Conto | O CALENDÁRIO DA VIÚVA 

 
Emanava sossego na sequência dos passos. Previsível, mas nem por isso sem graça. Parava o carro, abria a porta, punha fora a perna esquerda. De seguida, baixava lentamente o som do rádio. Era como se houvesse ali intenção de impor a quem por perto estivesse a Rádio Cinco, o canal desportivo da Rádio Nacional, sua única amiga e confidente.
Saluquinha Táti, 28 anos, era mulher cuja dimensão dependia das circunstâncias, o que torna irrelevante qualquer tentativa de lhe descrever a estatura. As pessoas normais costumam ter dois lados, o de dentro e o de fora. Ela tinha três, um dentro, dois fora. Bonita. Se calada, mansa, submissa. Se abrisse o espírito, outra pessoa se revelava: inconformada, militante, às vezes até com peso acima de bulldozer. É, digamos, isso que inspira quem escreve.
Ocupava a primeira mesa no sentido oeste do Café, pedaço a céu aberto reservado a fumadores. Fumar, não. Daí que escolhesse a cabeceira do vento. «Leite com bolo de arroz», começava assim, para num instante acrescentar, «é urgente». Estava de volta aos espaços públicos, após seis anos confinada na intensa rotina de uma esposa muçulmana.
Esposa e muçulmana, dois estados que se julgavam surreais para Saluquinha Táti. Alguns vaticinavam vida curtíssima para o lar, não sei se por a conhecerem bem ou por pura inveja. Tinha fama de muito criativa na cama, sendo por isso um desperdício andar metida numa relação baseada na inibição do ser feminino. O que faria com as fantasias? Ora, mas aqui também, uma questão: quem garante que viver com um muçulmano estrangeiro, trinta anos mais velho, não era em si a realização de uma fantasia?
Contra todos os pessimismos, ela encaixou-se bem no novo papel, o que veio a ser quebrado pela morte cardíaca do marido. A hipótese de matrimónio por motivação económica deixou de fazer sentido, uma vez que Saluquinha pediu para nada herdar. O carro com que andava tinha outra história. Ela o tinha acabado de comprar à representante, quando o marido lhe vetou o direito de conduzir, dois meses antes do casamento. A especulação passou a ser outra. Indicava-se como causa da morte a incompatibilidade libidinal entre jovem e velho, alimentando-se com isso aquela maliciosa curiosidade.
Saluquinha voltava ao convívio público, uma questão de geografia e casualidade, não de socialização. Andava só. Pedia urgência em tudo: no copo de leite, no engarrafamento, na fila de combustível. Ninguém a levava a sério, nem a mal. Seus maus humores eram vistos como sinal de amor pelo falecido ou, para os mais chegados à psicologia freudiana, pura crise de viuvez, muito popular causalidade. A única vez que se tentou abrir não lhe saiu proveitosa.
— B’o noite, sinhô agente.
— Ainda é b’u tarde, mi’a sinhora, o sol ainda não caiu.
— Posso falar contigo?
— Bom, tem que ser rápido. Estou na porta d’arma, sabes que a UPIP[1] é ao lado do Palácio da excelência Governador. Aqui é praia, movimento, não estás a ver?
— Então, para te facilitar o trabalho, me algema já…
— Não posso algemar assim uma pessoa, sem motivo, como na guerra.
— Então, com algemas não é mais fácil dirigir?
— Nós trabalhamos com moral e cívica. Algema é se há risco de fuga ou perigo.
— Mas, mano, quem te garante que não vou fugir e não sou perigosa?
— Ha! Ha! Ha!, Isso até é azar! Assim vais fazer o quê, me violar, eu, com AK47?
— Eu é que estou a falar então, ó chefe… Você não me conhece…
— Achas que não? Você num é a Saluquinha, aquela mboa da noite, que depois casou com o talibã da cantina, porque o mwadiê tem massa?
— Talibã, não! Muçulmano é outra coisa… Você parece não tem espírito. Fui muçulmana, talvez por aculturação, mas não por corrupção.
— Sinceramente, não sei como uma pessoa da cidade se deixa domesticar por homem que nem sabe a nossa língua… Logo uma gaja como você, de noites e tarrachinha… — Gooooooolo!!! é golo, é golo, é gol — irrompia o locutor pelo bolso esquerdo do peito do agente, onde se encontrava acondicionado um minúsculo rádio-receptor.

Carros e pessoas descreviam a curva que convidava a assistir ao pôr-do-sol à Praia Morena, entre o Museu e a Goa. Impedido de curtir, por razões óbvias, o agente vivia as emoções do jogo de futebol, um histórico dos primeiros, D’Agosto contra o de Maio. Tinha conseguido até então dividir com razoável cavalheirismo a atenção entre a cidadã Saluquinha e a Rádio Cinco, mas vinha agora o momento do golo estragar tudo. Ciente da trapalhada, decidiu baixar o volume e mudar de frequência. Saluquinha acenou, de imediato, em jeito de reprovação. Eram, afinal, duas almas que viam no canal desportivo um escape à política e outras redundâncias que tornavam cada vez mais previsível a agenda jornalística fora de Luanda.
O agente possuía um exemplar do Jornal de Angola, que retomava matéria da Angop, datada de 31 Marco de 2009. E pôs-se a realçar a sua linha de pensamento, com referências soltas à ministra da Cultura e à Directora do Instituto Nacional de Estudos Religiosos, na polémica levantada por angolanas que estariam a ser enclausuradas como escravas por maridos muçulmanos. Não tardou foi o contraponto da interlocutora:
— As mulheres, como os próprios homens, são submissas diante de Alá. Ao marido, cabeça do lar, obedecemos. Ler o alcorão era um sonho que não fui a tempo de realizar…
— Então, porque é que só as mulheres andam amarradas de roupas?
— Gostarias de ver tua mãe, sinhô agente, a andar por aí de jeans, com o elástico da tanga a subir nas costas? — conteve-se para não esbanjar nos exemplos e arriscar em palavras menos apropriadas.
— O corpo de uma mulher é fonte sagrada, o que se passa é fruto da educação para recato e pudor. Se olhar nos noticiários, vais ver, sinhô agente, que há mais problemas com mulheres infiéis, digo não-muçulmanas. Dançar, beber e comer carne de porco, isso, a gente evita, como fazem alguns cristãos adventistas, por exemplo. Olha, está aí.
— E as mulheres têm que ser muçulmanas para vestir decentemente?
— Eu não disse isso. Aliás, me algema já para começar a falar…
— Outra vez, ó dama?
— Sabes, em pequena, uma cena me marcou muito! Uma jovem porca, de animal, fémea de porco, não foi retida antes de estar prenhe nem durante nem no dia de parir. Ao anoitecer, foi parir à varanda de uma obra perto da improvisada pocilga. O proprietário da obra, que muito irregularmente aparecia, apareceu, justo naquele dia, e não se simpatizou com o cenário de sangue, fezes e filhotes no seu chão. Com uma estaca de madeira, o homem tentou escorraçar os animais. A porca, ainda bloqueada pelas implicações do parto, mal se conseguia mover, só mostrava o seu lado feroz para desencorajar a estaca. Mais suja ainda foi a atitude do dono do animal, que vendeu os filhotes todos, poucos dias depois, enquanto os mamilos jorravam, inocentes, em vão…
— Pois é, não sei o que dizer…
— Quando fui à Namíbia com o falecido, achei numa loja calendário que não falha…
— Mas calendário p’ra quê, se o vosso filho já está um homem? Que idade tem mesmo ele?
— Quatro anos.
— Isso de planeamento familiar, entre marido e mulher, é para quem não tem posses. Com os negócios do talibã, o futuro estava garantido. Ou falo mentira?
— Ya…
— Com aquele velho talibã conseguiste viajar para fora até, né?
— Sim, mas viajar é como se volta, não é como vamos…
— Bom, está já a ficar tarde, e essa conversa não tem cabeça.
— Falando ainda da viagem da Namíbia, algo muito estranho vivi, meio sonho, meio recordação. Me vi, de repente, no aeroporto de Luanda, a embarcarmos para o Mali. Tínhamos malianos amigos aqui, mas ir ao mundo deles dava um pouco de ansiedade. É como se já soubesse que caminhávamos para um marco situado na fronteira entre o chão e a última vez. Duas semanas. No dia de regresso, tia do pai da criança não voltou com ela do passeio. Ah… Fim do visto. O avião… Não adiantaram as lágrimas nem os pôros brancos do sutiã, alias, de nada valem, se não comovem. Tudo estava no plano, pela cabeça, claro. Fui parte de um ciclo, a semente à fonte, num meio que não entendi nem me entendeu. Por isso, comprei o calendário da cozinha. Uma vez é tudo. Três meses e quinze dias. O resto foi só esperar pelo funeral. Oh, meu filho! Ganhei. Agora podes prender, sinhô agente, já disse tudo.

O polícia franziu a testa, olhou para o céu com pena e disse:
— Você tem que fazer tratamento da tola, mulher. Não sei que tipo de amor tinhas pelo talibã. E o teu filho?
— Achas que está comigo?
— Como assim?
— Por acaso te disse que aquela porca do parto nocturno na varanda do homem, que até parecia do bem, foi consultada?
— Que te importa a porca, afinal, para tanto?
— Ah! Se os homens ao menos dessem leite…! Me prende já, sinhô agente.
— Você tem que fazer tratamento, mulher. Não sei que tipo de amor por esse velho, que morreu no primeiro treco. Ou se calhar, os evitantes que tomavas secaram a pouca potência já do homem, mas isso não é crime. Não me faz punirem, ainda pensam que estou a namorar no local de trabalho, de braçal. Vai p’ra tua vida!

E ela continuou por aí, a bater contra o vento, ave incólume, até mudar de cidade.
Gociante Patissa, in «Fátussengóla, O Homem do Rádio que Espalhava Dúvidas», 2014, p. 25. GRECIMA. Programa Ler Angola. Luanda, 2014




[1] UPIP – Unidade de Proteção de Individualidades Protocolares.

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Conto A MORTE DA ALBINA

A chegada do médico ao município do Kaliapu representava uma enorme satisfação para todos, menos para o próprio, que só estava ali de corpo. O coração do pobre homem, este, rejeitava a nova realidade, refugiando-se no antagónico ambiente da universidade. Tanta era a dificuldade em se adaptar à vida longe do mar.

Corria o último dos três meses experimentais, que pareciam anos. Dr. Zé Luhaku sentia-se «atirado» num município que não se encontra em nenhuma versão do mapa nacional. No Kaliapu só havia dois dias diferentes, o Natal e o Ano Novo. Os restantes eram todos iguais, sem açúcar e sem sal. Dr. Luhaku via-se «degredado» do seu mundo, sem as notícias, a eletricidade, a água canalizada, o cinema, as farras do fim de semana. O português, a única língua que dominava com perfeição, também era de pouca utilidade.

Só as colunas conseguiam quebrar a monotonia do local, ao transformar em mercado de permuta a única estrada que divide a comuna sede em dois pólos, Kaliapu-de-cima e Kaliapu-de-baixo. Mas isso era coisa rara, tanto mais que a única vez que presenciou tal evento fora por ocasião da sua chegada. Portanto, já lá iam três meses e pouco se sabia de uma eventual coluna em agenda.

Ao seu desconforto juntava-se o pressentimento de que algo de grave estava por acontecer, dada a impertinência do Investigador-Comandante. O IC, como também adorava ser tratado o maioral da polícia, manifestava publicamente não ir com a cara do médico recém-chegado, apesar de não haver motivo aparente. E isso era de intimidar qualquer um.

O IC era uma pessoa que vivia perturbada por cultivar exagerada noção do poder em suas mãos. Os munícipes fartavam-se de o ridicularizar de vários modos. Na irreverência típica da idade, os jovens costumavam decifrar a sigla IC como «Incompetente-Cabrão», e não «Investigador-Comandante» como devia ser. Mas graças a Deus nunca conseguiu, “Sua excelência” o IC, apanhar ninguém em flagrante delito. Exagerado do jeito que era, não se duvida de que daria até em cadeia perpétua.
* * *
Para enganar o tempo, Dr. Luhaku calçava os olondindi e saía então a caminhar. Andar por aí, sem prazo, nem destino. Só andar, como sempre gostou de fazer, para se encontrar consigo mesmo, esquecendo-se por alguns instantes de confirmar se os pés pisavam de fato o chão.

Desde que o experimentou, nunca mais parou. Nesse dia, seguiu o caminho do rio Kuayela, que ganhou das suas águas sempre límpidas o nome. Diz-se que é lá que os anjos bons vão tomar o seu banho.

O capim, agradecido às chuvas, ainda mantinha um aspecto que se confundia com o daquelas plantas de plástico que enfeitam as mesas dos grandes gabinetes e salas de conferência, de tão viva que era a clorofila.

O espírito do Dr. Luhaku vagueava e revivia aleatoriamente conversas que foi tendo desde os tempos de menino, sobretudo as que não faziam sentido na época. Lembrou-se, por exemplo, de certa vez que um maluco, que enlouqueceu de tanto decorar filosofia, criticou a sua opção pela medicina. Por que ser médico, quando sem pedreiro não haveria casa? Coveiro não é boa coisa, se todos morrem e precisam de ser enterrados, ricos ou pobres? Por que ser médico, se sem eletricidade as pessoas ficam apagadas? Não é melhor ser carpinteiro, quando toda gente precisa de conforto? Ser logo médico, quando sem o alfaiate não haveria tanto luxo em esconder as esquinas do corpo? Ser logo médico, quando isso, isso e aquilo…? A longa lista do maluco teve de ser interrompida pela beleza das goiabas que as meninas vendiam bem no caminho. Tão amareladas, tão perfumadas! Agachou-se, verificou a sua condição e dirigiu-se à vendedora:
— Quanto é a goiaba, amiga?
— Tem de dez, tem de cinco, tio. — respondeu com simpatia e timidez.
— Toma! — estendeu uma nota de dez kwanzas. — Aqui está o teu dinheiro.
— De tudo?
— Não. Só quero de cinco.
— Non tem troco. Passa mais amanhã…
— Pode ficar para ti o troco.
— Obrigada, mano.

Continuou a andar na margem do rio Kuayela, como se com ele caminhasse de mãos dadas. A correnteza, suave e transparente, tinha o magnetismo do televisor. O jovem médico fixou o olhar para apreciar a vida do rio. Os peixes, atraídos pela sombra do caminheiro, caprichavam nas fintas e piruetas, como se quisessem dizer “volte sempre!”. Lisonjeado pelo gesto, ia atirando migalhas de goiaba. Os peixes agradeciam disputando a doação.

Rebolava em carnavalesco remoinho a água sob a «velha Kuayela», como era alcunhada a ponte de betão. Fosse ela ser humano, estaria já em idade de reforma.

Bem ao lado, estavam extensas pedras, de um cinzento-escuro, geralmente usadas para lavar roupa ou pisar fuba. Usavam-se raízes espumosas para contornar a carência do sabão, que só vinha com as colunas.

Era de tocar na alma o cantarolar das mulheres enquanto transformavam bagos de milho em fuba limpa. E cantavam as trabalhadeiras donas de casa, sempre bem entrosadas. Mas apesar de agradáveis, as canções nem sempre eram pacíficas. Veiculavam também muita fofoca e escândalos.

O Dr. Zé Luhaku fascinava-se pela magia do rio que, sem sair do lugar, carregava consigo durante séculos os segredos de várias gerações no movimento místico das águas. Se o rio tivesse a maldade de muitas pessoas deste mundo, ainda seria rico só de fazer chantagem. Sabia demais.

O médico sacou da mochila a sua máquina fotográfica de fabrico russo. Tirou uma ou outra foto, mas parou imediatamente. Talvez tivesse percebido que não há melhor fotografia do que aquela que a mente captar. E quando se foi deitar, as memórias do rio bem que foram uma maravilhosa companheira.

Na manhã seguinte, o município acordou profundamente abalado pelo assassinato da filha do kota Mário. Foi encontrada morta no quarto dela — quarto é só uma forma de dizer, ela dormia na cozinha de teto de capim, um anexo da casa grande.

Bloqueado ainda pelo choque, o pai não conseguia largar a catana, o que amedrontava muita gente. Mas era só um medo à toa. Ele nem sequer se lembrava de ter na mão alguma coisa. Os ponteiros do relógio giravam ao contrário desde o exato momento em que encontrou a filha estendida, no hábito que tinha de tirar água do tanque de fibrocimento da cozinha, lavar a cara e madrugar em direção à lavra.

A notícia rapidamente espalhou-se de boca em boca. Ninguém, naquele dia, saiu para caçar ou cultivar. Um grupo de munícipes foi à esquadra da polícia pedir ao Investigador-Comandante o favor de prender o assassino.

Após a peritagem policial ao corpo, feita com o devido exagero burocrático à porta fechada, as mais velhas da família deram o último banho à vítima, assentando a seguir o corpo numa esteira de ondongo. Só a morta sabia a resposta que a polícia e os munícipes procuravam: o assassino, o motivo e as circunstâncias. O rosto cor-de-rosa perdera a luz da vida, restando apenas uma tonalidade mais sombria do que a morte em si.

Mas havia um grupo, não muito pequeno embora sem a coragem de se assumir, que andava feliz da vida com o acontecimento. Esse naipe de apócrifos gostaria de achar o assassino, mas era para dar os parabéns. Por onde passasse, espalhava as suas teses. E foi através de um deles que Dr. Zé Luhaku, desatualizado na sua mania de taciturno, tomou conhecimento do problema:
— Doutor, já ouviu?
— Eu, não! Ouvir o quê?
— Mataram mais uma bruxa!!!
— Bruxa? Como assim?
— Está ver a filha do kota Mário, a menina de cor?
— Referes-te à albina?
— Sim. É ela, a capânica.
— Ser albina é ser bruxa?
— Não! Ela foi bruxar uma pessoa quente, — quente é feiticeiro forte, Doutor — ali foi  apanhada, espancada até morrer. Também ela já não tinha corpo de se bater…
— Tu tens noção da gravidade do que dizes?
— Só assim se explica…
— Ai, então você ainda não tem certeza?
— Doutor, ouça, Doutor, estás só a duvidar porque és novo aqui no município. Então como se explica uma mulher ser encontrada morta no quarto dela, com marcas de espancamento, quando fez serão muito bem e foi dormir e ninguém ouviu gritos?
— Obrigado. Agora podes ir, que por hoje estás dispensado. — foi incapaz de conter a indignação o médico. — E vê se dá algum apoio à família, seu condenador de quem não se pode defender!
— Um dia o Doutor vai me dar razão. Aqui no município há muita bruxa. Morre boi, morre galinha, morre tudo o que é criação. Pessoa já nem se fala. É por isso que a vida no Kaliapu não melhora…
— Vê se aproveita a folga e me dá licença…!

A polícia parecia muito comprometida em satisfazer o favor que lhe fora solicitado. Prender, prender, é fácil, mas quando o criminoso (ou criminosa, podia ser mulher, mesmo que ninguém acreditasse nessa hipótese) não está identificado, é sempre complexo.

Depressa, as notificações foram espalhadas e quase ninguém foi poupado. No posto avançado, o controlo foi reforçado. Um letreiro colocado no meio da estrada dizia:

«Por ordem competente do Investigador-Comandante, a nenhum meio rolante incumbe entrar no município até segundas ordens, sob pena de sofrer medidas implacáveis. Cumpra-se! O nosso trabalho é trabalhar».

Pela gravidade do caso e pela crueldade aplicada, sendo também incomuns barafundas envolvendo albinos — bruxos ou não —, decidiu o IC assumir o processo. Dizia estar tão envolvido, que não restava tempo para dormir ou tomar banho. A verdade, porém, era outra. O maioral evitava enfrentar, na buala, a impaciência dos kaliapuenses. Era como se lhe dissessem, «mostra lá que és homem, IC (Incompetente Cabrão). Apresenta o criminoso, esclarece a situação».

O IC roía as unhas, fumava desesperadamente. Não que fosse para descobrir o assassino, mas para conceber o castigo mais drástico a aplicar. Acendia um cigarro atrás do outro, num golpe tão impessoal que, quase sempre, o cigarro se esfarelava entre os dedos à porta da boca. As bochechas criavam esquisitos papos, de tanta falta de classe. As narinas cuspiam o fumo ao céu com a intensidade de uma locomotiva, kamakovi bem dizer. Trazia o sol sempre a luzir na ponta do nariz, atraído pelo suor oleoso da sua pele de bumbo genuíno, matulão de olhos encarnados e bigode do estilo de chifres de pacaça.

E antes do meio-dia, já muitos suspeitos tinham sido capturados sumariamente. Um atrás do outro, como se de guerra de kwata-kwata se tratasse. Kota Mário foi o primeiro capturado e também o número um a interrogar, sem fazer ideia do que o esperava…
— Entra, compatriota Mário, não há tempo a perder! — convidou o IC.
— Sim, brigado.
— Então, como vai esta disposição depois de tudo?
— Sempre, Chefe IC.
— Mário, diz-me como amigo e eu guardo sigilo. Quem matou a tua filha de cor, ham?
— Non sabe, Chefe IC, também quer saber.
— Quê q’aconteceu até você encontrar o cadáver da falecida?
— Bem… de manhã saí do quarto e já encontrou já assim o morta… o cliança…
— Alto lá! Calma aí! Você usa bacio à noite?
— Sim, Chefe IC, tem bacio.
— Mas então, saiu duas vezes por que fora d’hora?
— Fui fazer maior e menor…
— Foste cagar? Mas a tua mulher, a velha Ndumbila, disse que não tens o hábito de sair de noite… Como é que se explica tua saída fora da agenda?!
— Tinha cikolotola…
— Tinhas cólicas, pá! Qual «cikolotola» esse?
— Er…
— Cidadão Mário, você não gostaria de matar a tua filha? Mataria ou não?
— Não, Chefe, eu não matía…
— Os pais não costumam entrar no quarto das filhas, não é verdade?
— É verdade, sim, Chefe IC.
— Então como é que não foi a mãe buscar água na cozinha, e foste logo tu, como pai?
— Pricissa que tirá áqua condiplessa. Eu non io matar o cliança. — quanto mais nervoso, kota Mário pior acertava no português. – Eu non matía…
— Senhor, Mário, Mário… quando a tua filha nasceu e você subo que, nas complicações de parto, viraram o útero da tua mulher, portanto ela já não pode parir, não foi você quem decidiu atirar o bebé no rio por ser de cor?
— Mas non matei o cliança.
— Eu não disse isso, velho Mário, vamos com calma! Mas anteontem, durante o casamento da filha do mais velho Kacenye, você chorou porque a tua filha já tem vinte anos, está a ficar ultrapassada e nenhum homem se interessa por ela. É verdade ou não?
— É verdade, Chefe IC, tudo pai sente…
— Pensa comigo, velho Mário, por favor! Ponto um. Um pai tem uma filha de cor, raça que nunca quis ter na família. Ponto dois. Fica esse pai a saber que a esposa não poderá nunca mais alcançar. Ponto três. Decide atirar a criança ao rio, mas, para o seu azar, dá encontro com os primos que o impedem. Ponto quatro. A meio da noite o senhor sai duas vezes, mesmo com bacio nas cabeceiras. Ponto cinco. É o mesmo pai o primeiro a descobrir o corpo da filha, quando, na nossa tradição, é burocracia da mulher acordar a filha para varrer. Não te parecem cinco passos certeiros para explicar o crime?
— Chefe IC, eu non matei o cliança. — e rapidamente sentiu na boca o suave gosto salgado da lágrima, que escorregou enquanto falava. — Non matei eu próprio…
— OFICIAL-D-I-A!
— Pronto, IC. — veio a correr o subordinado. — Às suas ordens!
— Recolhe o velho Mário p’ra cela até segundas ordens. Nós aqui só temos um lema: «O nosso trabalho é trabalhar»!

O IC pensava em tudo, menos na hipótese do fracasso. E não cabia em si de tanta imaginação criativa. Era só chamar, aliás mandar e determinar, ou não se chamava IC. Até sorria no vazio do seu gabinete, excitado pela megalomania. Assistia ao filme da entrada do velho Mário por aquela porta e dizer: «sim, IC, eu matei o cliança». Acreditava, na base da sua grande experiência, que até onde as coisas foram, a confissão aconteceria na segunda parte do interrogatório. «Esse crime é doméstico, só pode ser», encorajava-se. Tinha quase a certeza. «Provavelmente o velho andou a meter-se com a filha, já que nenhum homem ia querer. Ou quis pegar à força durante as saídas noturnas e, para a malograda não falar de mais, calou-a para sempre. Claro! É isso! A queima da prova!», convencia-se poisando os pés sobre a mesa, ignorando que executar na teoria não é o mesmo que na prática.

Duas horas depois, o IC voltou a chamar kota Mário:
— Me disseram que, desde que nasceu esta tua filha de cor, você tem língua amarga.
— Bem, chefe…
— Bem, chefe, o quê? Eu sei tudo deste município.
— Desculpa, Chefe, mas você não pode trabalhar com boatos.
— Não te admito, ó Mário, falar assim com um emblema policial, está bem? Estás na sala do único Investigador-Comandante do município. Estudaste o quê para me dirigires esta literatura de palavras? — o IC fazia questão de virar o pescoço como se quisesse confirmar a presença dos passadores nos ombros em gesto de impor autoridade, como era de hábito. Fazia-o com deselegante frequência, de tal forma que se expunha ao ridículo de parecer um pato a beber água ou um cão incomodado pelas carraças. Ainda exaltado continuou:
— Isso alguma vez foi postura, ó Mário, caramba?!
— É desculpar, IC.
— Cala a boca! Desculpa não cura ferida, ouviu bem? Isso de geometria panfletária, aqui não! Tenho vários crimes por esclarecer, e tu me fazes perder tempo? Tu achas que tens competência para me catapultar os nervos, não?! Civil de merda! Desapareçam-me já daqui com esse velho refratário!

E lá estava outra vez o kota Mário a ser empurrado para a cela. Era evidente que o IC nada conseguiria tão cedo com o pai da vítima, mas também seria precipitado mandá-lo em paz. E, nesse ata e não desata, kota Mário viu-se privado inclusive de assistir ao enterro da filha.

Dois dias depois, o processo não tinha avanço nenhum. Tudo estava quase na mesma, tão monótono como o movimento das águas do lago. A única diferença era que a esquadra já não tinha espaço para tantos suspeitos. A lista só aumentava. O IC trancou-se no seu gabinete, fechou as janelas e tudo para mais uma meditação tático-estratégica, no fundo, um truque por ele inventado para poder chorar quando as coisas corressem mal. Mas foi mal sucedido desta vez. Teve de enxugar as lágrimas ao ouvir o toque na porta:
— Mas quem é?
— Sou eu, Chefe! Dami liceça, IC, sou eu…
— Mas «eu» quem? — interrompeu, impaciente, o estratega.
— Sou eu, agente Chanas-do-Leste, IC.
— Ó Chanas-do-Leste, não sabes que quando fecho a porta e a janela é porque estou em meditação tático-estratégica?
— Sei, sim, meu comandante. Mas estou em missão.
— Entr… — antes mesmo de concluir a última sílaba, ouviu o ranger da porta. Ninguém conseguia dizer se era por distração ou se funcionava como sinal de alerta, mas a porta do gabinete do IC, mesmo quando empurrada com o máximo cuidado, fazia sempre aquele barulho irritante de dobradiças sem manutenção.

Ainda para reprovar a ousadia de ser interrompido pelo agente Chanas-do-Leste, o IC banalizou a iniciativa:
— Mas qual é a maka com esse civil?
— Também é suspeito, IC.
— Mas suspeito de quê mais agora, ó Chanas-do-Leste? Eu não tenho tempo perder. O meu trabalho é trabalhar, faço-me entender bem?
— Ele pode ter uma ligação com o autor do homicídio…
—– Como assim?
— Eu sou inocente, Chefe. — interrompeu o acusado. — Eu juro…!
— Cala a boca! — o IC fez valer a sua voz de mando. — Eu não perco tempo com civis quando tenho incumbências caóticas, tá ouvir bem?
— Chefe, é assim!, eu entrei na cozinha, né?, onde a vítima dormia. Nos pés do cadáver vi as marcas do chinelo que calçou pela última vez. É esse. — puxou a matéria de prova do bolso da calça situado junto do joelho. — Saí daí seguindo o rasto do chinelo pelo caminho. Andei, andei, andei, sempre atento no chão. Depois de andar mesmo muito, naqueles lados do Kaliapu-de-baixo, ainda quase que perdia as patas. Mas, com muita vigilância, não custou recuperar. Os pés findaram mesmo perto da casa deste mancebo.
— E daí? — ignorou o IC fazendo cara feia. Mas em questão de segundos, uma ideia brotou. — Aliás, espera aí… então é verdade que a falecida foi mesmo bruxa, né?!
— Bem…
— Quer dizer que ela tentou capanicar um gajo…?
— Bem, chefe, até eu desconfiei. Também achei isso, mas só no princípio…
— Estás outra vez a desesclarecer. Fala como homem, pá! É ou não é? Ainda tenho de matutar bem o que fazer com o kota Mário. O homem é teimoso, meu. Engoliu a verdade mas não facilita processo…
— Bom, é como estou a explicar. Segui as patadas das chinelas da falecida até onde ultimaram, e também parei. Alguma coisa me disse para olhar atrás. Assim que olhei, vi o cartão de morador desse camarada aqui.
— E o camarada explanou o quê quando foi interceptado? Mostra-me lá o cartão!
— No começo, disse que não sabia de nada. Mas quando mostrei a evidência, panicou. Tentou me subornar com cesta básica da lavra dele, litro de 63, tabaco e fato completo.
— É verdade isso, ó rapaz? — dirigiu-se, arrogante, o IC ao suspeito.
— Chefe, eu tinha medo de ser chamado reacionário. Deixar perder o cartão de morador é contra a revolução dos filhos da nação. Só por isso…
— Enfiem-me o gajo na cela até segundas ordens!

O caso já ia no quinto dia. Sem progresso. O IC mostrava sinais de desespero. Nunca imaginou, nos seus vinte e tal anos de dirigente policial, que a vida do município viesse parar, como estava a acontecer, por causa da morte de uma pessoa. Logo uma  albina, que nenhum kaliapuense gostaria de ter como mulher (de tal modo, que as grávidas estavam expressamente proibidas de qualquer contato com albinos, receando vir a ter algo igual).

Chegou ao Comando Municipal por volta das 8,30 horas. Desceu do seu veículo oficial, a única ambulância operacional no município, cabisbaixo. Receava perder o controlo da situação e haver fuga de informação para a capital da província, o que estragaria o plano que idealizou para granjear mais uma promoção. Sentia-se conspirado pelo destino e abandonado pela sorte. Pensava até em consultar-se com o kimbanda. Era um impasse inexplicável e humilhante, pois acreditava ter tomado todas as providências necessárias para o esclarecimento do caso, que no início até pareceu simples.

Caminhava, apressado, em direção ao gabinete, certamente para mais uma meditação tático-estratégica, quando o IC se viu interrompido pelo Oficial-Dia:
— Chefe, há um detido que, desde ontem às 20,00 horas que o Chefe foi, nunca parou de chorar. Ainda duvidei quando o cozinheiro me disse. Ele ia levar chá com batata-doce e foi assim que notou. Até parece mentira, homem chorar como se fosse noiva no altar?!
— Ó Chanas-do-Leste, odeio essa tua sabotagem do tempo… Abrevia! O detido é o velho Mário, não é? Eu já esperava que confes…
— Me dá licença de interromper, mas não é o kota Mário, IC.
— Então, mas… conta-me lá isso direito.
— O cozinheiro é que notou, IC. O gajo, desculpa chefe, o camarada, diz que sem o doutor não pode locuçar.
— Mas que doutor é esse que infiltra autoridade dele na minha jurisdição?
— Aquele médico mesmo que não dá confiança, inclusivééh nos dirigentes.
— Manda-me já prender este médico suspeito. O país gasta plafón para se formar, até Cuba conheceu, e vem aqui no município colaborar na sabotagem da tranquilidade?
— Agora já, IC?
— Tu ainda não percebeste que temos um caso por esclarecer o mais rápido possível em prol do município? Anda! Corre! Já! Mas, antes disso, traz-me esse criminoso chorão. Está doente o cabrão, digo, o camarada?
— Doente, doente, chefe, ele não parece. Só que não colabora muito com a justiça. Não falou, só disse que quer o médico. É o mesmo adido da maka das chinelas da morta.
— Ainda estás aqui, ó Chanas? Não devias estar já no terreno para me trazer esse medicozinho?
— Até já, IC! — bateu à pala e partiu.

Estava em alta prontidão a polícia, de tal forma que cada agente de captura andava já com notificações assinadas, faltando apenas inserir a data e o nome do acusado. Vez  ou outra, os sipaios-do-hoje-em-dia aproveitavam-se do cheque em branco para cometer excessos. Havia ainda na corporação os mais espertos, que usavam da chantagem para extorquir dinheiro ou víveres nas lojas do povo. Não eram poucas as carências da esquadra, superadas apenas pelo espírito de desenrascar. O único carro disponível no município era a ambulância que, por força da conjuntura, ao mesmo tempo servia de Jeep do Investigador-Comandante. Um carro temido no município, porque a sirene tanto podia ser de urgência hospitalar, como podia anunciar operação policial. «Uéon, uéon, uéon», retinia a viatura pelas picadas do Kaliapu, espalhando poeira e muita especulação.

Mas o agente Chanas-do-Leste era patriota demais para se entregar a tais traições à farda e ao IC, a quem tinha por ídolo secreto. E cumpria as ordens do IC sem pestanejar, da mesma forma que o gatilho obedece ao dedo. E foi na ambulância, já agora em operação policial, que se enfiou o agente Chanas-do-Leste rumo ao Hospital para capturar o médico.

Sempre eficiente nas missões que lhe fossem incumbidas, o agente Chanas-do-Leste trazia, com ares de grandeza, o médico sob custódia, dirigindo-se ao gabinete do IC. E afinava a garganta para dizer «missão cumprida, IC!» e ser recompensado com palmadinha no ombro.

No mesmo instante, encontrava-se na esquadra o grupo de mulheres revolucionárias, que vinham prestar apoio ao IC e inteirar-se do progresso.

O médico saudou as senhoras, que já estavam de saída, altamente trombudas. Tinham acabado de ouvir da boca do IC que o médico estava implicado no crime. Não era isso o que esperavam do primeiro médico na história do município com o país já independente. Não era mesmo! A chefe da delegação pensava mesmo em sugerir às autoridades o fuzilamento do médico ou, no mínimo, a sua expulsão do município, mas não sem antes levar uma tortura em praça pública pelo vergonhoso crime.

Dr. Zé Luhaku bateu à porta do IC e foi convidado a entrar:
— Bom dia, Sr. Investigador-Comandante.
— Bom dia, ilustre médico. — respondeu o IC com sarcasmo. — Como estás?
— Calmo e assustado ao mesmo tempo. — forçou um sorriso. — E o IC?
— Menos mal. — encheu as bochechas, expirou o fumo, poisou o cigarro no cinzeiro e esfregou as mãos. — Como o ilustre camarada médico, e qualquer compatriota de boa fé, deve saber, aconteceu recentemente um ato violento. Um homicídio bastante frustrado…
— Sim, sim, tenho conhecimento. O município é pequeno e facilita a comunicação.
— Pois é. Quando o meio é menor, a pressão é maior, meu caro quadro. Ainda bem que sabes, assim me facilitas o processo.

O IC puxou da gaveta o cartão de morador. Colocou-o sobre a mesa com a parte principal virada para baixo, para ver até que ponto iria a curiosidade do interrogado, um truque que também fracassou. E aproveitando o momento, prosseguiu:
— O caro especialista conhece o dono deste cartão? Já viu este rosto em algum lugar?
— Não.
— Nega ter alguma ligação com ele?
— Não entendo a questão. Era para ter?
— Vamos lá ver se nos entendemos. No meu gabinete, pergunto eu. Está bom assim?
— Não se exalte, chefe, que não faz bem à saúde.
— Na tua chegada, o caro especialista disse que estava um pouco calmo e assustado ao mesmo tempo. Tem algo para me confessar?
— Não frequento igrejas! — reagiu com ironia o médico à provocação.
— Olha aqui, Dr. Zé Luhaku, este homem foi capturado ontem. O nosso agente seguiu o rasto do último chinelo que a falecida calçou em vida, desde o quartinho até desaparecer. Andou mesmo muito, e calha que a marca terminou no pátio do dono desta documentação, que foi achada durante a vistoria técnico-policial. Prontos, mas são segredos nossos…
— Está bem. E onde é que eu entro na história?
— Já chego lá, tenha calma, não adianta precipitarmos a chuva!
— As minhas desculpas. Só gostaria de entender o que me traz aqui.
— Pois, voltando à tua pergunta «e onde é que eu entro na história?», pois é. Acontece que, desde ontem às 20,00 horas até agora, o detido chora sem parar. Como diz o meu subordinado, até parece mentira um homem chorar como se fosse noiva no altar! Disse que nada podia confessar sem a presença do médico, como quem diz que só ele é que sabe a verdade. — o IC usava a manipulação como último trunfo. — É caótico, mas resolve-se.
— Foi observado o quadro psico-motor do detido? Não será trauma, se considerarmos a hipótese tomar contato com uma cela pela primeira vez?
— Não, meu caro especialista. Todo conterrâneo de boa fé sabe que o trabalho da polícia é tranquilizar. Se para tal entrar na cela, é caso do camarada entender que é para o bem do Kaliapu. É de agradecer até, porque aqui come-se e descansa-se.
— Posso vê-lo?
— Para quê? — reagiu, desprevenido, o IC. — O Agente-Sanitário já tomou as cautelas. Tá cinco por cinco!
— Pois, sendo assim, entendo ainda menos o que me mantém aqui. — dito isto, o médico foi dispensado para aguardar lá fora até segundas ordens, sem estar claro se seria para ir em liberdade ou para continuar o interrogatório.

O IC mandou chamar o detido chorão, que não parava de exigir «o doutor, o doutor». Fechou-se com ele no gabinete e iniciou o interrogatório:
— Tenho crime por esclarecer e tu ficas o tempo todo a sujar de lágrimas o meu quartel! Fala de uma vez. Quem comparticipou no crime?
— … O doutor, Chefe, o doutor…
— O médico também colaborou? Assumes o que dizes?
— Não, chefe. O doutor, Chefe, faz favor de chamar só o doutor…
— Ó rapaz, isso aqui não é um «já, sim, não, talvez», OK?! Aqui só há uma palavra. O doutor está ou não implicado?

Chamado outra vez para interrogatório, o médico juntou-se ao IC e o detido numa altura em que o anfitrião já espumava, tal era a sucessão de impasses.
— Doutor, você conhece este camarada?
— Não, IC, nunca o vi mais gordo!
— E tu, compatriota, conhece o médico? — indagou, apontando o dedo indicador no centro da testa do rapaz.
— Sim, Chefe… Nunca falei com ele, Chefe.
— Caramba, pá! Assim não há paciência que aguente! Merda, pá! Vocês afinal se conhecem ou não?
— Chefe, queria falar com o doutor no canto. — choramingava o jovem, que tinha já a camisa ensopada de baba, lágrimas e ranho.
— Isso aqui não é casa das vontades, ouviu bem? Temos um caso cabeludo e você até podia colaborar com a informação para chegarmos ao assassino, seja ele INTELECTUAL ou camponês. Mas não. Prefere sabotar…!

Retirou-se o IC do seu próprio gabinete para deixar os dois suspeitos «altamente perigosos» concertarem o que desejavam:
— Então, meu jovem, por que razão me entrega à polícia?
— Doutor, não tenho outra saída. Vou falar mesmo…
— Mas eu não sou advogado…
— Anteontem apareceu pus no meu «canhão». – faltou coragem para dizer pénis. — Um amigo disse que era cikata…
— Esquentamento ou gonorreia. É isso?
— Sim, doutor.
— Os meus amigos me deram raiz de mamoeiro, tomei e nada! Meti lá óleo de jibóia, mas também nada! Tentei pedir penicilina, mas só há penicilina para casos de urgência. Cada dia que passa, o canhão tá inflamar, dói bué mijar.
— E então…?
— Então, doutor, os meus amigos me falaram vou ter problema para fazer filho, que vai nascer com boca de kandimba…
— E…?
— Já não aguentei. Como tenho sistema nervoso, fui pegar a pessoa onde acionei e, no caminho, lhe bati mesmo muito. Como é que uma pessoa vai me dar doença ainda por cima fala «não sabia»? Ainda se fosse uma mulher normal, era outra coisa. Agora todo município vai saber que me meti com uma albina, que é uma porca de uma puta?

O médico passou a mão na cabeça do rapaz, fez-lhe festinha no nariz e abanou a cabeça. Começava a fazer sentido a presença de um médico naquele «esquecido» município. Passou a receita, contou a história ao IC e meteu-se na ambulância rumo ao hospital à busca de medicamentos.

Estava instruído o processo. Qualificação: homicídio voluntário. Motivo: o autor confessou, e citamos, «não aturei uma mulher me dar cikata, ainda por cima uma albina», fim de citação.

Uma comissão formada por dois agentes e o motorista da ambulância foi indigitada a conduzir o criminoso à capital da província, onde havia cadeias mais seguras. Temia o IC que os munícipes invadissem as celas para fazerem justiça por mãos próprias, coisa que não devia permitir, embora fosse o que o seu lado íntimo mais gostaria que acontecesse.

Pelo perigo da via e dada a longa distância que separava o Kaliapu da capital da província, a comissão só poderia regressar uma semana depois.

Mas, curiosamente, duas horas após a partida, a comissão voltava, estarrecida, ao ponto zero. Missão abortada. A cor original da viatura estava irreconhecível. O pessoal não estava pouco enlameado. destacava-se só o vermelho da terra molhada. Algo de muito estranho tinha acontecido. Para os que testemunharam o milagre, este, era difícil contar, do mesmo jeito que era difícil entender como foi logo chover com trovão e tudo em época de cacimbo. Mas naquele dia bateu mesmo uma chuva grossa de granizo. E só cessou depois de um forte trovão ter retirado do carro o criminoso, atirando-o violentamente ao chão, já sem vida. Ficou sem efeito a missão. Daí o regresso ao Comando Municipal para se registar a ocorrência e tratar do resto.

Contentes pela justiça da mãe natureza, os munícipes começaram a acreditar que os albinos são especiais e têm diamantes no cérebro.

Gociante Patissa (In "A Última Ouvinte". União dos Escritores Angolanos, 1ª Edição, Luanda , 2010 (versão com base no novo acordo ortográfico)

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quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Conto | O MESTRE QUE DISSO NÃO PASSAVA

«Os mestres mentem, todos eles. O pedreiro não entrega no prazo acordado; o mecânico tem sempre uma desculpa; o canalizador, tirando proveito da semelhança nas duas primeiras sílabas, faz-se canalha perfeito; o electricista é outro a quem é arriscado confiar, tão arriscado como seria pôr a mão no fogo pelo ladrilhador ou pelo pintor, enfim... Será que devo mesmo voltar à escola para o mestrado?», lia-se.


Lágrimas molhavam o sorriso do velho Jornal (que por acaso caminhava para a terceira idade). Acabava de abrir o envelope, mas mantinha escancarada a caixa postal 208. Tinha o estranho hábito de só trancar a portinhola depois de lida a carta, como se, por eventual desgosto, conseguisse devolver a correspondência com o gesto mecânico de enfiar o papel e girar a chave em tácito trejeito de «assunto encerrado!»

Do discreto guichet, a funcionária dos CTT (que o falecido velho Cimuku decifrava, com saudável malandrice, como sendo Continua Tudo Torto) via tudo, no silêncio que exigia o amontoado de emoções, quiçá, contraditórias. Abrir ansiosamente o apartado ao tilintar do porta-chaves, levar o correio ao peito, lacrimejar, gestos vagarosos. Era sempre um pequeno evento cada visita do velho Jornal aos Correios. Era semanal. Mudavam-se os selos, as datas dos carimbos de entrada e saída, mas dois elementos eram inalteráveis: o remetente e o receptor.

Velho Jornal proibira, terminantemente, sublinhe-se, o filho de usar outra via, que não fosse o correio postal e a respectiva escrita à caneta, durante os cinco anos que o levaram a viver em Coimbra. A própria ida à Europa, pelas poupanças de alfaiate suportada, era faísca para intermináveis introspecções. Teria valido a pena a independência se, pouco menos de meio-século depois, temos que mandar os filhos aos paradigmas que um dia combatemos? Enquanto as respostas tardavam, já no mercado do trabalho, a concorrência era (e hoje, ainda mais do que ontem) rija.

Como não é de um mestre traçar caminhos, mas tão-só tricotar o reverso das escolhas, velho Jornal não se opusera a partida. O que fez foi traçar o que ele chamava de Mapa do Luar. Era, se me permitem a simplificação, uma circunferência irregular a preto e branco, com intersecções e convergências, qual labirinto, acrescida de palavras dispersas, mas não desconexas de todo, que bem se podem dispor assim:

Era nosso o luar
Fértil e certo
Como as cores possuem o pincel
Depois
À ordem do fogo
Corremos
O asfalto engoliu a parábola
Nós com ela
Desnudos
O que resta de nós
Salvos da guerra
São ocas essências de carne
De tão iguais, perdemo-nos

As correspondências com o filho visavam manter os debates de aquecer o lar no cacimbo de Menongue, a capital da província do Kuando-Kubango. Na intemporal concepção de Jornal, a língua é que não se deixa ser estática. Uma combinação de símbolos, vendo bem, tem cores demais, para se deixar apanhar em uma só tonalidade. As palavras são cores em movimento, em certa medida. Todavia, estas mesmas palavras seriam sem alma, se lavadas do barro com que fossem colhidas.
Seu filho, agora homem com o nome gravado em diploma conimbricense, sabia alegrar as expectativas do pai, que lhe vivia lembrando que a universalidade não era algo insipido mas, antes, um encontro de identidades; que nós não chegaríamos lá nunca, enquanto a nossa missão fosse partilhar o nosso vazio interior.
E ao tomar contacto com tal medular correspondência, velho Jornal usava do faro para garimpar o filho, auto-revelado como ente que se conhecia semente de uma África que respira, antes de se colher na lavoura da cosmovisão. Divisado isso, acreditava justificarem-se as lágrimas que embaciavam os óculos graduados.

«Os mestres mentem, todos eles. O pedreiro não entrega no prazo acordado; o mecânico tem sempre uma desculpa; o canalizador, tirando proveito da semelhança nas duas primeiras sílabas, faz-se canalha perfeito; o electricista é outro a quem é arriscado confiar, tão arriscado como seria pôr a mão no fogo pelo ladrilhador ou pelo pintor, enfim... Será que devo mesmo voltar à escola para o mestrado?»
Ora, nesse parágrafo, que abre o conto em suas mãos, Jornal interpretava que o filho tinha tido êxito no curso de licenciatura e que pedia, por merecer, autorização para permanecer na Europa pelo mestrado; que, passasse o tempo que passasse, continuava identificado com as virtudes e defeitos da sua sociedade. Um patriota!
Velho Jornal tinha a mania de acreditar que o belo, antes de se perder pelo mundo, brotara do seu quintal aonde, ainda segundo suas absolutas sugestões, acabará por regressar para respeitar a lei da vida, que é incompleta sem a morte. E por assim ser, dedicava a cada dia alguns minutos ao mais florido cantinho do quintal. Cruzava as pernas com um livro na mão. Não era um canto qualquer, tratava-se de um com vista privilegiada. Pela janela, via-se do lado de dentro uma estante. O orvalho a escorrer pela vidraça dava a impressão que os livros andavam muito bem conservados num frigobar. É nessa altura em que lhe vinha à cabeça a alegria de camponês que completa o ciclo com um escoamento eficaz. Nesse instante, dava um gole, entornava um pouco para regar o chão e acreditava que, na manha seguinte, estaria a nova poesia a germinar. Talvez no chão, talvez num qualquer pregão. Apenas algo menos bom: era como se fosse inorgânica a poesia que do seu canteiro não nascesse.

Certa vez, criticado por investir horas no isolamento, escreveria para o filho: «Pelos livros, é uma viagem sempre boa... ainda por cima, sem risco de acidentes. Aliás, só pode ser doentia a sociedade que estranha o isolamento, a ausência. A colmeia é, afinal, a soma do que cada abelha leva ao colectivo. Portanto, não pode ser saudável a regularidade enquanto ser social, descurando da auto-descoberta no espaço singular. Ou passamos a ser iguais e, de tão iguais, perdemo-nos.»

Pronto, Jornal acreditava ser um mestre dos seus, só que… disso não passava.

Gociante Patissa, in «Fátussengóla, O Homem do Rádio que Espalhava Dúvidas» (pág. 77). GRECIMA. Programa Ler Angola. Luanda, 2014
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"OS DENTES DO SOBA", conto nº 3 de 7, in "A ÚLTIMA OUVINTE"

Em Outubro de 1945, um arrolamento extraordinário estava na iminência de ocorrer na Ombala de Tchiaia, capital de cinco aldeolas plantadas no cimo de montanhas vizinhas, que mais se pareciam com dedos de uma mão tentando tocar o céu: Pedreira, Kandongo, Samangula, Kawio e Tchiaia, hoje pertencentes à comuna do Sambo, município da Tchikala Tcholoanga, na província do Huambo.

Ia ao rubro a ansiedade na Ombala, como de costume em véspera de arrolamento. Cada família procurava catanar a idade dos filhos, o que contribuiria na diminuição dos impostos, o mesmo acontecendo com o número de animais domésticos. Menos posses, melhor. O que restava fazer só dependia da visita do Chefe do Concelho, branco português conhecido por observar ao mínimo pormenor até mesmo os pelos de um porco. Andava intrigado o Chefe do Concelho com a notícia do registo de dezassete óbitos em oito meses. E de nada o convenceram as justificações das autoridades, que atribuíam tal azar ao aparecimento do dragão, que fora visto por poucos sobrevoando o caminho do cemitério.


Era fenómeno raríssimo no meio rural, mas havia na aldeia uma mulher (chamada Kutala) em condições de dar conta do recado em matérias de recenseamento. Fora logo cooptada para o posto de secretária-tradutora-dactilógrafa da Ombala. Despachava diretamente o expediente com o Soba.


Nascida doentia, Kutala vivera a sua adolescência sob os cuidados de missionárias, tendo com elas aprendido as práticas de dactilografia, costura, doméstica e o domínio da gramática portuguesa. Mas com o desabrochar dos seios e o surgimento de sonhos eróticos — que ela não sabia se gostava ou se odiava —, Kutala convenceu-se de não ter vocação para madre, optando por abandonar a residência. Não era de ser pretendida por qualquer um, dada a sua capacidade de análise crítica, embora não fosse cheia de «não me toques».


Mbocoio, o felizardo marido da Kutala, não gostava nada da ideia de se trabalhar com o Soba — apesar de iletrado, o Soba era muito astuto, carismático e, dir-se-ia até, bonito. Mas foi aconselhado pelos amigos a ver o lado positivo da coisa. Ser marido da mulher mais influente no poder dar-lhe-ia um estatuto visível, uma gratificação até acima do razoável. Lá o homem aceitou, mas não sem antes propor uma das irmãs da esposa para auxiliar na lida doméstica e cuidar do Velho, o bebé do casal, enquanto a mulher fosse trabalhar — Velho era a alcunha do bebé, uma solução arranjada para evitar o desgaste do sagrado nome do avô paterno, que era seu chará.


A verdade é que também não havia muito a fazer para impedir a esposa de desempenhar tão decisivo cargo. A vontade dele não podia estar acima do poder, fosse político, administrativo ou real. Mbocoio era uma pessoa singular na Ombala, não impressionando ninguém com o seu corpo atlético, peito de almofada e altura de mercenário. Era vagaroso a reagir e cauteloso a decidir, se calhar por ser gago.


Ia o emprego no seu primeiro mês. Faltavam dois dias para o pagamento do ordenado, quando a mulher chegou à casa e disse ao marido:

— Ó pai do Velho, tem uma coisa para te falar.
— Sim…?
— O Soba disse para o outro, ainda, deixar de passar a mão na minha cara. É para evitar espinhos, porque o Chefe do Concelho está para vir… e a cara é importante.
— Como assim?
— Bom, ele me falou que, como escriturária-dactilógrafa da regedoria, a minha cara tem que brilhar como bebé. E mão de homem faz borbulhas.
— Tá bem.

Não gostou nada do recado, mas suportou. Por mais que lhe custasse travar a mão toda a vez que ela teimasse em fazer um carinho involuntário à esposa, sujeitou-se durante semanas. Era coisa passageira, acreditava. Mas a visita nunca mais acontecia e, para a sua surpresa, surgia a mulher com mais um recado do Soba:

— O Soba me falou, fala no pai do Velho ainda para deixar de me dormir em cima. — respirou fundo para buscar a coragem de dizer o resto. — Falou a parte de sentar está a ficar rasa e as mamas estão a ficar grande.
— Então, daqui p’ra frente é só de lado? É isso?
— Acho que sim…

Contrariado, Mbocoio concordou. Como se não bastasse a proibição de tocar o rosto da mulher, vinha agora mais essa de fazer amor só de lado. Sujeitou-se, todavia, outra vez. Mais um sacrifício pela subida da mulher no trabalho. Seria passageiro porque, pelo tempo, a visita estaria perto de acontecer, acreditava o homem. Volvidos três penosos meses, era ainda incerta a chegada do Chefe do Concelho. Tudo indicava que ficaria para o ano seguinte. Mbocoio começava a acreditar que as limitações do quarto acabariam brevemente.


Ansioso. Nutrido pela enorme esperança. Mas a esperança é, às vezes, a mais cruel das ilusões. Desiludido, Mbocoio veio perder a cabeça perante mais um impasse:

— Ó pai do Velho — disse outra vez a mulher —, o Soba me apanhou a sonegar e me falou que isso tudo é cansaço de fazer as coisas de lado. Falou então para o pai do Velho pensar bem, ficar ainda uns dias sem fazer nada…
— Mas é para chegar aonde com essa merda de recados? — interrompeu, colérico, Mbocoio. — Porra! Até aonde vai o poder desta merda do Soba?

Muito gostaria a mulher que o marido falasse mais baixo, ela que já não se sentia à vontade em abordar coisas do quarto por causa da sua formação religiosa. Temia que os berros acordassem a vizinhança, que era basicamente composta por familiares do marido, o que seria um escândalo.

— Vamos falar no pescoço. — rogou, impotente. — A essa hora, a aldeia está a dormir.
— Mas, para dormir com a minha mulher, ele é que tem que autorizar? Merda, pá!
— Você vai chamar de merda a autoridade?
— Merda mesmo. É isso! Merda, merda d’homem! Ele pensa que é patrão até aonde?
— Mas ele não é só meu patrão. É também regedor da Ombala.
— Safótalá, que eu mando lixar! Estou na minha casa! 
— Mas ele também já viu muita coisa nesta vida. É mais velho, é a experiência dele.
— Ele mazé te quere…
— CHEGA! Olha que o nervo só te leva, não te traz!
— Chega nada! Aqui na minha casa, autoridade sou eu!

Pensou a mulher que, pelo desabafo do outro, o problema estivesse resolvido. Errado. Mbocoio saiu disparado, fora de hora, sujeito a todos os perigos, uma vez que a aldeia costumava ser invadida por onças e hienas que caçavam cabritos e porcos vadios. Podia também ser atacado por jibóias, isso, sem esquecer que naquele ano fora visto um dragão. Tudo isso punha a pobre esposa angustiada, ela que mal podia imaginar o que faria um gago impulsivo.


Feito bicho, Mbocoio trespassou o palácio do Soba, que enganava a insónia consultando os antepassados. Este pôs-se em pé em jeito de respeito, como aliás fazia sempre que recebesse visitas, por muito estranha que julgasse uma invasão do seu território quando a noite dava lugar à madrugada. Mas foi tudo tão rápido, que não teve tempo para saudar o visitante. Mbocoio fitou os olhos do Soba com toda a raiva que lhe subira à cabeça. E acertou o suposto rival com dois violentos socos da cara, até vê-lo cair para o chão como saco de múcua, embora calado como uma ovelha, já que homem grande não chora. Possuído pelo impulso, Mbocoio espancou o Soba, como se de pessoa qualquer se tratasse, mas rapidamente caiu em si. Não evitou a comiseração ao ver a mais alta autoridade da aldeia levantar-se do chão, sacudindo da calça a sujidade, com os lábios a verterem sangue.

— Ndifila nye?(1)

Mbocoio ficou estático, articulações bloqueadas pelo susto. Cometera o mais grave erro da história do seu povo. Era o primeiro a agredir um Soba, e o que era pior, ao ponto de partir metade do dente incisivo esquerdo. O Soba convocou os mais próximos conselheiros para uma reunião de emergência. A assembleia visava evitar que o Soba, figura que só participa dos contenciosos como juiz, aparecesse como vítima, o que fragilizaria a sua soberania. Decisão: guardar o segredo bem fechado, dando a Mbocoio o castigo de ser o tocador de sino da Ombala por tempo indeterminado, sendo inclusive subordinado da esposa.


Mbocoio, que temia castigo pior dos deuses pela agressão ao soberano, aceitou sem resistência. Quando a força toda que resta no ser humano só chega para chorar e implorar pela vida, todas as valentias e preconceitos reduzem-se à cinza. Mbocoio era incapaz até de se lembrar do próprio nome.


Mas como o Soba não podia surpreender a aldeia com um dente meio partido, foi feita uma  operação de estética chamada omeyeko, aplicando um «chanfro em V» aos dois dentes incisivos como símbolo de nobreza.


Agora, com o doce sabor da reviravolta, o Soba até parecia ter ganho na altura. Abandonou a sala de reuniões e, sem ir muito além da porta, olhou à sua volta, sardónico. Mandou para o ar o fumo do seu malcheiroso cachimbo, como que em gesto de charme, e voltou a entrar, deixando nas mãos dos conselheiros a preocupação de propagar o fenómeno.


Contou-se que tudo acontecera durante um sonho, decifrado como recado dos antepassados: já não bastava a circuncisão para a honra masculina. E como o que vem do Soba é exemplo, surgiu uma nova profissão: a de limador de dentes. Foi então que se juntou omeyeko ao ritual da circuncisão, de tal modo que, entre a vaidade e a tradição, sorrir cerrando os dentes passou a ser documento em Tchiaia.


São os segredos e os sacrifícios que fazem o poder, portanto este não seria o primeiro nem o último pela revitalização da mística da aldeia. Mbocoio continuou pouco valorizado no seu posto de tocador de sino.


(1) Que mal fiz para me matares?


In "A Última Ouvinte", copyright 2009, Gociante Patissa, União dos Escritores Angolanos, 1ª Edição, Luanda , 2010 (versão com base no novo acordo ortográfico)

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