sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

O JULGAMENTO DE 1983 (Fragmentos do conto publicado no livro O HOMEM QUE PLANTAVA AVES)


(…) Mbali e Citumba conversavam de tudo e de nada, para não variar, seus músculos celebrando o poder refrescante de uma involuntária quebra da suada rotina de ir ao rio de bacia à cabeça para acarretar água ou de enxada em punho transformando o chão virgem em promessa alimentar ou isso ou aquilo.

(...) Viviam um dia de paz e sossego se tais palavras aplicáveis fossem àqueles tempos, malditos tempos. Até que um homem que ao longe vinha, coxo, de casaco e panos e olondindi nos pés, de quem se esperava saudar, e saudou de facto, deixou as duas cunhadas com os nervos em ebulição. «Mbwatale, nãwã yange! Etali ndasanjuka!» Exclamou ele na língua Umbundu e numa voz projectada com volume e clareza su cientes, para deixar nenhuma sombra de dúvidas. E como traduzir não ofende, o homem disse «Boa tarde, minhas cunhadas! Hoje estou contente!» E continuou seguindo o seu caminho. Via-se-lhe ainda o sorriso rasgado. Parecia feliz mesmo. Que azar!
— A cunhada ouviu o mesmo que eu ouvi?
— Até estou a tremer de medo!
— Isso não pode ficar em branco, cunhada, só se eu não me chamo eu!
— A mim já não faltavam desconfianças. Mas hoje, finalmente, o malandro confessou...
— Mas ele não tinha mais outro caminho para passar?!
— Eu só me questiono: cumprimentou só porquê?!
— Aquilo lá um dia foi cumprimentar?!
— Isso não fica assim, cunhada! Esse homem tem de ser julgado no soba! Se estar contente já era grave, Kawenya tinha conseguido a proeza de pintar com rastilho de pólvora o caminho, desde logo pela estranha maneira com que saudou, com tamanho alheamento aos costumes mais elementares.
(…) O julgamento até já tinha data. O local dispensava indicações. A mais frondosa das mulembas junto da residência do soba é por vocação a sala de audiências, para alguns expediente desconfortável, por serem abertas ao público. Quer dizer, todos sabem de todos.
O soba, ciente do ingrato papel de deliberar sobre causas e temas que muitas vezes não teve a oportunidade de dominar, tinha a seu favor uma técnica infalível: deixar que todos exponham os seus argumentos, pedir a opinião da assistência e só então divulgar a sentença. A principal acusação tinha mesmo que ver com aquilo de andar contente, justo em 1983.
Quando se tem a opinião pública em mobilização crescente contra nós, todos os esclarecimentos só podem ser poucos. Como a estação chuvosa tinha sido fraca, a aldeia vestia-se de carência. Pirão de milho ou de bombó à mesa? Quanto luxo! O povo comia mesmo era pirão de batata-doce, sarcasticamente apodado de alcatrão, dado o tom castanho torrado. Para piorar os males, o frio tem o inóspito hábito de tornar a rama de batateira amarga, de sorte que pouco sabia para conduto. De mal a mal, o caudal do rio andava perto de seco, tornando impossível a pesca continental. O talho do velho Mango no começo até tinha alguma carne, mas só para os abastados, nada tendo de valor os demais (…)
Mbali foi a primeira a tomar a palavra:
— Este ano de tanto acontecimento, o pai Bernardo partiu a perna, a minha filha com pássaro, eu com tala, os kwatchas prometem novo ataque, agora que o pai Bernardo está aleijado, o único carpinteiro confiado em fazer caixões aqui na terra. E vem logo este homem dizer boa tarde, cunhadas, hoje estou contente?!
A assistência desatou aos apupos contra o acusado:
— Wôôô! Que vergonha! Um mais-velho, que devia educar, faz isso?!
— Esse homem é feiticeiro! — condenou Citumba.
— Antes que aconteça outro azar, o soba tem que julgar. Uma pessoa de bem, com tudo o que estamos a ver na comuna, com a lua inclusive a surgir envolta em nuvens de sangue, o frio a queimar as plantas, o homem vai dizer que tem tempo de estar contente?!
O soba viu-se forçado a endurecer a voz de mando para domar a assistência, já embalada numa onda de vaias que só vista. E dirigiu-se ao acusado:
— Ao saudar as suas cunhadas, você sentou-se, procurou saber como estavam a passar, saudou as crianças, como usualmente faz um tio do nosso seio?
— Não, papá. Escapou-me.
— Você sabe que as crianças foram proibidas de brincar zera (seja na escola, em casa ou mesmo no fundo da água), porque zera é saltar batendo palmas, e as palmas foram feitas para celebrar?
— Ouvi, papá.
— Você sabe que este ano não houve casamentos, porque não houve carne?
— Sim, sim, papá.
— Você esqueceu que a Mbali trabalha duas vezes na lavra para ajudar a cunhada, uma vez que o irmão foi cumprir uma missão na frente de combate?
— Não, não, papá.
— Ainda assim, o filho anunciou que foi a tempo de encontrar um ou outro motivo para estar contente?
— Sim, papá. Quer dizer…
Gociante Patissa, in O HOMEM QUE PLANTAVA AVES, 2018. Editora Acácias, Luanda. Edição brasileira da Editora Penalux, Guaratinguetá, São Paulo, 2017
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quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

Crónica | UM REI DO BAILUNDO À PORTA DA CADEIA E O DESTOAR DA ORQUESTRA

Há qualquer coisa de artificial na “torcida” contra a responsabilização criminal do cidadão investido há


uns anos no poleiro de Rei do Bailundo, de sua graça Armindo Kalupeteka ou Ekwikwi V. Segundo se ficou a saber, o Rei-juiz foi condenado por co-autoria na morte de um outro compatriota, alegadamente condenado no tribunal costumeiro sob acusação de ter enfeitiçado uma neta, sendo que a pena aplicada pela “corte”, cuja letra não foi publicada, fomentou o desfecho trágico numa república que aboliu a pena de morte. Seria ou não o Rei-juiz imputável pelas sentenças? 

 

Aí é que a meu ver está o artificial da coisa. Teríamos de partir do perfil das autoridades tradicionais na sociedade moderna, sua legitimidade, coerência e o âmbito do seu poder. É evidente que o poder real/tradicional não andará muito longe do decorativo, residual e vinculativo em comunidades rurais pouco escolarizadas, fruto do curso de uma ex-colónia antropologicamente corrompida, da guerra civil e dos interesses políticos dos movimentos de libertação. Paixões à parte, se quisermos considerar alguma coerência republicana estaremos de acordo a esse respeito. 

 

Qual é o papel dos sobas, sobetas, sekulus, reis e regedores do ponto de vista de voz junto do poder político nesta república que se assume democrática de direito? É facto que o poder real implica território, identidade etnolinguística, linhagem e discernimento. Hoje por hoje, praticamente a obediência a tais autoridades é facultativa, nalguns casos só sobrevivendo por conta do medo que as sociedades tradicionais têm do feitiço. Diz-se que poder é feitiço. Consoante se teme ou não, podemos ter um pai que obedece e um filho que manda lixar. 

 

Não entrarei nos elementos técnicos da coabitação entre a lei positiva e a lei costumeira, porque em meu entender é injusta a dupla subordinação jurídica só para alguns, se tivermos em conta que todos somos iguais e merecemos igual tratamento. Serão a filosofia oral, a idiossincrasia e o dogma da autoridade critérios bastantes para se fazer justiça? No Monte Belo, a título de exemplo, interior da província de Benguela, abundam casos de pessoas que morreriam sem nunca saldar a dívida que contraíram para pagar as multas pesadas que lhes foram na Ombala aplicadas pelo crime, imaginem!, de terem aparecido no sonho de alguém, o que serve de confissão de bruxos ou feiticeiros. 

 

O que me indigna é o activismo selectivo pela “soberania da cultura ovimbundu”, na tese de que o direito positivo se equipara ao costumeiro, carecendo de peso de hierarquia para responsabilizar uma autoridade tradicional. Como alguém alertou, o cidadão angolano morto, suposto bruxo denunciado pela própria família, não tem nome e direito à protecção pelo Estado angolano? Se foi condenado por crime de feitiçaria, não haveria de ser punido pela mesma via sobrenatural?

 

Enfim, as nossas rádios quase não tocam a música cantada em umbundu, mas isso não incomoda. O direito positivo ou civil não reconhece o casamento costumeiro, mas OK. O cidadão chega à licenciatura estudando a língua portuguesa desde a iniciação mas nunca as línguas nacionais bantu e pré-bantu, e isso não incomoda. Em visita diplomática aos órgãos de soberania, o soba ou rei ou sekulu, defendeu o Ismael certa vez, não tem direito a tradutor como têm as autoridades estrangeiras. 

 

O Estado desenterra decretos da era colonial e impõe a castração das consoantes e semi-vogais W, Y, K da toponímia e perpetua deturpação secular neste campo, mas isso não incomoda. A grafia das línguas bantu anda obsoleta, situação agravada pela existência de dois códigos, o convencional versus o católico, o que compromete a familiarização com as línguas e fomento da produção literária. Isso também não incomoda. A língua portuguesa, factor de unidade nacional, ainda não dialoga e o preconceito faz com que nas instituições oficiais tacitamente se proíba o uso das línguas (em rigor) locais e regionais, mas OK. Ora, se anuímos docemente que as línguas tenham estatuto secundário e se cada língua veicula uma cultura, custa aceitar que as práticas e costumes do mosaico que enriquece o território chamado Angola sejam secundários? Temos modelos que só recorrem às línguas africanas em contexto eleitoral, mas o que incomoda mesmo é que o Rei do Bailundo seja condenado caso apadrinhe sentenças que levem à morte de alguém. A soberania cultural mora só ali. E é fácil juntar-se a esse coro até que o “feiticeiro” da vez linchado seja alguém que amamos. KWENDA CIKAPALAMA!

 

Gociante Patissa | Benguela, 11 Fevereiro 2021 | www.ombembwa.blogspot.com 

Foto: DocPlayer 

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segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Obrigado, Lázaro Bernardo Lázaro Dalas, pelos anos de partilha para solidificarmos as nossas ONG’s, vocês APDC forneceram o exemplar da Lei das Associações que permitiu elaborar os estatutos da AJS, aí em 1999. Pelas ONG’s cruzamos na actividade com crianças de Rua do Lobito com o mestre José Patrocínio Zetó (da Okutiuka-Apav e Omunga). Foste meu colega no segundo curso de Linguística/Inglês da então Universidade Agostinho Neto em Benguela, dependi da tua boleia no teu Atos preto para as idas e vindas à escola em 2006. Fomos vizinhos de bairro, tu no São João, nós no bairro Santa Cruz, o nosso Lobito. Foste um camarada de sorriso incorrigível, um conselheiro (que nem sempre ouvimos, claro 🙂 ). Tivemos em comum o estatuto de trabalhadores da Sonamet, tu no office, nós no estaleiro no início da década 2000. Gabava-me eu de ter sido o gajo que te forçou a deixar de fazer cábula, não porque duvidasse do teu potencial intelectual, mas precisamente pelo contrário disso (tanto é que nesse ano passaste directo sem ir a recurso). Estivemos juntos há três semanas, falamos ainda na sexta, o teu espírito optimista estava mais acelerado que a reacção do teu organismo. Sonhamos o que havia a sonhar, viveste na intensidade que a vida te permitiu. O único defeito que te aponto, e não te vou perdoar por ele tão cedo, foi o da morte prematura. Faleceu hoje, de doença matreira, o nosso mano professor de inglês e recursos humanos. Adeus, Mr. Dalas. Kwendepo ciwa! Ame wove!


 

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A Voz do Olho Podcast

[áudio]: Académicos Gociante Patissa e Lubuatu discutem Literatura Oral na Rádio Cultura Angola 2022

TV-ANGODEBATES (novidades 2022)

Puxa Palavra com João Carrascoza e Gociante Patissa (escritores) Brasil e Angola

MAAN - Textualidades com o escritor angolano Gociante Patissa

Gociante Patissa improvisando "Tchiungue", de Joaquim Viola, clássico da língua umbundu

Escritor angolano GOCIANTE PATISSA entrevistado em língua UMBUNDU na TV estatal 2019

Escritor angolano Gociante Patissa sobre AUTARQUIAS em língua Umbundu, TPA 2019

Escritor angolano Gociante Patissa sobre O VALOR DO PROVÉRBIO em língua Umbundu, TPA 2019

Lançamento Luanda O HOMEM QUE PLANTAVA AVES, livro contos Gociante Patissa, Embaixada Portugal2019

Voz da América: Angola do oportunismo’’ e riqueza do campo retratadas em livro de contos

Lançamento em Benguela livro O HOMEM QUE PLANTAVA AVES de Gociante Patissa TPA 2018

Vídeo | escritor Gociante Patissa na 2ª FLIPELÓ 2018, Brasil. Entrevista pelo poeta Salgado Maranhão

Vídeo | Sexto Sentido TV Zimbo com o escritor Gociante Patissa, 2015

Vídeo | Gociante Patissa fala Umbundu no final da entrevista à TV Zimbo programa Fair Play 2014

Vídeo | Entrevista no programa Hora Quente, TPA2, com o escritor Gociante Patissa

Vídeo | Lançamento do livro A ÚLTIMA OUVINTE,2010

Vídeo | Gociante Patissa entrevistado pela TPA sobre Consulado do Vazio, 2009

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