quarta-feira, 29 de setembro de 2021

QUE "LUSOFONIA" É ESSA? - opinião do escritor e jornalista João Melo ao Diário de Notícias

O conceito de "lusofonia", embora seja prático, é claramente um conceito ambíguo e limitado, que não exprime toda a complexa realidade constituída e vivenciada pelos povos de língua portuguesa. Afinal - já o escrevi aqui - essa comunidade, em termos demográficos, é afro-europeia e não euro-africana. 

Culturalmente, é cada vez mais mestiça, marcada de maneira distintiva por traços culturais de origem africana.  Mais do que incompreensível, é inaceitável, portanto, a repetição de determinados atos falhos por parte das elites políticas e culturais dos dois países autoconsiderados "dominantes" dessa comunidade, ou seja, Portugal e Brasil. Anos atrás, por exemplo, certas universidades portuguesas tinham departamentos de "estudos lusófonos e portugueses", o que fala por si. Espero que essa designação e outras do mesmo calibre já tenham sido colocadas no caixote do lixo.  

O fraco reconhecimento e as dificuldades de circulação na comunidade em questão de bens culturais produzidos nos diferentes países de língua portuguesa são exemplos de uma área em que todas as fragilidades (estou a ser gentil) do conceito de "lusofonia" saltam à vista. Na coluna de hoje, comentarei brevemente o que se passa na área da literatura, por ser a que melhor conheço.  

Começo por mencionar dois factos. Primeiro, o lançamento, no passado dia 9 deste mês de setembro, em Lisboa, da obra Safras de Um Triste Outono, do poeta cabo-verdiano Arménio Vieira, prémio Camões 2009, publicada pela editora também cabo-verdiana Rosa dos Ventos. Segundo, a premiação da poeta são-tomense Conceição Lima pelo conhecido site internacional de literatura traduzida (para o inglês) Words without Borders, juntamente com três outros poetas mundiais. Nenhum desses dois factos foi notícia nem em Portugal nem no Brasil, onde os respetivos autores são relativamente conhecidos.  

A verdade, nua e crua, é esta: pesem os esforços da academia - sobretudo, diga-se, no Brasil - para conhecer e divulgar as literaturas africanas de língua portuguesa, as instâncias que ajudam a constituir o chamado "mercado", isto é, as editoras, os eventos e a imprensa, prestam uma atenção literalmente episódica ao que se produz em tais países. Mais grave ainda: quase sempre, as escolhas dessas instâncias não escondem os seus preconceitos ideológico-culturais, que alguns, nem sempre com razão, mas legitimamente, poderão confundir com fatores étnicos.  

Como entender, por exemplo, que o Festival de Poesia de Lisboa não tenha convidado nenhum poeta africano de língua portuguesa realmente conhecido como poeta? Se a maka eram dificuldades logísticas, aí vai uma lista de nomes de poetas africanos que moram na capital portuguesa: o próprio Arménio Vieira, o igualmente cabo-verdiano José Luís Tavares, o moçambicano Luís Patraquim e os angolanos Ana Paula Tavares e Zetho Gonçalves. Certamente haverá outros, que lamento não conhecer.  

Outro ato falho foi cometido pelo Prémio Oceanos, alegadamente instituído para galardoar autores de todos os países de língua portuguesa, quando, na sua conta do Instagram, chamou o angolaníssimo José Eduardo Agualusa, semifinalista da edição 2021 do referido prémio, de "escritor português". É como se apenas fizesse sentido que autores portugueses (e brasileiros) fossem dignos do prémio em questão.  

Por fim, não podem também ser ignoradas as culpas que têm nesta matéria os próprios países africanos de língua portuguesa. Para resumir com uma frase, direi que, de um modo geral, os mesmos pouco ou nada têm feito para internacionalizar a sua própria literatura.  Este assunto não se esgota aqui. Em próximo artigo, tentarei sugerir algumas ideias para promover um verdadeiro intercâmbio literário entre todos os países de língua portuguesa.  

Escritor e jornalista angolano, diretor da revista África 21 | Diário de Notícias, 28.09.2021

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terça-feira, 28 de setembro de 2021

MORRE UM POUCO DE NÓS COM A PARTIDA DE CRISTÓVÃO MÁRIO KAJIBANGA (clicar no título e na imagem para ouvir áudio)

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Tomei conhecimento com pesar profundo da partida de Cristóvão Mário Kajibanga, o eterno homem de cultura em terras de Benguela e patrono do grupo cultural Bismas das Acácias. Para além de ter sido sócio-gerente da editora KAT, pela qual publiquei Consulado do Vazio, meu poemário de estreia, foi colega nas andanças da ONG's, sendo nós pela AJS (Associação Juvenil para a Solidariedade, da qual fui presidente/coordenador executivo) e ele pela ADRA. Neste âmbito Kajibanga foi frequente painelista (a custo zero) do programa de debate Palmas da Paz, mais tarde Viver para Vencer, o qual realizei e conduzi por meio de Rádio Morena Comercial sob financiamento da USAID, Embaixada americana, PNUD/Fundo Global e Médicos del Mundo (entre 2003-2011). O prémio Provincial de Cultura e Artes, que me foi atribuído pelo júri liderado pelo académico ArJaGo, em função da dedicação à divulgação da língua e cultura umbundu através do conto e das novas tecnologias de informação e comunicação, aconteceu durante o mandato de Kajibanga como Director Provincial da Cultura. Foi também com ele nas vestes de Director da Rádio Mais que quase fui recrutado para assumir a área de informação na iminência de abertura da estação no Lobito, mediante êxito nos testes de locução e entrevista conduzida por Kenia Sandão (negociação entretanto mal sucedida ao fim de alguns encontros em função das condições que coloquei). Discordamos muitas vezes e em vários aspectos mas não posso deixar de assinalar a simplicidade e o fácil trato de Kají. O último contacto que mantive com ele ocorreu nos estúdios da Rádio Benguela, no dia 08 de Janeiro, já de máscaras e tudo por conta da abominável pandemia, para debater sobre Cultura Nacional, sob condução de Gilceu de Almeida e Paulo Stone da Conceição. Por tudo isso, posso dizer que vai uma parte do nosso orgulho com a partida de Kajibanga.

Obrigado, ó patriota Kajibanga, os pêsames à família e à classe artística do seu Patissa.
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Cristóvão Mário Kajibanga enluta cultura angolana


Faleceu hoje na cidade de Benguela Cristóvão Mário Kajibanga, homem de cultura e ex-Director Provincial da Cultura. Natural do Moxico, o cinquentenário residia em Benguela há mais de quatro décadas, tendo desenvolvido actividades nos ramos da educação, cultua e desenvolvimento comunitário.

LEMBRAR BENGUELA COM GRATA MEMÓRIA DE KAJIBANGA
Em Maio de 2008 a editora KAT, representada por Cristóvão Mário Kajibanga (à direita), e o então membro da sociedade civil e jornalista freelance, Gociante Patissa, que na ocasião era também Editor do Boletim A Voz do Olho, jornal comunitário da AJS (Associação Juvenil para a Solidariedade, no Lobito), lançavam na cidade de Benguela o livro Consulado do Vazio, poemas deste último. Tivemos a honra de ser o professor universitário Francisco Soares a fazer a apresentação formal, uma sugestão da amiga Lena Sebastião. O êxito do evento é também devido ao director da Rádio Morena Comercial, José Lopes de Almeida Júnior, que apadrinhou a vertente da divulgação e cedeu o recinto. A imprensa como um todo tem sido de um amparo impagável, desde os gestores dos órgãos aos jornalistas de modo geral.
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domingo, 26 de setembro de 2021

Crónica | Você vai subir com peixe seco no ar condicionado?!

Viajar de transporte colectivo é dos mais representativos miradouros das nossas mais incómodas pobrezas existenciais, uma das quais, a mais incisiva quiçá, a do bom-senso que sucumbe sem poupar gerações. É a tese da conterra após uma aventura interprovincial no feriado prolongado do herói. Mas como apriorismos não pagam dívidas, foi assim…


Encafuada na capital do capital capitulada por manha de uma certa pandemia, na primeira oportunidade de integrar delegação para inaugurações ao centro e sul, embarcou! Quão bom é reencontrar verdejantes solos infinitos no horizonte, emprestar os pulmões longe do empestado! Decidiu permanecer mais duas noites, seu lugar no voo voltando vazio.


No domingo que sucedeu a um prolongado de matar saudades, fez-se a conterra à paragem de autocarros, Macon na opção, bilhete comprado de 8h45, lugares marcados. Era nove no assento à janela, um nove que dobraria para coincidir com a hora de partida, porque certamente há de existir algum lugar onde Angola signifique ligeiro atraso.


Ela usa o truque bem aprendido dos anos de atendimento ao passageiro noutro sector, o da aviação civil, que isso de técnicas é um calo que nunca mais nos larga. Em situação daquela coisa aí que nos demanda açaime, nada melhor do que o banco ao lado vazio. O machimbombo modernizado parte do terminal de Benguela, uma finta na Catumbela, porém no Lobito impera a bexiga. Alguns Pax em trânsito desembarcam em brasa.


Vai-me desculpar mas este lugar é meu, reivindica a conterra. O outro lugar não está livre? Retruca a outra. Está mas os lugares estão marcados, é só seguir no bilhete… se reparou, há até garrafa de água na bolsa do assento, vim sentada aqui. A invasora, cara feia, levanta-se. Eu também o meu lugar é aquele, já encontrei já essa mana sentada. Assim vou fazer como? Antes de a legítima dizer o não sei da praxe, a invasora da invasora, carapuça nos cornos, cuja filha ocupava assento quando era suposto ir ao colo, refila: no autocarro tem muitos lugares, meu bilhete comprei ontem, não tem número!


A conterra por uns instantes rememora Mayday, desastres aéreos, documentários do Natgeo e a razão de ser dos lugares marcados conforme o manifesto. Em caso de sinistro fica mais fácil identificar quem ia onde. Mas dará tempo de palestrar? Perdoai-as, senhor.


A invasora, que tal como a conterra e a invasora dois ia na casa dos 40 e tal, prossegue passivo-agressiva. Então assim vou sentar aonde se eu ir lá atrás tiro tudo? Eu também!, responde a invasora dois. Não estás a ver até já preparei o saco? Eu no fundo vomito bwé. E lá se acomoda a invasora no banco dez, na coxia, mas não pára quieta. Agora liga a música no seu telemóvel e murmura o louvor. Ah, não tem auscultador?! Pergunta de retórica a conterra, auxiliada pela expressão corporal policial que logo aborta a DJ. Caramba, essa gente então como é? Já imaginou se todos tocarem suas músicas?!


Bem, ainda antes de deixar o terminal batia-lhe o ombro um ancião em jeito de favor. Ajuda só a controlar essa menina, vai descer no Cabo Ledo. Aparentava ter uns dez anos. Vai-me desculpar, paizinho, o meu trabalho não permite assumir esta responsabilidade. E pensa consigo mesma: menor desacompanhada, sem documento, sem termos de responsabilidade... estamos doidos ou o quê?! Não tardou que outro jovem aceitasse.


No poeirento Sumbe capital do Kwanza Sul (que me perdoe o padroeiro da toponímia colonializada, por não escrever com C de cu), aquela paragem para troca de motoristas, sempre bem aproveitada para compritas. Quem desce não reconhece o bafo no interior do machimbombo. XÉ, Ó SENHOR! Indigna-se um jovem. Você vai subir com peixe seco no ar condicionado?! O visado faz silêncio ao saco preto com duas vistosas tábuas de corvina escalada. WEY, CHAMA O MOTORISTA! Se a gente soubesse, também era subir com nosso cabrito que metemos no porão. Os demais apressam-se a abrir as janelas, vamos morrer com esse cheiro no AC, oh pai do Céu! E lá o motorista recolhia o peixe.

 

A passar o Longa, lá atrás ouve-se música enlatada do telefone de alguém com notório mau ouvido. Ninguém protesta. Dessa vez a conterra, que não se imagina vivenciar algo idêntico num avião, engole em seco. Só o letreiro do barbeiro tio Toy para desanuviar.


Já embutidos com churrasco de galinha rija, refrigerantes e cervejas, intervalados com os vómitos de tirar o próprio fígado protagonizados pela invasora da invasora, os pax desinibem-se. Minha mulher quando está grávida o desejo dela é fodido. Espera ainda, interrompe outro, escuta ainda o azar do meu amigo: dia seguinte ao casamento a mulher já lhe ligou, querido traz pão. Gargalhadas. Dizia eu, a minha mulher grávida só quer cheiro da fossa, fica mesmo aí a inalar, bafo de cocó é que lhe faz bem.


A conterra, que vem adiando a maternidade, não sabe se Neto, lá na solitária tumba, ri, faz poema, faz tiro ou prepara uma injecção letal para varrer de vez a estirpe do homem novo que não se recomenda para semente. De qualquer modo, falta pouco para chegar, o destino é terminal do Rocha. Lia-se no letreiro sonante no para-brisas via Gamek.


À entrada do Benfica, o motorista anuncia seco e irredutível, no relógio 19h30, pela hora, vou já para Viana, quem vai na cidade desce já aqui no triângulo da via expresso. Incrédula, a conterra vê os Pax feitos cordeiros. Atirada ali à sua sorte, foi pela sorte protegida até chegar à casa onde de imediato lavrou um e-mail de protesto. O mesmo teor remeteu no espaço de reclamações no site da transportadora. Pode ser que ainda antes da segunda vinda de Cristo a Macon formule desculpas. Melhor se conta como ficção.


Gociante Patissa | Luanda, 26 Setembro 2021

 

 

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quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Opinião | Porque perdemos todos na briga judicializada entre entre o vice-procurador e o jornalista

Estando aprazada para o dia 13 deste mês a sentença, gostaria muito que o jornalista Carlos


Alberto ganhasse a causa no processo movido contra si pelo vice-Procurador Mouta Liz por crime de difamação e calúnia (conforme o cartaz), na sequência de uma série de reportagens no seu canal A Denúncia sobre alegada apropriação ilegal e abusiva de terreno de pacato cidadão pelo dignitário para fins particulares .

Não é que afiance os excessos, adjectivos ou entusiasmo do redactor/repórter, mas porque seria uma perigosa jurisprudência prender jornalistas, encerrar órgãos ou proibir gestores de frequentarem as suas próprias empresas de comunicação social como medida de coação pessoal, na medida em que não há memória de tal ter ocorrido com profissionais no exercício da actividade quando os visados são "apenas" cidadãos comuns. Não é que também não reconheça legitimidade em Mouta Liz (neste caso como cidadão em litígio particular) de ver reparados os danos à sua imagem e reputação, até porque nestes defendi sempre que cabe aos tribunais arbitrar, não devendo os jornalistas quando "apertados" por coisas que publicaram se fazerem de vítimas. A razoabilidade deve imperar.

A questão é que podemos hoje andar emprestados a outras variantes da comunicação e não só, porém não deixamos de ser cidadãos com consciência cívica enquanto jornalistas, ramo ao qual volta e meia retornamos. E nessa qualidade defendo que precisamos de um sistema de justiça/Direito eficiente, do mesmo jeito que precisamos de um jornalismo investigativo acutilante em defesa do interesse público e da justeza social, de uma sociedade civil ética e coerente. A democracia carece deste equilíbrio ou então perdemos todos e bem perdidos! Ainda era só isso. Obrigado Gociante Patissa | Luanda, 09 Setembro 2021 |
www.angodebates.blogspot.com imagem 2: Carlos Alberto (à direita), ladeado do actual secretário-geral do Sindicado de jornalistas angolanos, Teixeira Cândido (à esquerda) - arquivo Manifexto
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A Voz do Olho Podcast

[áudio]: Académicos Gociante Patissa e Lubuatu discutem Literatura Oral na Rádio Cultura Angola 2022

TV-ANGODEBATES (novidades 2022)

Puxa Palavra com João Carrascoza e Gociante Patissa (escritores) Brasil e Angola

MAAN - Textualidades com o escritor angolano Gociante Patissa

Gociante Patissa improvisando "Tchiungue", de Joaquim Viola, clássico da língua umbundu

Escritor angolano GOCIANTE PATISSA entrevistado em língua UMBUNDU na TV estatal 2019

Escritor angolano Gociante Patissa sobre AUTARQUIAS em língua Umbundu, TPA 2019

Escritor angolano Gociante Patissa sobre O VALOR DO PROVÉRBIO em língua Umbundu, TPA 2019

Lançamento Luanda O HOMEM QUE PLANTAVA AVES, livro contos Gociante Patissa, Embaixada Portugal2019

Voz da América: Angola do oportunismo’’ e riqueza do campo retratadas em livro de contos

Lançamento em Benguela livro O HOMEM QUE PLANTAVA AVES de Gociante Patissa TPA 2018

Vídeo | escritor Gociante Patissa na 2ª FLIPELÓ 2018, Brasil. Entrevista pelo poeta Salgado Maranhão

Vídeo | Sexto Sentido TV Zimbo com o escritor Gociante Patissa, 2015

Vídeo | Gociante Patissa fala Umbundu no final da entrevista à TV Zimbo programa Fair Play 2014

Vídeo | Entrevista no programa Hora Quente, TPA2, com o escritor Gociante Patissa

Vídeo | Lançamento do livro A ÚLTIMA OUVINTE,2010

Vídeo | Gociante Patissa entrevistado pela TPA sobre Consulado do Vazio, 2009

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