segunda-feira, 22 de março de 2021

Crónica | UMA NOVA GUERRA QUE O INTERIOR NÃO INTERIORIZA

Abracei no prolongado o convite do mano Lauriano Tchoia para conhecer Nambuangongo, Bengo


província, primeira região militar dos anos de Angola guerrilheira. Ia ser outra aventura sem compromisso. É como prefiro conceber as deslocações ao interior onde não se pode esperar muito em termos de alojamento e serviços. O turismo vale mesmo só como colírio para os olhos intoxicados da city.

 

Conforme a baixa cinzenta fica para trás, ganha lugar o verde incitado por uma chuva que procura desmentir os efeitos da estiagem, na ordem dos três meses, que já tanto empobreceu famílias e mercados. Cacuaco dilui as fronteiras de Luanda pela vívida clorofila, o verde da diversidade vegetal que se estende e é de encher os olhos.

 

Não tarda, é Caxito (podia bem ser Coxito). A capital da província abre as portas mas não se deixa atravessar em linha recta, tapumes e contornos vibram em nome de um programa de investimentos públicos que soa PIIM. Salta à vista a disposição de agentes da polícia num só local. Está explicado. Há manifestação e megafone. Jovens empunham cartazes por um Bengo mais desenvolvido, menos desvios de verbas e por um adeus à Mara, governadora.

 

Deve faltar pouco para chegar, diz-nos o faro, libertos de pesquisa prévia e do GPS. A estrada parece alongar-se de propósito, o serpentear por entre as serras é agravado pelas lombas no asfalto. De quando em vez preenchem o quadrante aldeões que inundam o mercado luandense de mandioca, kizaka e banana, também chineses e serviçais locais da exploração de inertes (alivia notar que ultimamente já não vão os orientais ao volante dos seus pesados camiões). 

 

Volvidas quatro horas chegamos a Onzo, paragem-mercado informal que faz cotovelo para Muxaluandu, comuna sede do município. Aguardam-nos mais 14 quilómetros, diz-nos, solícito, o agente regulador de trânsito (que não existe). A escassos metros, em lareira a céu aberto um comerciante tem dois macacos a assar, seus dentes cerrados. Um terceiro, rosto ensanguentado do procedimento que o neutralizou, beira o lume. Não faltam é clientes para degustarem nacos do nosso “ancestral” darwiniano. Mas logo me reprimo pela instintiva repulsa ao “canibalismo”. Ora, o que difere o macaco do boi e da galinha que degusto e bem?

 

Passamos por Kixiku e na memória a satisfação de trilhar a banda da banda musical Vozes do Nambua. Às 15h fazemo-nos a um quintal com ares de hospedaria, mais de 300 km. Está em obra, especulamos. Ao fundo um senhor, estômago avantajado e outras saliências mais, desmente. Quarto ainda temos. As condições são, digamos, enfim... A fome ronca, não há ali socorro. Somos orientados a ir à praça. E lá vamos nós. Funji de carne de gazela e kizaka. Fiquei-me pela kizaka.

 

Pela manhã, deixamos Muxaluandu onde nos foi vetada a foto de cliché com a Administração Municipal ao fundo. Tirem só na escola, também sai bem, instruiu o guarda em serviço, que à nossa chegada abandonara por uns instantes o posto para ir buscar a sua máscara, por sinal a única que constatamos em quase 12 horas que andamos pelo interior do Bengo. A pandemia da Covid é uma nova guerra que o interior ainda não interioriza, se é que já o fez.

 

Já em Cana-Cassala, 35 km mais para cá, o giro levou-nos à área residencial dos governantes. A um deles, que deduzo administrador-adjunto, perguntamos o significado do nome da comuna, no que foi humilde em dizer que desconhecia e recomendou-nos abordar a comunidade. Fiquei a pensar no que mais o governante não desconhecerá da localidade. 

 

Gociante Patissa | Nambuangongo, 21 Março 2021 | www.angodebates.blogspot.com

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terça-feira, 2 de março de 2021

LIVRA-ME DOS HERÓIS (poema inédito)

LIVRA-ME DOS HERÓIS (poema inédito)

 

Com a tua suprema licença, senhor,

Que te encontre de óptima disposição

Pois só boa, sou a recear, não bastará

Ao fim de tanto estertor

Pais mães indefectíveis servos rogando

Rogando, rangendo os dentes

Impotentes, humilhando-se pela tua glória

até ao último pingo do seu viver

E tu sempre sereno, senhor

Bem-aventurados os que temem por igual

a tua graça e a tua ira

 

Não te combato, senhor

Aliás, quem seria eu

Para além da culpa por herança

Rancorosa do Eden?

Prostrei-me, senhor

Os anos mais inocentes do meu existir

Havias de proteger os meus

Havia rumores de seres justo

Havias de compensar os teus servos

Muito mais não se te podia pedir 

 

Não sei se calejado pela sorte que me deste

Este alvará de tantos ver partir 

Já podemos indagar

Os teus embaixadores em terra não deixam

Quando foi mesmo que perdi a fé?

Porquê?

Na tua omnisciência lá saberás

És grande, talvez grande demais

Demais, demasiado

Excessivamente grande

 

Estás confortável na tua posição, senhor

Fico feliz por ti

O que contar é que não te falta

Como quem contemplou a escravatura

As guerras que perduram

Como perdura o diabo sobre o qual podes

Enfim, o bicho homem à tua semelhança

Em todo o caso, podendo, livra-me dos heróis

Dos corajosos, dos teimosos, dos super optimistas

Do surdo ocasional aos conselhos

Ainda quero viver

ainda que atrás de um açaime cirúrgico 

Que mal sabe dizer se é tecido de facto 

Amém 

 

Gociante Patissa | 2 Março 2021 | www.angodebates.blogspot.com

 

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