sábado, 23 de setembro de 2023

Poema inédito | OS PAIS JANELAM (*)

 Poema inédito | OS PAIS JANELAM (*) 


 

Os pais janelam,

pais nossos de cada um

Janelas pelas quais 

Cá andamos

O janelar pelo qual

Ainda cá moram 

Depois que partem

 

Os pais janelam

Para não portarem

Portas seriam largas

E de larga já nos basta

a tábua

Que mal nasce a semente

 

Bem cabem na janela

Mãe e pai

Justa medida

Que nos cabe

O apertado abraço

A festinha tatuada na derme

O fumegante manjar à mesa

 

E por este janelar

moldura da íris umbilical

Ardente saudade futuro polido

Qual dedo anelar 

Janelas brisam por dentro

Premente, meu pai, oh mãe

No achado da memória

É das janelas o trinco fingido

 

Gociante Patissa | L. | 23 Setembro 2023 | www.angodebates.blogspot.com

 

(*) à memória de Víctor Manuel Patissa, 1946-2001

 

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quarta-feira, 20 de setembro de 2023

NÃO TEM PERNAS O TEMPO (Extractos do primeiro capítulo da novela)

Os que odeiam a cidade de Luanda são muitos, e têm razão. Os que a amam não são poucos nem estão errados. Aqueles a quem Luanda não aquece nem arrefece são vários, e estão igualmente certos. É que a capital é um eterno modelo de contrastes, assim entende Man’Toy. Ele, inclusive, não pensou duas vezes quando, por coincidência, saiu a carta de condução e surgiu o primeiro emprego, o de motorista funerário.


Dezoito quilómetros separavam o muceque de Man’Toy do serviço, uma distância que servia de referência para elogios incontáveis pela singular pontualidade, resultando com isso o elevar da confiança aos olhos do patrão, desde que se fundou a empresa. Isso, sem esquecer que, por muito que o charme do uniforme tentasse disfarçar os desníveis sociais entre os funcionários, Man’Toy não passava de “sanzaleiro” para a maioria de seus colegas... inferiores hierárquicos. “Lá onde moro, a luz tem poder de escolha, vai e vem quando quer”, justificava-se com ironia todas as vezes que aparecia com o uniforme mal engomado, ao que os colegas retribuíam com breve risada.

(...)
De qualquer modo, não deixava de soar estranho ver o motorista apresentar condolências à viúva, que ia sentada entre o volante e a sogra. Volta e meia, lá estava ele: “sinto muito, minha senhora, condolências! Mas tudo passa, a vida tem muitas surpresas”.
(...)
Para não fugir à regra, a viúva ia soltando clamores sobre as vantagens do falecido, para o agrado da sogra, em cujo ombro esfregava uma ou outra lágrima. Mas quando por exemplo dissesse “ai, Dimas, como ainda sinto cócegas dos teus bigodes!”, era com algum desagrado que o motorista se lembrava da desvantagem de ser imberbe. E lá se foi o dia. Mais outros da semana se seguiram.
(...)
— Na nossa profissão, não podemos misturar prazeres...
— Chefe, mas desculpa, de que prazer estamos a falar?
— Acho que já te disse isso várias vezes, ó Toy. Nesse trabalho, não podemos misturar prazeres. É como quem vende drogas, não as pode consumir. Aqui é encarar as lágrimas dos enlutados como simples ferramenta rotineira, portanto nada de meter emoções.
— Sei, sim, faz parte do contrato. Nunca esqueço que quando estou em serviço, é porque alguém está de luto.
— Mas... oh caramba!, como explica essa exposição acusatória sobre conduta pouco digna?! Bem, deixa ler uns trechos da exposição da mãe do falecido, a sogra da mulher:
“À Agência Funerária Portinhola do Paraíso. Vai nesta missiva o meu mais vivo repúdio pela atitude devassa implícita da empresa, no funeral de meu filho, cuja honra defendo pelos bons e sagrados costumes (...) Não permito que se assistam a assédios de viúvas, como aconteceu em plena cabine de vossa viatura, a poucos centímetros da urna, o que, como explicaram os entendidos, levou o falecido a irritar-se e soltar espumas pela boca e narinas, não obstante o tratamento previamente feito ao corpo (...) Ou o senhor toma medidas, ou terei que gritar ao mundo”.
Feita a leitura, com um tom que seria de se dizer dramático, se não fosse sobranceiro, o patrão prosseguiu:
— Sabes o que faz surgir a concorrência? As nossas falhas, a conduta que compromete a reputação da Portinhola! Tu achas que empreendedorismo é suficiente para manter o monopólio no negócio? Claro que não! Já imaginaste se a exposição cai nas mãos do bispo, secretário do partido, enfim, nas pessoas que protegem a honra da Terra?
Gociante Patissa, in “Não Tem Pernas o Tempo”
União dos Escritores Angolanos (UEA). 1.ª Edição: Luanda, 2013.Colecção: «Sete Egos» no 33
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