Os que odeiam a cidade de Luanda são muitos, e têm razão. Os que a amam não são poucos nem estão errados. Aqueles a quem Luanda não aquece nem arrefece são vários, e estão igualmente certos. É que a capital é um eterno modelo de contrastes, assim entende Man’Toy. Ele, inclusive, não pensou duas vezes quando, por coincidência, saiu a carta de condução e surgiu o primeiro emprego, o de motorista funerário.
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De qualquer modo, não deixava de soar estranho ver o motorista apresentar condolências à viúva, que ia sentada entre o volante e a sogra. Volta e meia, lá estava ele: “sinto muito, minha senhora, condolências! Mas tudo passa, a vida tem muitas surpresas”.
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Para não fugir à regra, a viúva ia soltando clamores sobre as vantagens do falecido, para o agrado da sogra, em cujo ombro esfregava uma ou outra lágrima. Mas quando por exemplo dissesse “ai, Dimas, como ainda sinto cócegas dos teus bigodes!”, era com algum desagrado que o motorista se lembrava da desvantagem de ser imberbe. E lá se foi o dia. Mais outros da semana se seguiram.
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— Na nossa profissão, não podemos misturar prazeres...
— Chefe, mas desculpa, de que prazer estamos a falar?
— Acho que já te disse isso várias vezes, ó Toy. Nesse trabalho, não podemos misturar prazeres. É como quem vende drogas, não as pode consumir. Aqui é encarar as lágrimas dos enlutados como simples ferramenta rotineira, portanto nada de meter emoções.
— Sei, sim, faz parte do contrato. Nunca esqueço que quando estou em serviço, é porque alguém está de luto.
— Mas... oh caramba!, como explica essa exposição acusatória sobre conduta pouco digna?! Bem, deixa ler uns trechos da exposição da mãe do falecido, a sogra da mulher:
“À Agência Funerária Portinhola do Paraíso. Vai nesta missiva o meu mais vivo repúdio pela atitude devassa implícita da empresa, no funeral de meu filho, cuja honra defendo pelos bons e sagrados costumes (...) Não permito que se assistam a assédios de viúvas, como aconteceu em plena cabine de vossa viatura, a poucos centímetros da urna, o que, como explicaram os entendidos, levou o falecido a irritar-se e soltar espumas pela boca e narinas, não obstante o tratamento previamente feito ao corpo (...) Ou o senhor toma medidas, ou terei que gritar ao mundo”.
Feita a leitura, com um tom que seria de se dizer dramático, se não fosse sobranceiro, o patrão prosseguiu:
— Sabes o que faz surgir a concorrência? As nossas falhas, a conduta que compromete a reputação da Portinhola! Tu achas que empreendedorismo é suficiente para manter o monopólio no negócio? Claro que não! Já imaginaste se a exposição cai nas mãos do bispo, secretário do partido, enfim, nas pessoas que protegem a honra da Terra?
Gociante Patissa, in “Não Tem Pernas o Tempo”
União dos Escritores Angolanos (UEA). 1.ª Edição: Luanda, 2013.Colecção: «Sete Egos» no 33
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