A alma das localidades reside nas várias camadas que pintam suas vivências e referências. O que foi, o que deixou de ser e o que era para manter qual fio do novelo para ligar novas narrativas, novos protagonistas, peças de uma mesma miçanga. E se há quem ama de verdade uma determinada cidade, há que sublinhá-lo, são as gentes da periferia. Só elas sabem o valor de tomar banho e trilhar quilómetros para apreciar a baixa, suas montras, o parque industrial, seus ricos, fazendo cada um desses ires e vires um acontecimento.
Certa vez, recolhida a bagagem no pobre aeroporto da província, abundante província de chuvas e chuviscos sem aviso prévio, apressámo-nos em ocupar os bancos do Land Rover de volante à direita, na porta boneco de criança vermelha, antena gigante no focinho do rádio VHF. Um rádio de se dizer com pulmão de pitbull no modo de roncar, misturado com uma resma de termos estranhos, uns quantos alfas, tangos e sierras e copiados e afins.
No lugar de co-piloto ia uma cinquentona alta, esbelta, cabelos loiros, luzir prateado na dentadura, entre a cura e a estética. Era Susan Dow, australiana chefe da consultoria que nos aguardava para 30 dias ao serviço da Save The Children UK. Recrutara alguns de nós na sequência de um seminário havido em Luanda, sobre a intervenção baseada no direito versus a intervenção baseada na necessidade.
Fazíamo-nos ao Huambo pela primeira vez num contexto em que o País ensaiava a transição da emergência para o desenvolvimento, com o Programa Alimentar Mundial (PAM) na iminência de dar por finda a pertinência da assistência humanitária às populações do interior da província, muitas das quais regressadas da Zâmbia. Em Outubro de 2005, nos três anos que se seguiram ao fim das três décadas de guerra civil era impensável desafiar as quatro centenas de crateras que moravam no lugar do asfalto ido de Benguela. De peixe não salgado só o carapau das peixarias, que sabia a sal e cheirava a metal, tais eram os longos meses que o pitéu passava nas câmaras de congelação.
A nossa cicerone fazia um ponto prévio, assente no trauma das palavras-chave do cicerone de quando ela conhecera a cidade, altura em que tudo sobre a vida da localidade se narrava no pretérito imperfeito. “Isto era”. Contava a mulher que ao fim de duas horas, já lhes doía a cabeça. Huambo era a cidade do “Isto era”. Com as devidas distâncias, ultimamente o Lobito, "cidade em marcha" ontem, tende a beirar o idêntico.
A conduzir da zona alta para a baixa, a retina cobra contentores de lixo. A tentação de ligar e choramingar ao novo Administrador, nosso amigo por sinal, coça. Nada grave, só a modalidade mudou, agora é recolha de moto porta-a-porta. Isto era Angases, indústria de oxigénio e afins, agora é loja do eritreu. Isto era era Indagro, concessionária de Mazda, agora só o pó manda. Isto era Zuid, gigante de electrodomésticos. Isto era restaurante célebre junto à Casa do Pessoal do Porto do Lobito. Isto era Stand Foto, isto era Foto Cine, isto era Angola Telecom. Isto era Avozinha Trading. Isto era Tamariz. Isto era…
À cidade do Lobito já só pedimos que nos ajude a ajudá-la a envelhecer com dignidade.
Gociante Patissa | 25 de Dezembro de 2024 | www.angodebates.blogspot.com
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