quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Benguela choca pelo não uso de máscaras

Em pouco menos de dez horas de estadia em Benguela, o choque é inevitável dado o desleixo individual e colectivo flagrante na via pública. Praticamente ninguém (mais) usa máscara, já nem falarei da ausência de frasquinhos de álcool ou solução em gel, da saudação aos punhos e cotovelos recomendados. Bombas de combustível, farmácia, supermercado, via pública, tudo igual ao litro.

Não sei o que é pior, se as incertezas crónicas ligadas às políticas mundiais de resposta à Covid ou se os cidadãos corajosos que dispensam a prevenção, marimbando-se para a regras de contenção da propagação da pandemia, seja pela narrativa negacionista, seja pelo discurso triunfalista de ter já tomado as doses completas da vacina.

Eu cá faço parte dos que escolheram ficar do lado da prudência, na consciência de se tratar de uma "bolha" como opção - e disso não há que ter vergonha - no sentido de contribuir até onde me for possível fazer a diferença. Do lado oposto há os corajosos, os decididos, que dispensam o uso de máscaras ou distanciamento, pena é que estes corajosos também não se limitam ao restrito espaço dos seus lares. Só que estes corajosos acabam expondo os demais cidadãos, o que acaba por ser no final das contas uma liberdade em contramão, uma imposição da insensatez. Estamos fartos desse já velho novo normal? Estamos, sim. Mas neglienciar nem por isso compensa. Inicia amanhã um novo ciclo de regressão, para não dizer endurecimento, no plano legal, das medidas de prevenção da Covid-19, na esteira do Decreto anunciado esta noite, no dia em que as estatísticas superaram os quatro dígitos, mais de mil e 100 casos.

À parte os profissionais de saúde e defesa, que têm de enfrentar na primeira linha o mal, bravo mesmo seriam aqueles que duvidam da existência da doença, se recusam a usar a formas de prevenção e como tal... não saem de suas moradias, não expõem ninguém ao risco de contágio. Aí, sim, a cara lavada faria sentido!

Votos de festas felizes e cuidemo-nos!

Gociante Patissa, 23 Dezembro | www.angodebates.blogspot.com |
(Imagem ilustrativa do site Luxemburger Wort)

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domingo, 5 de dezembro de 2021

Crónica | Quanto custa denunciar o corrupto à IGAE?

É com esta indagação de retórica que me dou ao luxo de iniciar esta reflexão solta e cidadã. Vem a propósito das recorrentes reportagens com flagrantes de detenção de fiscais, polícias e demais servidores públicos a partir de denúncias do cidadão via terminal 119, da IGAE (Inspecção Geral da Administração do Estado).

 
A série de enredos é longa. No trânsito, no ramo imobiliário, no comércio, na justiça. Tão omnipresente como a extorsão e o oportunismo, males que a sociocultura mwangolê há bwé que os amparou: "gasosa", "cabritismo", "mixa", "saldo", etc.

 
Com a agenda do executivo do presidente João Lourenço, voltada para o combate à corrupção e para a consequente moralização da sociedade, cresceu em mediatização a pauta. Só que sempre que se desnovela, senão sempre pelo menos na maioria das vezes, a trama envolve valores acima da metade do salário mínimo da função pública. Podemos afirmar que as vítimas denunciariam na mesma à IGAE caso o suborno fosse confortável ao bolso?

 
É necessário começar de algum lado, mas pode ser ilusório tomar tais flagrantes por indicadores satisfatórios de viragem para a almejada sociedade mais ética e patriota. Um combate à corrupção que se foque mais no corrupto do que na excessiva burocratização pode fracassar. É a complexidade dos processos que fomenta atalhos. Soma-se a isso outro fenómeno, o da elegibilidade. Subscrevo que o próximo combate terá de ser contra a incompetência.


Eu ainda hoje me vejo obrigado a corromper, não me orgulho em nada mas também não abraço a ingenuidade. E como só posso falar por mim, partilho alguns factores. Em 2014 adquiri o terceiro carro da minha vida. Até à data em que me desfiz do ligeiro, sete anos depois, continuei a carimbar verbete, nunca vi a cor do livrete. No mesmo ano, deixaria por esquecimento a carteira de documentos e cartões bancários num supermercado, aonde regressei volvidos dez minutos. Sugeri então que compulsassem o fluxo para aferir se o ladrão identificado estava cadastrado via cartão da loja. Tinha de ser o Serviço de Investigação Criminal (SIC) a fazê-lo.

 
No SIC fui bem atendido. O investigador que me foi "cedido" é que não pôde grande coisa. Aceder ao vídeo de CCTV sem autorização escrita da Procuradoria Geral da República (PGR)? Passados três dias, na PGR o processo ainda não tinha número, era para ir passando, crimes sem preso envolvido não são prioritários. Moral: desisti da queixa. Ainda hoje me viro com o verbete da carta de condução. A renovação do BI foi graças à amiga de um amigo.

 
Noutro dia fui interpelado na Maianga. O senhor viu o que fez? O que foi, senhor agente? Não sabe que neste cruzamento não se vira à esquerda? Mas não vi lá nenhum sinal, nem horizontal nem vertical. Mas o senhor está a ver mais algum condutor a praticar a mesma transgressão? E lá o homenzinho puxou do seu bloco de multas. Pedi-lhe que atenuasse. Mas atenuar como?!

 
Perante a minha insistência, o regulador de trânsito me impinge o cardápio de um snack-bar, diz que tem fome. O que podes fazer por nós? Era sexta-feira à noitinha, fim-de-semana prolongado. Até terça-feira nada garantia que não fosse extraviar os meus documentos. Que alternativas? Ocorreu-me lubrificar-lhe a mão com dois mil Kwanzas. Por azar, tinha nota de cinco mil. Aí diz ele: como estás a dar de coração, podes seguir; gostei da tua humildade, ya?

 
www.angodebates.blogspot.com | Gociante Patissa | Luanda, 05 Dezembro 2021

(Imagem do Jornal de Angola)

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quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Memória vegetal


Memória vegetal, o fogo, o afago. Todo o amar, abunde mar ou lago, foi antes de mais um bago, aquele bago no peito semeado por sabe-se lá quem, talvez um mago, todavia bem gago🤓 (GociantePatissa). Bom dia e boa semana, minha gente✅

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segunda-feira, 22 de novembro de 2021

terça-feira, 16 de novembro de 2021

Crónica | O REGRESSO DE ISABEL EMERSON, AGORA PELA UNIÃO EUROPEIA

Fiquei a saber com o noticiário da RNA hoje que a antiga boss do NDI (National Democratic Institute), agência americana subrecipente da USAID, Isabel Emerson, de ascendência portuguesa, está de volta a Angola, pelo menos oficialmente, agora nas vestes de responsável da União Europeia, com posição de adjunta de uma das áreas, sempre ligada à temática do desenvolvimento. Por volta de 2003, Isabel Emerson e o seu NDI constituíam a elite de doadores para ONG's nacionais, as quais não podiam obter financiamento directo da USAID senão por meio da World Learning (representada pela luso-canadiana Fern Teodoro) e do IRI (Instituto Republicano Internacional), com cujo representante não cheguei a cruzar. De Isabel guardo a recordação de quando fui contratado para um trabalho pontual de pesquisador de grupos focais para sondagem de opinião de angolanos sobre a expectativa da realização das primeiras eleições depois do fim da guerra, que se especulavam para 2004. Fiz parelha com o Silvério Loth Santos "Vadinho", da Okutiuka, num workshop que teve lugar no quintal do INAC, na Calemba, onde tive o gosto de conhecer o Augusto Santana, um misto de metodólogo e comediante, conheci ainda a Nela (ex-actriz do Julu. Onde anda mesmo ela?). O Santana era também o boss do NCC (National Counseling Center, ONG angolana detentora da Rede Terra). Essa viagem que fiz de avião no trajecto de hora e meia entre Benguela e Luanda pode ter sido a mais desastrosa do meu percurso ao serviço das ONG's, que iniciou com a fundação da AJS (Associação Juvenil para a Solidariedade), em finais de 1999. Explico. Tendo recebido da parte do Zetó José Patrocínio a indicação de participar na pesquisa por indisponibilidade da D. Manuela Costa, comprei a passagem e me enfiei no avião da SAL para depois ser ressarcido, como era usual. Permitam-me transcrever uma parte da crónica da "minha segunda vez em Luanda": Desembarquei às 9h00 no terminal da Sal com aquela pressão no ouvido e que obriga a apertar as narinas com a ponta dos dedos para desentupir. Ainda no aeroporto 17 de Setembro, o amigo Florêncio André, da TPA, pede-me para entregar aos estúdios centrais cassetes de vídeo, matéria urgente para o telejornal. Ia negar?! Um favor à comunicação social era investimento no quadro das relações públicas. Bagagem recolhida, tirei da agenda o contacto que me fora fornecido pelo mestre cabeçudo Zetó José Patrocínio. De um telefone público liguei para o NDI (Instituto Nacional Democrático), ONG americana dirigida por Isabel Emerson. Desculpa, mas deve ser um engano. Não é, venho da parte do projecto Omunga, sou líder da AJS, parceira na Rede Municipal da Criança de Rua do Lobito. Senhor, a reserva está em nome da Sra. Manuela Costa. Pois, estou a substituí-la, o Zetó já tratou disso. Deixa ainda consultar. Um minuto depois: É como disse, não há mesmo como te acolher. Só me restou comprar o regresso no vôo das11h00. Raiva, frustração e humilhação mesmo povoavam. Não tinha telemóvel nem havia telefones nos escritórios, quanto mais e-mail para tirar satisfações com o mestre. A agravar a aflição, dois companheiros de viagem para quem transferi o favor da TPA não aceitaram e lá regressei com as cassetes pensando nas consequências ao repórter por sabotar o telejornal. Posto em Benguela, diz-me o Zetó que fora um equívoco do pessoal logístico. Andava estafado da altitude, desmoralizado pelo USD 220 perdidos. O outro vôo sairia às 15h00. Coloquei todas as variáveis da equação na mesa. Contratos com ONG internacionais aquilatavam sempre o CV, um sonho de fundadores de ONG locais para injectar capital e alicerçar parcerias. Por último, o contrato seria de USD 550, pelo que para quem já perdeu, engolir o sapo e encaixar USD 330 era a melhor opção. Às 16h45 recebia as boas-vindas do senhor Domingos, de Land Cruizer, que ajudou a ver a maka da TPA. Findo o treino, em Benguela entrevistamos homens e mulheres ligados à agricultura, mercado informal, ex-militares, tudo devidamente anotado e gravado em cassetes. O resultado da pesquisa chegou a ser apresentado em livrito, tendo como um dos processadores o economista Justino Pinto de Andrade. Bem-vinda de volta, Isabel, e que não deixes de advogar por mais financiamentos das ONG's nacionais (sobretudo as pequenas). Gociante Patissa, Luanda 16 Novembro 2021 | www.angodebates.blogspot.com | Foto: DW África
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domingo, 14 de novembro de 2021

domingo, 7 de novembro de 2021

SUBVERTER A ESPERANÇA DE VIDA - Gociante Patissa no conjunto de depoimentos sobre o 80.º aniversário do escritor Manuel Rui Monteiro

Manuel Rui Monteiro, o agora octogenário, pertence a uma geração de intelectuais, artistas e actores do nosso processo histórico cuja vida e obra já não cabe na linearidade biográfica do indivíduo mas, na dialéctica da vida, em como nos espelhamos na trajectória que Angola nos lega. Pioneiro na transição entre as décadas de 1970 e 80, anos de guerrilha e revolução, entrelaço Manuel Rui nas aspirações do hino nacional, nas utopias mais nobres do País novo. Chegado ao meio urbano, acho Manuel Rui encarnando em forma de papel o griot que a guerra me roubou no Monte Belo em chamas. "SIM, Camarada!”, livro de capa encarnada, sempre disposto no gabinete do meu pai, em nós da OPA simbolizava a disciplina. Mas vejo também Manuel Rui na pedra do charco em Quem Me Dera Ser Onda, uma sátira que não deixa de denunciar a tensão pós-colonial ainda por resolver entre as classes sociais. É uma pena que por cá chegar aos 80 seja subverter a esperança de vida. Saudades dos avós!” 
Gociante Patissa


(*) depoimento publicado hoje na íntegra no Jornal de Angola a pedido do jornalista e escritor Isaquiel Cori, no dossiê sobre os 80 anos do escritor Manuel Rui Monteiro, convite que aceitei sem perder a oportunidade de refilar antes de quê e tal...)

Leia outros depoimentos na versão online da peça
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quarta-feira, 3 de novembro de 2021

A beleza nunca é triste*


 A BELEZA NUNCA É TRISTE*

Nem os postiços
nem as lembranças
belas
Que é só o mar
no bater das ondas
a tomar o seu banho
nada para desmerecer
as almas
engolidas pela espuma
E se ente soldado é defunto
até voltar da guerra
Tchipa ressuscitou o mundo
na saudade que canta
na frente da chama
cá na mata, a vida é bela, mamã**
mesmo aos olhos do fado
“a beleza nunca é triste”.
Gociante Patissa, Benguela, in «Guardanapo de Papel», 2014, pág. 13. "NósSomos". Vila Nova de Cerveira, Portugal (poema escrito a 27.11.2011)
__________
* O título do poema deve-se à fadista portuguesa Celeste Rodrigues, em entrevista à televisão, em 2011.
**Jacinto Tchipa, músico angolano – Cartinha da Saudade – (década de 1980)
Foto: Fadista portuguesa Celeste Rodrigues (1923 – Lisboa, 1 de agosto de 2018), in TV7Dias



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domingo, 31 de outubro de 2021

Crónica | Rua das relações interiores

Debaixo do prédio há coisa de quinze minutos quando estacionava, vindo da boemia luandense que se seguiu à colectânea Trilha dos Inadaptados, a vida fez questão de imitar a literatura. O flagrante foi curto mas impagável. Já conto, não vá eu ser injusto na ordem de chegadas, posto que este episódio está longe de ser a estreia, ainda que parafraseando George Michael, estrela pop inglesa de feliz memória, seja caso para dizer que a cena há pouco testemunhada de esguelha “is not the first and won’t be the last, it’s just the biggest”.

Tenho a sorte que acompanha os escritores solitários, como a bola para os pontas de lança à boca da baliza. A vantagem é que não temos de recear a incredulidade de leitor/ouvinte do episódio da vez, pois entre a verdade e a mentira, salva-nos a conotação criativa do ofício. Do outro lado do cruzamento, no conglomerado de diplomatas free lance, vi marchar uma individualidade em atavio apropriado à ocasião. Junto à farmácia, no pilar da vitrine de fatos e calçado de preço presidencial, não evitei rever-me na ansiedade do homem de mãos nos bolsos, perfume no ponto, encostado à parede para disfarçar o nervosismo. O mano aguardava naquela condição que não se deseja a nenhum adido de coisas do coração, falo dos instantes que antecedem a chegada de quem mandamos chamar, coração palpitante, mas que as palavras ensaiadas, oh desespero, encravam quando ela diz “fala já, me chamaste porquê?”. Transportou-me por instantes para as memórias de menino e moço “na província”, naquele limbo de gosto e tortura chamado “dicar ou xaxar”. Mas os tempos são outros, o sim na era do SIM chega em linha recta, pelo que tranquei o carro devagar apreciando o filme com aquela invejinha do trono libidinoso do outro. Tudo o mais devagar possível, ouvidos antenados q.b. A mulher chega coladinha a milímetros ao tronco do outro, calções jeans amputados na borda das nádegas, entranhas arrogantes, bolsa reluzente, blusa de alças, penteado executivo. Mas destoa no tom de noticiário, não há sussurros. “Vou-te avisar uma coisa, eu não gosto disso ouviste?”, atira para o embaraço do moço. “Eu quando os meus chefes me ligam é para ir f..., ouviste, né?!” Ele vai a ponto de implorar que fale baixo. “Já me ligaste às seis da manhã, às 14h, à tarde, e ficas só a estragar o meu silêncio. Meu número é para os meus chefes; liga e saio para f... Vamos se respeitar, não admito falta de respeito no meu local de trabalho, ya?” E lá o encontro termina inconclusivo, com o rapaz a sair de cena pelas sombras e penumbras dos postes que mantêm acordadas as diplomatas das relações interiores, passos disparados como cliente derrotado na falta de cobertura pelo preço do bem luxuoso na montra. Voltara? (A série continua) Gociante Patissa, 30 Outubro 2021 | www.angodebates.blogspot.com
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quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Réquiem | HORÁCIO NGANDU E O FIM DA GINGUBA

Um mês qualquer de 2006. Eram 12h e mais coisa, menos coisa, sol abrasador no lombo de um carteiro de circunstância, entre o Alda Lara e a paragem da Cruz Vermelha, serpenteando ali pelas ruelas da Sé Catedral. Mas a fome inventa. A fome sabota passos largos. Vão duas doses de ginguba torrada, garrafa de água é receita fixa na mochila. Há que apressar o passo para ocupar o lugar no Hiace do Lobito, Santa Cruz paragem e escritório, cansado mas satisfeito por ter distribuído todas as cartas-convites. Encho a boca de ginguba e justo neste instante, uma voz ao longe exclama às sílabas de carinho: Go-ci-ante-pa-ti-ssa. A saudação exigia no mínimo uma retribuição calorosa, verbal. Mas com que boca? Embaraçado como só poucos, lá me desvencilhei e rimo-nos à farta da partida que involuntariamente pregara ante a minha trapalhada de locutor que afinal se embutia de ginguba nas horas de aperto. 

 

Era o Horácio Ngandu, operador de som da Rádio Morena Comercial, um gajo do naipe competente e aprazível com quem havíamos desenvolvido cumplicidade, só rivalizava no empenho e criatividade com um Dinho Carlos ou um Manuel Chandicua, em Benguela.

 

As pessoas, passageiras por vocação como bem são, passam. Mas há as que têm a proeza de nos ficarem gravadas na memória por presenciarem aqueles momentos ímpares, talvez segundos, exactamente naquele instante improvável envolto em flagrante trapalhada. Será para sempre essa a lembrança mais imediata que fica do Horácio Ngandu. Hoje tomei conhecimento de que vai a enterrar no Cemitério do Camama às 10h de hoje, ainda ninguém me revelou as causas. Ngandu trocaria Benguela pela capital onde se estabilizou como operativo da Polícia e na sua paixão pelos bastidores das ondas hertzianas, colocado na Rádio MFM. Falamos em tempos sobre os planos que alimentava de escrever um livro.

 

Dar corpo à ONG AJS (Associação Juvenil para a Solidariedade) custou-nos chuva, sol, assaduras e demais desgastes de uma caminhada a começar do zero literalmente, tendo a penas o capital de gerar ideias, neste aprender-fazendo com o ímpeto de mudar o mundo. Como de resto terminam todas as juventudes, mudamos nós, o mundo nem por isso, lá permanece pronto para enfrentar novas utopias. Quanto a nós, éramos no núcleo duro jovens com ensino médio, sonhadores, origem desenrascada, irreverentes mas protegidos pela reputação de gestão rigorosa de património e parcerias. 

 

Por meio dos projectos, muito mais dos produtos de comunicação para cidadania, concretamente os programas de rádio Palmas da Paz e Viver para Vencer (2003-2012) e o do Boletim A Voz do Olho, jornal comunitário, há um somatório de memórias, entre colaboradores, voluntários, convidados, quadro efectivo da rádio, bem como a sua gestão e área comercial, sem esquecer os operadores de som, aqueles que garantiam a emissão. O programa era em directo, intervalando debate com arte dramática, dinâmico como é o pulsar da juventude pensando e debatendo Angola: reconciliação, saúde pública, educação e desenvolvimento comunitário. A mesma equipa polivalente de não mais de cinco imberbes desdobrava-se entre a concepção, condução e fazer de estafeta para assegurar convidados.

 

Repousa em paz, amigo Horácio! Aqui fica a gratidão pelo contributo prestado a nós e à AJS.

 

Gociante Patissa | Luanda 27 Outubro 2021 | www.angodebates.blogspot.com (Imagem: Facebook pessoal de Horácio Ngandu)

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domingo, 24 de outubro de 2021

Diário | Não gostei nem um pouco, sabes, né?

"Moço! Garçon!"
"Já venho. Só um minuto."
"Chega ainda aqui."
"Ok, senhora... A comida não estava boa?"
"Nada a ver, moço! Achas que agiste bem?"
"Não entendi, senhora. É o quê mesmo?"
"A tua atitude foi correcta? Não gostei nem um pouco, sabes, né?"
"Vai desculpar, moça. Mas entendi que pediram a conta e é por isso que trouxe. Não era para fechar a mesa então?"
"Claro que era, né? Nada a ver. Mas porque é que ao trazer a conta, foste logo entregar ao homem, sendo nós dois um casal?"
"Não é de propósito, é só que como normalmente ele é que é o homem..."
"Mas homem só paga, moço! Quem controla é a mulher!... Não é isso, mor?"
"Ai é?"
"Ai é, como assim, moço?!"
"Eh..."
"Tás a ver esse trabalho todo que lhe deste de conferir os gastos? Esse trabalho é meu, ouviste, né?"
Gociante Patissa | Luanda 24 Outubro 2021 | www.angodebates.blogspot.com
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quinta-feira, 21 de outubro de 2021

O meu trauma com ladrões infiltrados no BPC e INSS

Agora há pouco vi uma matéria no telejornal que denunciava a pilhagem perpetrada por dois enfatados do INSS (Instituto Nacional de Segurança Social) que do alto da sua criatividade substituíam o Iban dos pensionistas pelos seus, apropriando-se indevidamente de um total de 12 milhões de kwanzas. É uma roubalheira que, garanto eu, só se modernizou, somando-se ao mau atendimento a que viúvos, reformados e antigos combatentes estão sujeitos.

Em 2002, seis meses passados mais ou menos sobre o falecimento do meu pai, passei a pressionar a Segurança Social em Benguela para os subsídios de morte e de sobrevivência a que a viúva, minha mãe, e os menores tinham direito. Mas a coisa nunca mais avançava, ora porque o chefe não estava, ora porque havia muitos documentos duvidosos por aqueles dias e a declaração de serviço, lavrada pela Administração do município da Baía Farta, levava por tabela.
Cansado e por julgar que tínhamos o direito de esperar um exemplo diferentes daqueles que um dia foram superiores do finado no quadro administrativo e na hierarquia partidária, pedi emprestado um computador no escritório da Omunga ao Zétó e elaborei uma musculosa exposição de três páginas dirigida ao então Secretário Provincial do Partido MPLA, que governa o país, Zeca Moreno. Lembrei-lhes que se aproximava a quadra-festiva, altura em que muito mais falta ainda faria a figura do mesmo pai com quem durante anos dividimos com as missões de pátria. Dois dias depois convocaram-me para audiência a informar que o assunto estava resolvido e que devia levar a mãe. Por pirraça respondi que a mãe era camponesa e não tinha tempo nesse dia. Mas o Secretário Provincial fora prestativo e deu solução, o que me transmitiu na audiência que me concedeu. A partir dali, a mãe recebu um cartão que a habilitava à migalha na ordem dos 3 mil kwanzas/mês, equivalentes a 30 USD.
Corria a coisa bem até que um dia, por azar, a velha perdeu o cartão e o BI no recinto do BPC (Banco de Poupança e Crédito) da Fronteira. Aí a coisa complicou-se um pouco, de sorte que tomei a liberdade de certa vez confirmar os relatos desumanos da burocracia. Não fiquei mais de meia-hora no local para atingir o pico da indignação ante a desconsideração de que eram alvos os clientes. Fitei com ira os olhos do compatriota, não-lhe admitia dirigr-se à minha mãe como pedinte. Aí ela disse: filho, esse senhor é o que nos é mais atencioso. Senti-me culpado, a minha mãe estava melhor na sua lavrinha a ter de se submeter ao capricho de cidadãos nossos que se julgam deuses por conta do micropoder em nome do estado, quanto mais não seja porque a minha família tem a sua pedra no processo de construção do que veio a ser Angola independente.
Passado algum tempo, descobrimos que algum infeliz andava a levantar o dinheiro da minha mãe, usando assinatura ilegível. Quando fui reclamar, nem o INSS nem o BPC conseguiam responder, já que se fosse procuração, tinham de assinar com letra legível e não rúbrica. Portanto, o roubo tinha de ter sido articulado entre um infeliz do BPC e outro da Segurança Social. Fiquei nessa dança. Então, um amigo aconselhou a solicitar patrocínio de um advogado de renome, que encerra em si um misto de incompetente e mau carácter, pois ao fim de três meses dizia que não tinha feito nada e que não faria. Na altura o desfalque andava na ordem dos dois meses.
E assim o problema continou até à data da partida da minha mãe. Tão indignado a situação me deixou que nunca mais quis saber da pensão, nem se os ladrões continuam a receber indevidamente em nome da minha mãe. Acredito que o meu pai não deu pela pátria a vida para passarmos por isso. Acredito na lei do retorno como acredito nos valores de pátria (confesso-me idealista) e acredito na existência de servidores honestos e éticos. "Et voila", este é o meu trauma com o BPC e o INSS.
Daniel Gociante Patissa | 21 Outubro 2021 | www.angodebates.blogspot.com
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segunda-feira, 18 de outubro de 2021

O que muda na Rádio Nacional de Angola após o Top dos Mais Queridos?

Que lição irá a RNA tirar da sua própria inovação no Top dos Mais Queridos 2021, num ano em que a final contou com um representante de cada província? Pela lógica da base de apoio popular, ganhou o Huambo com um grupo desconhecido de todo, com uma proposta manifestamente arrojada nos acabamentos, o que indica as condições desenrascadas em que músicos não levados ao colo pelas "labels" trabalham. Crise no Lar, tema dos Picantes, arrebatou os 2 milhões de Kwanzas de troféu principal, batendo na concorrência a "hegemonia" Paulo Flores e Yuri da Cunha, cujo tema, Njila yadikanga, está a um patamar de longe superior esteticamente e no que respeita aos arranjos. Em terceiro lugar ficou Tiviné, representando a província de Benguela (trata-se na verdade de um músico da vizinha província do Kwanza Sul que há mais de duas décadas "aportou" Benguela, onde se revelaria pelo carisma e talento enquanto integrante do Quinteto Ndjando, também na vertente da recolha e adaptação do cancioneiro). Quem conhece minimamente a dinâmica cultural e o sentimento de pertença e identidade não estranhará esse feito que bafejou o planalto central. O povo votou em massa porque conhece e se identifica, conhece porque se divulga localmente, ou seja, a província adoptou como causa de todos a participação do grupo local no concurso nacional. É que no Huambo, o que julgo estender-se ao Bié, valorizam-se e se promovem as manifestações de produção local. É o contrário por exemplo daquilo que se vê na província de Benguela, onde no campo musical o produto local é tratado como marginal, relegado para programas "temáticos", dedicando a maior parte da emissão ao mainstream, com a luandização costumeira por meio do semba (e da língua kimbundu cuja mensagem praticamente ninguém percebe, só contam o ritmo/harmonia) e do kuduro, com tudo de bom e de trágico que a subcultura carrega de boçal, salvaguardadas as virtudes cada vez mais escassas na dança/música electrónica. A mim faz mesmo muita confusão estar em Benguela, uma localidade com dez municípios e um sem fim de variantes etnolinguísticas e quando se sintoniza a rádio, é como se a pessoa estivesse em Luanda. E não é que os músicos locais não se esforcem em investir os parcos recursos para criarem. Pôr a tocar na rádio da localidade em que vivem é que é o problema. Chegam a dizer, já entristecidos, que por vezes a música tem de ganhar notoriedade fora para que localmente seja acolhida. E não é um fenómeno que só afecte as rádios do estado, as privadas também. Quando se promovem actividades, lá a música local toca, mas logo a seguir... Convém que não sejamos mal interpretados como se estivéssemos a combater o carácter cosmopolita, não é isso. É que o semba, que convém vender como bandeira nacional, pode afinal não dizer nada a muitos povos que formam a malha da diversidade cultural do país que somos, independente de ser uma riqueza muito cara ao norte ou representar o substrato da elite pós-independência e ter jogado um papel relevante na luta anti-colonial. Enfim, a pergunta de retórica é: de que adianta essa experiência da representatividade das 18 províncias e a inerente diversidade cultural na esteira do Top dos Mais Queridos, se ao longo do ano a discografia é deixada à mercê dos gostos dos DJ's e operadores de som, muitos deles, infelizmente, com pouca consistência em matéria de cultura musical?


 Gociante Patissa | Benguela 18 Outubro 2021 | www.angodebates.blogspot.com
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domingo, 10 de outubro de 2021

Crónica | Meu lugar é um desterro


Atravessa-me recorrentemente desde jovem a contradição existencial de quem ama esse País chamado Angola e continuará a honrá-lo, quer pela própria cabeça, quer pelo legado de sacrifício consentido pela família desde as décadas do nacionalismo... mas que em sentido oposto, se revê cada vez menos no rumo que a sociedade toma no campo da alteridade e ante a inversão gritante de valores elementares de convivência.

Não liguem, podem ser só dizeres de sono mal dormido de inquilino de uma certa rua cedida à poluição sonora de prostitutas (usaria termo mais bonito noutro contexto) que usam da boçalidade, da embriaguez e brigas entre si como mecanismo de se manterem acordadas no seu comércio que se instala ao cair da tarde. Não saberei dizer que sejam as mesmas todos os dias, não varia é o lugar. E a vizinhança, qual avestruz, escuda-se na barreira de som da vidraça das janelas, com isso o não-assunto prospera.

As barulhentas, socialmente invisíveis e talvez por isso inimputáveis, somem antes de lhes nascer o sol no luzir das ancas ao léu. São só umas putas coitadas que até vêm de longe, não hão-de prejudicar ninguém com noites mal dormidas derivadas do tão alto que falam e pregam na parada. Não sendo tudo más insónias, certa vez já ébrias e nostálgicas, marcava o telemóvel duas da manhã menos um quarto, elevaram a noite com coral em impecável harmonia, tenores, sopranos e contraltos, mãos dadas em arco animadíssimo em uma das línguas nacionais: na poltrona da glória celestial hei-de me sentar um dia / sim/ hei-de me sentar.

Por essas e por outras cuidei de transmitir em conversa com jovens leitores a minha resignação. Definitivamente a minha geração fracassou, não há mudança que se vislumbre para breve. Um giro simples pela cidade, no rol de murros no estômago está ao virar da esquina um qualquer de nós com o instrumento de urinar à mão, perdoado pela ausência de WC públicos que só a encarnação seguinte trará.

Esta sociedade da qual sou parte do problema, impotente em sonhar soluções, esta sociedade da ganância, da falência do bom-senso e da razoabilidade, chega a ser um desterro que nem eu próprio recomendaria para legado. Favor acordar-me logo que atingido o fundo do poço.

Gociante Patissa, Lunda, 10 Outubro 2021 | www.angodebates.blogspot.com


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quinta-feira, 7 de outubro de 2021

Desabafo de Ismael Mateus sobre ser "opinion maker" em Angola

Devo ao jornalismo a honra de me ter possibilitado falar para as pessoas, ser seguido nas minhas opiniões e acesso à mídia para analisar aspectos da vida nacional. Infelizmente discute-se pouco a opinião expressa e os analistas crescem pouco. Deveria ser o contrário, já que são úteis e ajudam o cidadão a formar opinião própria.

Depois de tantos anos desta actividade, aprende-se que a opinião pública é traiçoeira: a mesma mão que hoje te bate no ombro de satisfação amanhã é a primeira a considera-se um traidor. Na nossa opinião pública, as pessoas não esperam por uma opinião dos fazedores para formar a sua, como deveria ser. A maior parte das pessoas primeiro forma uma opinião e depois espera que o fazedor vá à imprensa corroborar dessa opinião. Se coincidem, então o fazedor de opinião é bestial mas se ele não diz o que se está à espera que diga, então passa a ser a besta.

Os tais analistas também têm culpas: uns porque são ostensivamente parciais, sem qualquer compromisso com o equilíbrio e alimentam a tendência de criação de facções na opinião pública e outros porque em vez de explicar e interpretar os fenómenos usam a capa da análise para fazer política, captar simpatias ou fomentar antipatias contra partidos políticos.

A qualidade da nossa política também passa pela qualidade de quem avalia as decisões, estratégias e acções dos políticos.

A bajulação e culto de personalidade que vemos nos partidos políticos têm muito a ver com o modo como os analistas são incapazes de ver os líderes como falíveis, humanos e mortais ou como olham a vida entre os bons e maus. Os erros dos líderes são escamoteados ou até apresentados como um alto nível do seu pensamento estratégico.

A opinião pública também tem de ter critérios, regras e uma delas tem de ser a de explicar os fenómenos, fazer entender os factos em vez da manipulação, da opinião pessoal, do "eu acho" ou "penso que". Bom dia

(Ismael Mateus, in Facebook, hoje. Versão de texto com revisão do Blog Angodebates)
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segunda-feira, 4 de outubro de 2021

UM JORNAL REPARTIDO PARA BENGUELA? JÁ DÁ MAS...


O Litoral é o mais recente jornal regional e generalista lançado pela Edições Novembro, entidade estatal detentora do Jornal de Angola (JA), o principal diário do país. O Litoral, que se estreia amanhã, 05/10, rodado em Luanda e de periodicidade quinzenal, cobre "ex aequo" Benguela e Kwanza Sul, para o que conta com matérias na sua maioria assinadas pelos seus "cabeças de série" nas respectivas províncias. Em especial ao ilustre Sampaio Júnior e equipa ali pelo Campo de Ténis, desejo os maiores sucessos neste desafio. Porém, pois há sempre um porém, ao mesmo tempo que aplaudo a estratégia de descentralização levada a cabo pelo consulado do PCA Drumond Jaime, o meu lado utópico diz que ainda é pouco, que o ideal era mesmo retomar a produção local, como se viu na transição entre as décadas de 80-90. Que bom era degustar o Jornal Kilamba e o personagem Rasta Kupapata, da banda desenhada assinada por Pio Mariano, ali pela Bela Vista no Lobito! Um jornal de Benguela e sobre Benguela é mais do que justificado para questões de identificação/proximidade afectiva, maior abordagem das dinâmicas e controvérsias da província, para além de contribuir para a promoção da leitura e uma consciência analítica/crítica, tendo em conta a densidade populacional que ultrapassa os 2 milhões de habitantes e a sua tradição de vida intensa nos campos económico, político e intelectual. É que com a falência consumada dos jornais privados (Kesongo, de Ramiro Aleixo, Cruzeiro do Sul, de Ismael Mateus e Lilas Orlov, e Chela Press, de Francisco Rasfado, sem esquecer o efémero Correio do Sul, de Nelson Sul d'Angola, e as suas não mais de três edições de vida), tudo o que se tem a enfeitar as bancas é um parque esporádico de exemplares nem sempre em quantidades minimamente satisfatórias do produto "novembrino", como sejam o JA, Cultura, Jornal dos Desportos e um e outro título privado, também viajado da capital do país.
Gociante Patissa, 04 Outubro 2021
www.angodebates.blogspot.com
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quarta-feira, 29 de setembro de 2021

QUE "LUSOFONIA" É ESSA? - opinião do escritor e jornalista João Melo ao Diário de Notícias

O conceito de "lusofonia", embora seja prático, é claramente um conceito ambíguo e limitado, que não exprime toda a complexa realidade constituída e vivenciada pelos povos de língua portuguesa. Afinal - já o escrevi aqui - essa comunidade, em termos demográficos, é afro-europeia e não euro-africana. 

Culturalmente, é cada vez mais mestiça, marcada de maneira distintiva por traços culturais de origem africana.  Mais do que incompreensível, é inaceitável, portanto, a repetição de determinados atos falhos por parte das elites políticas e culturais dos dois países autoconsiderados "dominantes" dessa comunidade, ou seja, Portugal e Brasil. Anos atrás, por exemplo, certas universidades portuguesas tinham departamentos de "estudos lusófonos e portugueses", o que fala por si. Espero que essa designação e outras do mesmo calibre já tenham sido colocadas no caixote do lixo.  

O fraco reconhecimento e as dificuldades de circulação na comunidade em questão de bens culturais produzidos nos diferentes países de língua portuguesa são exemplos de uma área em que todas as fragilidades (estou a ser gentil) do conceito de "lusofonia" saltam à vista. Na coluna de hoje, comentarei brevemente o que se passa na área da literatura, por ser a que melhor conheço.  

Começo por mencionar dois factos. Primeiro, o lançamento, no passado dia 9 deste mês de setembro, em Lisboa, da obra Safras de Um Triste Outono, do poeta cabo-verdiano Arménio Vieira, prémio Camões 2009, publicada pela editora também cabo-verdiana Rosa dos Ventos. Segundo, a premiação da poeta são-tomense Conceição Lima pelo conhecido site internacional de literatura traduzida (para o inglês) Words without Borders, juntamente com três outros poetas mundiais. Nenhum desses dois factos foi notícia nem em Portugal nem no Brasil, onde os respetivos autores são relativamente conhecidos.  

A verdade, nua e crua, é esta: pesem os esforços da academia - sobretudo, diga-se, no Brasil - para conhecer e divulgar as literaturas africanas de língua portuguesa, as instâncias que ajudam a constituir o chamado "mercado", isto é, as editoras, os eventos e a imprensa, prestam uma atenção literalmente episódica ao que se produz em tais países. Mais grave ainda: quase sempre, as escolhas dessas instâncias não escondem os seus preconceitos ideológico-culturais, que alguns, nem sempre com razão, mas legitimamente, poderão confundir com fatores étnicos.  

Como entender, por exemplo, que o Festival de Poesia de Lisboa não tenha convidado nenhum poeta africano de língua portuguesa realmente conhecido como poeta? Se a maka eram dificuldades logísticas, aí vai uma lista de nomes de poetas africanos que moram na capital portuguesa: o próprio Arménio Vieira, o igualmente cabo-verdiano José Luís Tavares, o moçambicano Luís Patraquim e os angolanos Ana Paula Tavares e Zetho Gonçalves. Certamente haverá outros, que lamento não conhecer.  

Outro ato falho foi cometido pelo Prémio Oceanos, alegadamente instituído para galardoar autores de todos os países de língua portuguesa, quando, na sua conta do Instagram, chamou o angolaníssimo José Eduardo Agualusa, semifinalista da edição 2021 do referido prémio, de "escritor português". É como se apenas fizesse sentido que autores portugueses (e brasileiros) fossem dignos do prémio em questão.  

Por fim, não podem também ser ignoradas as culpas que têm nesta matéria os próprios países africanos de língua portuguesa. Para resumir com uma frase, direi que, de um modo geral, os mesmos pouco ou nada têm feito para internacionalizar a sua própria literatura.  Este assunto não se esgota aqui. Em próximo artigo, tentarei sugerir algumas ideias para promover um verdadeiro intercâmbio literário entre todos os países de língua portuguesa.  

Escritor e jornalista angolano, diretor da revista África 21 | Diário de Notícias, 28.09.2021

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terça-feira, 28 de setembro de 2021

MORRE UM POUCO DE NÓS COM A PARTIDA DE CRISTÓVÃO MÁRIO KAJIBANGA (clicar no título e na imagem para ouvir áudio)

clicar na imagem para ouvir áudio

Tomei conhecimento com pesar profundo da partida de Cristóvão Mário Kajibanga, o eterno homem de cultura em terras de Benguela e patrono do grupo cultural Bismas das Acácias. Para além de ter sido sócio-gerente da editora KAT, pela qual publiquei Consulado do Vazio, meu poemário de estreia, foi colega nas andanças da ONG's, sendo nós pela AJS (Associação Juvenil para a Solidariedade, da qual fui presidente/coordenador executivo) e ele pela ADRA. Neste âmbito Kajibanga foi frequente painelista (a custo zero) do programa de debate Palmas da Paz, mais tarde Viver para Vencer, o qual realizei e conduzi por meio de Rádio Morena Comercial sob financiamento da USAID, Embaixada americana, PNUD/Fundo Global e Médicos del Mundo (entre 2003-2011). O prémio Provincial de Cultura e Artes, que me foi atribuído pelo júri liderado pelo académico ArJaGo, em função da dedicação à divulgação da língua e cultura umbundu através do conto e das novas tecnologias de informação e comunicação, aconteceu durante o mandato de Kajibanga como Director Provincial da Cultura. Foi também com ele nas vestes de Director da Rádio Mais que quase fui recrutado para assumir a área de informação na iminência de abertura da estação no Lobito, mediante êxito nos testes de locução e entrevista conduzida por Kenia Sandão (negociação entretanto mal sucedida ao fim de alguns encontros em função das condições que coloquei). Discordamos muitas vezes e em vários aspectos mas não posso deixar de assinalar a simplicidade e o fácil trato de Kají. O último contacto que mantive com ele ocorreu nos estúdios da Rádio Benguela, no dia 08 de Janeiro, já de máscaras e tudo por conta da abominável pandemia, para debater sobre Cultura Nacional, sob condução de Gilceu de Almeida e Paulo Stone da Conceição. Por tudo isso, posso dizer que vai uma parte do nosso orgulho com a partida de Kajibanga.

Obrigado, ó patriota Kajibanga, os pêsames à família e à classe artística do seu Patissa.
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Cristóvão Mário Kajibanga enluta cultura angolana


Faleceu hoje na cidade de Benguela Cristóvão Mário Kajibanga, homem de cultura e ex-Director Provincial da Cultura. Natural do Moxico, o cinquentenário residia em Benguela há mais de quatro décadas, tendo desenvolvido actividades nos ramos da educação, cultua e desenvolvimento comunitário.

LEMBRAR BENGUELA COM GRATA MEMÓRIA DE KAJIBANGA
Em Maio de 2008 a editora KAT, representada por Cristóvão Mário Kajibanga (à direita), e o então membro da sociedade civil e jornalista freelance, Gociante Patissa, que na ocasião era também Editor do Boletim A Voz do Olho, jornal comunitário da AJS (Associação Juvenil para a Solidariedade, no Lobito), lançavam na cidade de Benguela o livro Consulado do Vazio, poemas deste último. Tivemos a honra de ser o professor universitário Francisco Soares a fazer a apresentação formal, uma sugestão da amiga Lena Sebastião. O êxito do evento é também devido ao director da Rádio Morena Comercial, José Lopes de Almeida Júnior, que apadrinhou a vertente da divulgação e cedeu o recinto. A imprensa como um todo tem sido de um amparo impagável, desde os gestores dos órgãos aos jornalistas de modo geral.
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domingo, 26 de setembro de 2021

Crónica | Você vai subir com peixe seco no ar condicionado?!

Viajar de transporte colectivo é dos mais representativos miradouros das nossas mais incómodas pobrezas existenciais, uma das quais, a mais incisiva quiçá, a do bom-senso que sucumbe sem poupar gerações. É a tese da conterra após uma aventura interprovincial no feriado prolongado do herói. Mas como apriorismos não pagam dívidas, foi assim…


Encafuada na capital do capital capitulada por manha de uma certa pandemia, na primeira oportunidade de integrar delegação para inaugurações ao centro e sul, embarcou! Quão bom é reencontrar verdejantes solos infinitos no horizonte, emprestar os pulmões longe do empestado! Decidiu permanecer mais duas noites, seu lugar no voo voltando vazio.


No domingo que sucedeu a um prolongado de matar saudades, fez-se a conterra à paragem de autocarros, Macon na opção, bilhete comprado de 8h45, lugares marcados. Era nove no assento à janela, um nove que dobraria para coincidir com a hora de partida, porque certamente há de existir algum lugar onde Angola signifique ligeiro atraso.


Ela usa o truque bem aprendido dos anos de atendimento ao passageiro noutro sector, o da aviação civil, que isso de técnicas é um calo que nunca mais nos larga. Em situação daquela coisa aí que nos demanda açaime, nada melhor do que o banco ao lado vazio. O machimbombo modernizado parte do terminal de Benguela, uma finta na Catumbela, porém no Lobito impera a bexiga. Alguns Pax em trânsito desembarcam em brasa.


Vai-me desculpar mas este lugar é meu, reivindica a conterra. O outro lugar não está livre? Retruca a outra. Está mas os lugares estão marcados, é só seguir no bilhete… se reparou, há até garrafa de água na bolsa do assento, vim sentada aqui. A invasora, cara feia, levanta-se. Eu também o meu lugar é aquele, já encontrei já essa mana sentada. Assim vou fazer como? Antes de a legítima dizer o não sei da praxe, a invasora da invasora, carapuça nos cornos, cuja filha ocupava assento quando era suposto ir ao colo, refila: no autocarro tem muitos lugares, meu bilhete comprei ontem, não tem número!


A conterra por uns instantes rememora Mayday, desastres aéreos, documentários do Natgeo e a razão de ser dos lugares marcados conforme o manifesto. Em caso de sinistro fica mais fácil identificar quem ia onde. Mas dará tempo de palestrar? Perdoai-as, senhor.


A invasora, que tal como a conterra e a invasora dois ia na casa dos 40 e tal, prossegue passivo-agressiva. Então assim vou sentar aonde se eu ir lá atrás tiro tudo? Eu também!, responde a invasora dois. Não estás a ver até já preparei o saco? Eu no fundo vomito bwé. E lá se acomoda a invasora no banco dez, na coxia, mas não pára quieta. Agora liga a música no seu telemóvel e murmura o louvor. Ah, não tem auscultador?! Pergunta de retórica a conterra, auxiliada pela expressão corporal policial que logo aborta a DJ. Caramba, essa gente então como é? Já imaginou se todos tocarem suas músicas?!


Bem, ainda antes de deixar o terminal batia-lhe o ombro um ancião em jeito de favor. Ajuda só a controlar essa menina, vai descer no Cabo Ledo. Aparentava ter uns dez anos. Vai-me desculpar, paizinho, o meu trabalho não permite assumir esta responsabilidade. E pensa consigo mesma: menor desacompanhada, sem documento, sem termos de responsabilidade... estamos doidos ou o quê?! Não tardou que outro jovem aceitasse.


No poeirento Sumbe capital do Kwanza Sul (que me perdoe o padroeiro da toponímia colonializada, por não escrever com C de cu), aquela paragem para troca de motoristas, sempre bem aproveitada para compritas. Quem desce não reconhece o bafo no interior do machimbombo. XÉ, Ó SENHOR! Indigna-se um jovem. Você vai subir com peixe seco no ar condicionado?! O visado faz silêncio ao saco preto com duas vistosas tábuas de corvina escalada. WEY, CHAMA O MOTORISTA! Se a gente soubesse, também era subir com nosso cabrito que metemos no porão. Os demais apressam-se a abrir as janelas, vamos morrer com esse cheiro no AC, oh pai do Céu! E lá o motorista recolhia o peixe.

 

A passar o Longa, lá atrás ouve-se música enlatada do telefone de alguém com notório mau ouvido. Ninguém protesta. Dessa vez a conterra, que não se imagina vivenciar algo idêntico num avião, engole em seco. Só o letreiro do barbeiro tio Toy para desanuviar.


Já embutidos com churrasco de galinha rija, refrigerantes e cervejas, intervalados com os vómitos de tirar o próprio fígado protagonizados pela invasora da invasora, os pax desinibem-se. Minha mulher quando está grávida o desejo dela é fodido. Espera ainda, interrompe outro, escuta ainda o azar do meu amigo: dia seguinte ao casamento a mulher já lhe ligou, querido traz pão. Gargalhadas. Dizia eu, a minha mulher grávida só quer cheiro da fossa, fica mesmo aí a inalar, bafo de cocó é que lhe faz bem.


A conterra, que vem adiando a maternidade, não sabe se Neto, lá na solitária tumba, ri, faz poema, faz tiro ou prepara uma injecção letal para varrer de vez a estirpe do homem novo que não se recomenda para semente. De qualquer modo, falta pouco para chegar, o destino é terminal do Rocha. Lia-se no letreiro sonante no para-brisas via Gamek.


À entrada do Benfica, o motorista anuncia seco e irredutível, no relógio 19h30, pela hora, vou já para Viana, quem vai na cidade desce já aqui no triângulo da via expresso. Incrédula, a conterra vê os Pax feitos cordeiros. Atirada ali à sua sorte, foi pela sorte protegida até chegar à casa onde de imediato lavrou um e-mail de protesto. O mesmo teor remeteu no espaço de reclamações no site da transportadora. Pode ser que ainda antes da segunda vinda de Cristo a Macon formule desculpas. Melhor se conta como ficção.


Gociante Patissa | Luanda, 26 Setembro 2021

 

 

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Vídeo | Gociante Patissa entrevistado pela TPA sobre Consulado do Vazio, 2009

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