É com esta indagação de retórica que me dou ao luxo de iniciar esta reflexão solta e cidadã. Vem a propósito das recorrentes reportagens com flagrantes de detenção de fiscais, polícias e demais servidores públicos a partir de denúncias do cidadão via terminal 119, da IGAE (Inspecção Geral da Administração do Estado).
A série de enredos é longa. No trânsito, no ramo imobiliário, no comércio, na justiça. Tão omnipresente como a extorsão e o oportunismo, males que a sociocultura mwangolê há bwé que os amparou: "gasosa", "cabritismo", "mixa", "saldo", etc.
Com a agenda do executivo do presidente João Lourenço, voltada para o combate à corrupção e para a consequente moralização da sociedade, cresceu em mediatização a pauta. Só que sempre que se desnovela, senão sempre pelo menos na maioria das vezes, a trama envolve valores acima da metade do salário mínimo da função pública. Podemos afirmar que as vítimas denunciariam na mesma à IGAE caso o suborno fosse confortável ao bolso?
É necessário começar de algum lado, mas pode ser ilusório tomar tais flagrantes por indicadores satisfatórios de viragem para a almejada sociedade mais ética e patriota. Um combate à corrupção que se foque mais no corrupto do que na excessiva burocratização pode fracassar. É a complexidade dos processos que fomenta atalhos. Soma-se a isso outro fenómeno, o da elegibilidade. Subscrevo que o próximo combate terá de ser contra a incompetência.
Eu ainda hoje me vejo obrigado a corromper, não me orgulho em nada mas também não abraço a ingenuidade. E como só posso falar por mim, partilho alguns factores. Em 2014 adquiri o terceiro carro da minha vida. Até à data em que me desfiz do ligeiro, sete anos depois, continuei a carimbar verbete, nunca vi a cor do livrete. No mesmo ano, deixaria por esquecimento a carteira de documentos e cartões bancários num supermercado, aonde regressei volvidos dez minutos. Sugeri então que compulsassem o fluxo para aferir se o ladrão identificado estava cadastrado via cartão da loja. Tinha de ser o Serviço de Investigação Criminal (SIC) a fazê-lo.
No SIC fui bem atendido. O investigador que me foi "cedido" é que não pôde grande coisa. Aceder ao vídeo de CCTV sem autorização escrita da Procuradoria Geral da República (PGR)? Passados três dias, na PGR o processo ainda não tinha número, era para ir passando, crimes sem preso envolvido não são prioritários. Moral: desisti da queixa. Ainda hoje me viro com o verbete da carta de condução. A renovação do BI foi graças à amiga de um amigo.
Noutro dia fui interpelado na Maianga. O senhor viu o que fez? O que foi, senhor agente? Não sabe que neste cruzamento não se vira à esquerda? Mas não vi lá nenhum sinal, nem horizontal nem vertical. Mas o senhor está a ver mais algum condutor a praticar a mesma transgressão? E lá o homenzinho puxou do seu bloco de multas. Pedi-lhe que atenuasse. Mas atenuar como?!
Perante a minha insistência, o regulador de trânsito me impinge o cardápio de um snack-bar, diz que tem fome. O que podes fazer por nós? Era sexta-feira à noitinha, fim-de-semana prolongado. Até terça-feira nada garantia que não fosse extraviar os meus documentos. Que alternativas? Ocorreu-me lubrificar-lhe a mão com dois mil Kwanzas. Por azar, tinha nota de cinco mil. Aí diz ele: como estás a dar de coração, podes seguir; gostei da tua humildade, ya?
www.angodebates.blogspot.com | Gociante Patissa | Luanda, 05 Dezembro 2021
(Imagem do Jornal de Angola)
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