quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

Poema inédito | POR VEZES BENGUELA

 


Poema inédito | POR VEZES BENGUELA

Por vezes Benguela
o grito lá fora
da luz
de volta
Criança
Costelas de esteira
Xiii - pouco barulho
Benguela por vezes
no lugar devoluto
daquele rafeiro as fezes
bêbado astuto
Sardinha carvão
O provérbio andarilho
Por vezes Benguela
complexa porque simples
de palmilhar
simples porque complexa
de a porta fechar
O marketing
Tão mentido que é
Por vezes Benguela
O apito comboio
Vazio
Ouve!
MBokoyo
Ananás
lamento de embalar
Semáforo banana
Netos da mãe que houve
que fora
que fosse
aço nos laços
peito pulsando em Kwanzas
vida fora
é coração feito de calculadora
Por vezes Benguela
Essa grade entreaberta
Em mim
Gociante Patissa | L. | 17 Dezembro 2023 | www.angodebates.blogspot.com
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terça-feira, 19 de dezembro de 2023

DAS MELHORES LEITURAS DE 2023: "KWASHALA BLUES", DE JESSEMUSSE CACINDA

Acabei de ler o livro "Kwashala Blues" (Ethale Publishing, 2023), crónicas do nosso mano moçambicano

Jessemusse Cacinda, autor e editor que conheci em Outubro passado quando participava no festival de artes organizado pelo Museu de Lamego. Quanto a concluir a leitura da sua obra de 96 páginas, podia, em boa verdade, tê-lo feito de uma só assentada, mas logo nas primeiras propostas da obra percebi que tinha de optar por um ritmo um tanto tântrico, de modo a melhor degustar o passeio pela sociocultura de Moçambique, trilhar a sua geografia pela caneta da voz do narrador, uma realidade que, de resto e por força das circunstâncias históricas, muito se assemelha à da nossa querida Angola. O humor, a sátira e outros recursos estilísticos, sem mencionar uma série de reviravoltas que acompanham algumas das tramas, condimentam o prazer da leitura, onde realidade e ficção se entrelaçam na perspectiva do leitor. Tendo como pretexto a ocorrência da morte do pai, dá-se a viagem de regresso à terra natal, o que abre espaço ao revisitar de memórias de feridas mal sicatrizadas no núcleo familiar mais restrito, mas também no tecido social, onde a tradição, a política, a filosofia e a história fazem o pano de fundo. O encadeamento temático das onze crónicas da obra confere à mesma uma proximidade da novela, no caso novela com entrecortes e difusão de núcleos. De entre as várias coisas pujantes sob o ponto de vista da dimensão estética da obra, sublinho a abertura da crónica O Bilhete de Carlos Sapato: "No dia da sua morte, Carlos Sapato teve direito a uma manhã de sexo" (pág. 21). Quem não gostaria, não é? Outro traço de fina ironia a destacar mora na crónica Made in Namicopo: "O meu pai veio a seguir: imóvel, com o corpo pendurado numa simples barbicha e o com ar de dono de si mesmo" (pág. 41). O resto não conto, cada qual com a sua leitura e os seus prazeres. E pronto, com a vossa licença, retiro-me a ver se passo a experimentar pela primeira vez a sensação auditiva do Kwashala, género musical (não conhecia, confesso). Se for tão agradável como se nos deu a ler e dançar ao ritmo da escrita, ainda melhor.

Um abraço
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sexta-feira, 10 de novembro de 2023

À procura de Editora que aposte no volume 2 de O APITO QUE NÃO SE OUVIU, colectânea de crónicas de um blogger, desta vez para assinalar 18 anos de produção regular no meu autoral www.angodebates.blogspot.com, com textos surgidos entre 2014 e 2024.


O primeiro volume, que saiu sob chancela da União dos Escritores Angolanos (2015) reunia as crónicas mais representativas produzidas ao longo de 8 anos, a contar de 2006 quando o Blog foi criado. Parece ontem mas já são 18 anos ininterruptos dessa plataforma online lançada com a designação Angola, Debates & Ideias e que tem sido responsável pelo meu crescimento como cidadão, artista e académico, sendo que algumas das crónicas chegaram a ser estampadas em páginas de diversos jornais e revistas entre impressos e digitais.

Obrigado
patissagociante@yahoo.com
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quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Primeiro bolo para o mano Zeca que não vem

Existiu um homem chamado Zeca. Zecas há muitos, dirão. Errado! Zeca com a quarta-classe, filho de

primos, pele da cor de tijolo, carapinha de Khoisan, dono de uma vida tonificada no ofício da pesca, torneada pelas ondas do mar desértico traçado a nado de braçadas, esse, não dá direito a duplicados. Por acaso ia escrever muito mais neste feriado de celebrar cada um daqueles nossos entes amados, cujo lugar se mantém vago desde o dia que se mudaram para o outro mundo. Neste dia dos finados, povoa a memória o mano Zeca Nguenhe Víctor, primeiro dos filhos do meu pai, uma alma singular que involuntariamente nos enchia de pânico ao repousar a sua granada na cabeceira quando voltasse do interior, na vigência da guerra naqueles anos 90 (mal vai o mundo que diverge para a bala o cêntimo do pão e do livro). Fiz-te até um bolo, mano, tentei, pela primeira vez. Não ficou é à altura dos teus gostos. “O meu bolo preferido é o que sai massudo”, sempre dizias.


Gociante Patissa | L. | 02 Novembro 2023 | www.angodebates.blogspot.com

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terça-feira, 3 de outubro de 2023

Agenda: Este sábado, dia 7, na Universidade Lusófona Lisboa


 Sempre que posso doar-me, dou corpo ao voluntariado (geralmente em coisa de ideias, artes e letras). Das mais recentes experiências esta foi como integrante do painel de júri na selecção de textos de autores africanos (maioritariamente Guiné Bissau), que vão dar corpo à segunda edição da colectânea de contos, crónicas e poemas intitulada #EcritAfricando, da iniciativa da ONG portuguesa Ser Mais Valia (a convite da escritora Aida Batista, que foi Leitora do Instituto em Camões Benguela, que foi minha professora de português no curso Básico de jornalismo, há 18 anos). O lançamento acontece este sábado, 7 de Outubro, na Universidade Lusófona, Lisboa. #gociante_patissa #gociantepatissa #sermaisvalia #escritafricando

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sábado, 23 de setembro de 2023

Poema inédito | OS PAIS JANELAM (*)

 Poema inédito | OS PAIS JANELAM (*) 


 

Os pais janelam,

pais nossos de cada um

Janelas pelas quais 

Cá andamos

O janelar pelo qual

Ainda cá moram 

Depois que partem

 

Os pais janelam

Para não portarem

Portas seriam largas

E de larga já nos basta

a tábua

Que mal nasce a semente

 

Bem cabem na janela

Mãe e pai

Justa medida

Que nos cabe

O apertado abraço

A festinha tatuada na derme

O fumegante manjar à mesa

 

E por este janelar

moldura da íris umbilical

Ardente saudade futuro polido

Qual dedo anelar 

Janelas brisam por dentro

Premente, meu pai, oh mãe

No achado da memória

É das janelas o trinco fingido

 

Gociante Patissa | L. | 23 Setembro 2023 | www.angodebates.blogspot.com

 

(*) à memória de Víctor Manuel Patissa, 1946-2001

 

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quarta-feira, 20 de setembro de 2023

NÃO TEM PERNAS O TEMPO (Extractos do primeiro capítulo da novela)

Os que odeiam a cidade de Luanda são muitos, e têm razão. Os que a amam não são poucos nem estão errados. Aqueles a quem Luanda não aquece nem arrefece são vários, e estão igualmente certos. É que a capital é um eterno modelo de contrastes, assim entende Man’Toy. Ele, inclusive, não pensou duas vezes quando, por coincidência, saiu a carta de condução e surgiu o primeiro emprego, o de motorista funerário.


Dezoito quilómetros separavam o muceque de Man’Toy do serviço, uma distância que servia de referência para elogios incontáveis pela singular pontualidade, resultando com isso o elevar da confiança aos olhos do patrão, desde que se fundou a empresa. Isso, sem esquecer que, por muito que o charme do uniforme tentasse disfarçar os desníveis sociais entre os funcionários, Man’Toy não passava de “sanzaleiro” para a maioria de seus colegas... inferiores hierárquicos. “Lá onde moro, a luz tem poder de escolha, vai e vem quando quer”, justificava-se com ironia todas as vezes que aparecia com o uniforme mal engomado, ao que os colegas retribuíam com breve risada.

(...)
De qualquer modo, não deixava de soar estranho ver o motorista apresentar condolências à viúva, que ia sentada entre o volante e a sogra. Volta e meia, lá estava ele: “sinto muito, minha senhora, condolências! Mas tudo passa, a vida tem muitas surpresas”.
(...)
Para não fugir à regra, a viúva ia soltando clamores sobre as vantagens do falecido, para o agrado da sogra, em cujo ombro esfregava uma ou outra lágrima. Mas quando por exemplo dissesse “ai, Dimas, como ainda sinto cócegas dos teus bigodes!”, era com algum desagrado que o motorista se lembrava da desvantagem de ser imberbe. E lá se foi o dia. Mais outros da semana se seguiram.
(...)
— Na nossa profissão, não podemos misturar prazeres...
— Chefe, mas desculpa, de que prazer estamos a falar?
— Acho que já te disse isso várias vezes, ó Toy. Nesse trabalho, não podemos misturar prazeres. É como quem vende drogas, não as pode consumir. Aqui é encarar as lágrimas dos enlutados como simples ferramenta rotineira, portanto nada de meter emoções.
— Sei, sim, faz parte do contrato. Nunca esqueço que quando estou em serviço, é porque alguém está de luto.
— Mas... oh caramba!, como explica essa exposição acusatória sobre conduta pouco digna?! Bem, deixa ler uns trechos da exposição da mãe do falecido, a sogra da mulher:
“À Agência Funerária Portinhola do Paraíso. Vai nesta missiva o meu mais vivo repúdio pela atitude devassa implícita da empresa, no funeral de meu filho, cuja honra defendo pelos bons e sagrados costumes (...) Não permito que se assistam a assédios de viúvas, como aconteceu em plena cabine de vossa viatura, a poucos centímetros da urna, o que, como explicaram os entendidos, levou o falecido a irritar-se e soltar espumas pela boca e narinas, não obstante o tratamento previamente feito ao corpo (...) Ou o senhor toma medidas, ou terei que gritar ao mundo”.
Feita a leitura, com um tom que seria de se dizer dramático, se não fosse sobranceiro, o patrão prosseguiu:
— Sabes o que faz surgir a concorrência? As nossas falhas, a conduta que compromete a reputação da Portinhola! Tu achas que empreendedorismo é suficiente para manter o monopólio no negócio? Claro que não! Já imaginaste se a exposição cai nas mãos do bispo, secretário do partido, enfim, nas pessoas que protegem a honra da Terra?
Gociante Patissa, in “Não Tem Pernas o Tempo”
União dos Escritores Angolanos (UEA). 1.ª Edição: Luanda, 2013.Colecção: «Sete Egos» no 33
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domingo, 30 de julho de 2023

PhD EM CIÊNCIAS TENTADAS OU AS FÉRIAS DO MESTRE DAS IDADES | crónica semanal no Jornal de Angola em "Carta de Lisboa" N.º 09

A segunda premissa do título da crónica que escolhemos para esta edição é da autoria do nosso quinto colega superdotado em ubiquidade, ele que apesar de não aparecer na foto, creiam-me, há de ler estas linhas mais cedo ou mais tarde, o incansável doutor ChatGPT.

Com a conclusão do ano curricular do Mestrado em Comunicação, Marketing e Publicidade, ministrado na língua de Shakespeare pelo Campus da Católica, eleva-se para PhD em Ciências Tentadas o status que sua excelência eu já ostentava há uns anos e por mérito casual próprio.

Antes que comecem a dar uma de Tomé das escrituras, façamos um à parte. Foi apenas em 2012, mesmo a descrever a curva dos trinta e quatro ciclos na terra, que o indivíduo conseguiu fechar em Benguela a dívida da licenciatura em Linguística/Inglês, inevitavelmente contrariado, inclusive, face à ideia de festejar tal conquista. E mesmo assim custava achar meio de avançar nos estudos na área da sua vocação. Logo, não podia ser mais ardente a certeza de não mais parar o comboio. Agarrem-se os cursos mais próximos onde forem achados.   

 

A luz ao lado do túnel acende-se quatro anos depois, mas o entusiasmo do plano A, uma pós-graduação com acesso ao Mestrado em Ciências da Comunicação pelo qual torramos cinquenta dólares de inscrição, diluía-se na notícia do cancelamento da coisa, por falta de candidatos.

 

O plano B, dois anos volvidos ou pouco mais ou menos, uma pós-graduação com acesso ao Mestrado em Gestão Estratégica de Recursos Humanos morreria na praia, arranque condicionado pelas mesmas razões. A propina afrontava o soldo do funcionário público. 

 

A terceira tentativa da mesma instituição de matriz portuguesa de formação à distância em modelo despachante de cabotagem, chamemos-lhe plano C, desta vez aglutinando finanças e RH (já mesmo para tramar o nosso sindicato de péssimos a contas), foi o cortejo de enterro do negócio, com a restruturação do ensino superior a descontinuar o take-away de aulas e canudos.

 

Não que em 2019, já em Luanda, não perseverasse num mestrado em Gestão Ambiental, no entanto desencorajado pela inconstância burocrática do estabelecimento de ensino e os sucessivos protestos dos veteranos, do tipo guerra avisada...

 

Foi assim que no uso que lhe confere o instituto da razão perpétua, tendo em conta por sobejo que ninguém fica prejudicado na sua aspiração só porque a geografia da rifa não nada em ofertas; e contando com anuência tácita do planeta Terra, Marte, Unesco, ONU, Opep e afins, sua excelência eu tomou a liberdade de se auto-outorgar o título mais prestigiado de que se tem memória: Mestre (ultimamente PhD convertido) em Ciências Tentadas. 

 

E nem seria novidade para quem já tentou com êxito uma graduação em ciências da própria vida, nomeadamente sobrevivendo em fotografia frustrada, jornalismo abandonado, sociedade civil incubada, soldadura esquecida, construção civil de papel passado nunca iniciada, emigração tenra sonhada, carreira literária lamentada, pela aviação doméstica e tudo… Bem, feito o ligeiro preâmbulo, estamos em condições de seguir os procedimentos de aterragem na pista do ano curricular que atinge o seu limiar neste verão de 2023.

 

Tudo começou há dois anos com as pesquisas que elegeriam a Universidade Católica de Lisboa como a oferta mais em conta, em termos de curso internacional ministrado inglês em Ciências da Comunicação, vertente de relações públicas, marketing estratégico e publicidade.

 

Seguiu-se ao crivo documental a entrevista em videoconferência com a coordenadora do curso, com aquele receio que nos invade de a ligação da net nesse dia vir a fazer birra, passível de inviabilizar a aprovação logo na primeira tentativa. Conhecia de cor o prospecto, ou julgava.

 

O desembarque na capital lusa, o quinto o mais ingente, dá-se a cinco de Setembro, cinco dias antes da cerimónia de arranque do ano. Daí em diante desenrola-se uma história digna de um filme de drama, com mwangolê na idade dos seus pais a ser colega de jovens com metade da sua idade. Entre a licenciatura e o agora o hiato é de uma década, entrecortado por cursos intensivos e um de extensão universitária em Comunicação Institucional pela Agostinho Neto, a primeira fornada da sua história e que, ao que tudo indica, morrerá sem papel passado.

 

Há que recuperar o compasso, à parte a pressão auto-imposta de suar para sacar notas decentes, posto numa realidade onde o mestrado afinal é para putos com média etária de 22, nada pós-laboral como nas Áfricas. Enquanto os colegas conversam animadamente sobre as tendências actuais, os memes e músicas pop, amapiano que não leva piano afinal, a malha de discotecas e festas da vez, a ti já só resta gentilmente acenar com a cabeça, tentando acompanhar o ritmo.

 

A amizade com quatro colegas com os quais formamos o grupo de estudos é seguramente o ponto alto da jornada académica. Izna é especialista em design e marketing, o Adytia, engenheiro de computação e outro graduado em marketing. Vêm ambos da Índia. Sara, formada em psicologia, vem da Itália. As aventuras, risadas e desafios que enfrentamos juntos só podem ter criado laços duradouros. A diferença de idade foi para mim uma fonte de enriquecimento mútuo. São jovens com potencial enorme de singrar como marketeiros e conquistar mercados.

 

Quanto a isso, há que assumi-lo, faço parte de uma geração já despojada da ingenuidade necessária para transformar o entusiasmo académico em fé para mudar o mundo nessas lides de comunicação organizacional ou assessorias e afins.Desde logo, quiçá, pela vocação de jornalista, que como reza a lenda é o único profissional que se arrisca a cair em maus lençóis se se puser a actuar na prática literalmente do jeito que os manuais ensinam.

 

De resto, há um dilema de fundo antropológico que transcende os contornos da ciência para especialistas em comunicação organizacional ou marketeiros, como os queiramos designar, trazendo a coisa para o nosso continente ou para culturas de sistema de valores semelhantes, lá onde a função de conselheiro estratégico é reservada ao mais velho ou ao superior hierárquico, em última análise o decisor e, portanto, sendo estreita a margem para o inverso.

 

Com a aceleração dos curricula de licenciatura ao abrigo do sistema de Bolonha, as universidades vêm-se obrigadas a privilegiar dinâmicas que puxem por preparar os estudantes para o mercado profissional, tudo girando em torno de trabalhos em grupos, defesas em turma e relatórios. Só não há bela sem senão. Ganha-se na socialização, perde-se no efeito colateral da responsabilização colectiva por parte do avaliador, quando em contexto internacional os estudantes detêm bagagem diferente e podem desalinhar na entrega e na busca de consensos. Nem sempre tratar como iguais elementos diferentes faz justiça.

 

Mas estes nove meses têm oferecido um amplo laboratório, não só em relação à rapidez com que as tecnologias se apoderam do mundo (a exemplo da inteligência artificial), mas também no jeito como a Europa se fortalece por meio de programas de bolsas e intercâmbio como o Erasmus, cimentando o sentimento de pertença no jovem europeu que circula livre de fronteiras e fixa residência no país que lhe aprouver, sem se submeter a nenhuma procissão migratória.

 

Dos amigos indianos retive uma lenda que diz muito sobre os interesses estratégicos nacionais. Conta-se que há bwé de anos, certo carteiro via-se aflito para localizar a morada do destinatário da última correspondência daquele dia, que por acaso era um engenheiro. Anda à procura do engenheiro? Não custa. O senhor vá directo, depois vire à esquerda, a seguir à direita, caminho recto meia hora, depois vire... e por aí vai. No entanto, passadas umas boas décadas, esse mesmo carteiro volta a consultar pelas ruas o endereço do engenheiro, ao que lhe respondem: o senhor pode entregar o envelope em qualquer casa, isso anda tudo cheio de engenheiros.

 

A primeira vez que pisei o solo português foi em 2010 em trânsito para os Estados Unidos da América, país que visitei a convite do Departamento de Estado, servia eu o sector das ONG. Nessa altura voltei de lá com alguma inveja positiva dos nossos irmãos da RDC ao notar quão presentes eles estavam no mundo académico como docentes. É o que eu gostaria de ver mais dos angolanos, embora sirva de algum consolo a visibilidade que o jornalista Israel Campos, estudante de mestrado, vai tendo, uma espécie de Akwá. No outro dia um professor português, ao me apresentar como angolano, perguntava com entusiasmo se eu conhecia o jovem.

 

E assim chega ao fim a primeira temporada da Carta de Lisboa, coluna de crónicas que lhe fez companhia aos domingos durante nove edições a fio. As férias chamam. Grato pela sua leitura.

 

 20 Julho 2023

 

https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/phd-em-ciencias-tentadas-ou-as-ferias-do-mestre-das-idades/

 

 

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domingo, 23 de julho de 2023

A VIDA COMEÇA DEPOIS DO NIF | crónica semanal no Jornal de Angola em "Carta de Lisboa" N.º 08

Os ingleses tinham motivos para chorar. Também eu. 


Naquele início de Setembro por Londres num roteiro de dez dias em capacitação, a gente ia decidida a não abrir mão de ser a gente: turistas incorrigíveis, mais chapéus e óculos de sol do que guarda-chuvas, com direito a assistir a uma partida de futebol no estádio do Chelsea, acenando com bandeirinhas de Angola e tudo (e não é que para nos bajular os rapazes, que iam abaixo do sexto lugar em 2022, até venceram por dois a um?). Só alegria! Mas então se até a polícia de cavalaria se pôs a jeito para caber na foto, toda rendida à aura mwangolê da vez... 

 

Ainda no aeroporto, concretamente na fronteira, é que se via o exemplar-mor da boa hospitalidade. E não é que aqui o cidadão não tivesse sido fiel à sua faceta de trapalhão, com a proeza de comprometer a sorte de toda uma missão em terras de sua Majestade Isabel II. 

 

Ao agente de migração respondi formação. O visto dizia visita em turismo. Questionado sobre o local da hospedagem, a minha boa memória não me deixava em mãos alheias. Íamos ficar onde mesmo? Bem, senhor agente, os meus colegas é que sabem, é que somos um grupo. Do hotel e seu paradeiro não fazia ideia rigorosamente nenhuma de um dígito que fosse, receita pronta para a recusa da entrada e aquele carimbo no passaporte que é um chamariz da desgraça.

 

Nessas horas a pessoa quase que aplica uma auto-bofetada, mais a mais em se tratando de um ex-profissional de aviação civil com uma década de indução em acolhimento e segurança aeronáutica e toda a carga repetitiva que são os procedimentos contra as não-conformidades. 

 

E nem é preciso seguir grande espragata mental para bordar conclusões, bastando lembrar o que aprendemos diariamente com o elementar dos documentários via National Geographic. O silogismo fica à mão de semear: se a resposta oral contradiz o que vem escrito no visto ou se é turista mas não dispara na ponta da língua o destino, logo... E lá o agente investia uns instantes, que sabiam a uma eternidade, a conferir a tela do computador. Levantou a cabeça e carimbou o passaporte, como era de esperar. Sorrisos e… Welcome

 

Depois dessa, que não foi nada inédita em quesito de surpresas, o mundo que aprenda: entre mim e a Grã Bretanha ninguém meta a colher. Para todos os efeitos, importa salientar (aqui pedindo por empréstimo a muleta verbal do jurista) que estamos afinal a falar do regresso de sua excelência eu, volvidos sete anos. Senão recuemos até 2015, como reza a prova dos nove.

 

Ia o amigo Neto Muhindo carregar o botão da minha Nikon D3100 quando uma simpática e animada londrina (caucasiana na casa dos trinta, de casaquete cabedal preto a condizer com a cor dos ténis, calças jeans azul, cabelo curto e sorrisos de marfim) largou o parceiro dela com quem vinha de braços dados. Encostou-se a sua excelência eu que posava para a foto de turista, sob o olhar da estação de comboios ao fundo, o que lhe valeu o banho de sorrisos simpáticos do modelo, do fotógrafo e do seu homem, com quem aliás seguiu caminhando. 

 

E não podia ser mais memorável aquela espontaneidade na quebra de protocolos da lady, o que só enriquece o sentido cosmopolita humano, tão marcado por diferenças e estereótipos. Afinal, os ingleses até conseguem não ser tão frios. Assim já vão dizer que é feitiço do Dombe Grande ou então é sangue doce de quem nasceu em terras de abundante abacaxi como só Utwe Wombwa (Monte Belo), a cem quilómetros de Benguela sede.

 

Voltemos a 2022, frenesim de uma cidade cada vez mais amiga da caminhada, colorida, diversa, repleta de monumentos e manifestações, por isso tão apelativa para quem se dedica à arte de fotografar. A época do ano em que as grandes cidades ocidentais já não estão tão superlotadas de turistas e afins, como no verão, convida-nos a apreciar a transformação subtil que toma conta do meio. A rotação climática sugere a magia do outono, aquela estação que nos leva a reflectir sobre a fugacidade da vida e a apreciar a beleza efémera de cada momento.

 

Enfim, quando menos se esperava, o céu despencava sobre a nossa carapinha. A Rainha Isabel aparentemente faleceu, contava consternado um citadino geralmente bem informado (aqui para recorrer à muleta do jornalista manhoso), que acabava de receber um furo à hora do almoço. 

 

Ouvia-se a imprensa na sua globalidade a preparar a nação para uma comunicação a ser feita logo mais no noticiário das oito da noite, com a admirável observância do princípio ético do embargo da notícia. Constou que neste ínterim, certa proeminente figura da sociedade chegara a confirmar nas redes sociais a morte da Rainha, mas pouco depois recuaria e apagou o post. E dali em diante, Londres já não voltou a ser a mesma, luto e luta no Palácio de Buckingham.

 

Fechado o capítulo Reino Unido, era chegada a minha vez de chorar o óbito chamado crise do mercado imobiliário português. Vinha para dois anos sem naquele momento ter o essencial garantido, um lugar para morar. O alojamento temporário na hospedaria mais próxima da Universidade, para além de ferir o bolso, sucumbia face a tanta reserva a médio prazo.

 

E o telefone local? Olha, sem NIF (número de identificação fiscal) não vai dar. Se talvez o senhor tiver uma factura de água ou luz para comprovar a morada, aí sim. Resolvido, com recurso a morada sem nela morar propriamente. Então e o cartão escolar? Este é acoplado à conta bancária, que não se abre sem o NIF. Em caso de emergência? Bem, o atendimento no serviço de saúde público é mediante o número de utente, que não se consegue tratar com menos de noventa dias de permanência no país e sem NIF. Como tratar o NIF então? Ah, é simples. Precisas de um cidadão português ou residente. A pessoa faz o agendamento via telefone e no dia marcado, que pode levar um mês a julgar pela alta procura, dão entrada da papelada. E onde encontrar essa pessoa, uma vez que o visto é de estudante, sou adulto e pelo visto sem babá?

 

Na teimosia saiu um call center das Finanças e a pessoa que atende admite a possibilidade de vigorar uma lei que permite a estudantes, sem interesses económicos, obterem o NIF. Mas aqui na grande Lisboa, disponibilidade só mesmo na primeira semana de Dezembro. Nunca é demais lembrar que vamos na primeira quinzena de Setembro. Mas a senhora poderia verificar se a nível dos municípios do interior haveria disponibilidade? Um momento. Alguns minuto depois, olhe, daqui a quinze dias vejo vaga na Batalha, às onze e meia.

 

No dia marcado levanto-me muito cedo e conhecendo o país como conheço a estratosfera, resta à pessoa chamar os serviços de transporte por aplicativo, que por vocação cumprem o duplo papel incluindo o de guia. A conta é alta, passa dos cem euros. Eles até comparecem, mas cancelam mal lhes é anunciado o destino. Para a Batalha são para aí cento e cinquenta quilómetros. O último negacionista do meu louco desejo burocrático é piedoso, oferece-se a me deixar na estação de autocarros onde pegaria um para Leiria. O NIF era o meu zénite.

 

Em Leiria, outro táxi por quase dez Euros para Batalha onde me apresento confiante na Loja do Cidadão à hora agendada pelo call center, pouco antes do meio-dia. Redondamente enganado. Não constava da lista. Mas vá lá, fale com a senhora do balcão a ver o que se passou. Fome, sono, frustração passam a ser o meu sobrenome. Explico à senhora, digo que vou de Odivelas (mal imagina que é casa de um colega).

 

Depois de tanta demora, a senhora volta e pede mais documentos. Entrego a resma toda, carta de admissão da universidade, extracto bancário, certificado estampilhado pelo Mirex e autenticado pelo Consulado deles em Luanda, enfim. Lá vem a chefe da senhora com mais uma bateria de perguntas e no final me dizem que afinal eu já tinha um NIF, só que provisório, a partir do momento em que, ainda à distância, abri conta bancária numa agência com ligação a a Angola. Mas fosse como fosse, aquele também era um NIF já descontinuado.

 

O senhor vai sair daqui com o NIF hoje, antigamente levava mais tempo, agora a lei já está mais facilitada. Só que a residência que fica registada é a do seu país de origem, enquanto não sair o seu cartão de residente. Para ser franco, já naquele ponto não sabia decifrar o que sentia a não ser um profundo estado de vulnerabilidade. Meia hora depois me era entregue o papel.

 

Poderia dar-me o vosso livro de sugestões? Tomei a liberdade, para a perplexidade dela. A senhora foi tão humana no atendimento que a minha consciência exige deixar isso escrito, tendo em conta que se me tivesse atendido mal, faria reclamação. A profissional, ainda apanhada de surpresa, voltou a ir ter com a chefe para comunicar o insólito. A seguir localizou no fundo do baú o formulário de louvor, o qual preenchi com gosto. E assim começava a vida... com NIF.

 

Gociante Patissa | 15 Julho 2023

https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/a-vida-comeca-depois-do-nif/

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sexta-feira, 21 de julho de 2023

A Voz do Olho Podcast

[áudio]: Académicos Gociante Patissa e Lubuatu discutem Literatura Oral na Rádio Cultura Angola 2022

TV-ANGODEBATES (novidades 2022)

Puxa Palavra com João Carrascoza e Gociante Patissa (escritores) Brasil e Angola

MAAN - Textualidades com o escritor angolano Gociante Patissa

Gociante Patissa improvisando "Tchiungue", de Joaquim Viola, clássico da língua umbundu

Escritor angolano GOCIANTE PATISSA entrevistado em língua UMBUNDU na TV estatal 2019

Escritor angolano Gociante Patissa sobre AUTARQUIAS em língua Umbundu, TPA 2019

Escritor angolano Gociante Patissa sobre O VALOR DO PROVÉRBIO em língua Umbundu, TPA 2019

Lançamento Luanda O HOMEM QUE PLANTAVA AVES, livro contos Gociante Patissa, Embaixada Portugal2019

Voz da América: Angola do oportunismo’’ e riqueza do campo retratadas em livro de contos

Lançamento em Benguela livro O HOMEM QUE PLANTAVA AVES de Gociante Patissa TPA 2018

Vídeo | escritor Gociante Patissa na 2ª FLIPELÓ 2018, Brasil. Entrevista pelo poeta Salgado Maranhão

Vídeo | Sexto Sentido TV Zimbo com o escritor Gociante Patissa, 2015

Vídeo | Gociante Patissa fala Umbundu no final da entrevista à TV Zimbo programa Fair Play 2014

Vídeo | Entrevista no programa Hora Quente, TPA2, com o escritor Gociante Patissa

Vídeo | Lançamento do livro A ÚLTIMA OUVINTE,2010

Vídeo | Gociante Patissa entrevistado pela TPA sobre Consulado do Vazio, 2009

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