domingo, 23 de julho de 2023

A VIDA COMEÇA DEPOIS DO NIF | crónica semanal no Jornal de Angola em "Carta de Lisboa" N.º 08

Os ingleses tinham motivos para chorar. Também eu. 


Naquele início de Setembro por Londres num roteiro de dez dias em capacitação, a gente ia decidida a não abrir mão de ser a gente: turistas incorrigíveis, mais chapéus e óculos de sol do que guarda-chuvas, com direito a assistir a uma partida de futebol no estádio do Chelsea, acenando com bandeirinhas de Angola e tudo (e não é que para nos bajular os rapazes, que iam abaixo do sexto lugar em 2022, até venceram por dois a um?). Só alegria! Mas então se até a polícia de cavalaria se pôs a jeito para caber na foto, toda rendida à aura mwangolê da vez... 

 

Ainda no aeroporto, concretamente na fronteira, é que se via o exemplar-mor da boa hospitalidade. E não é que aqui o cidadão não tivesse sido fiel à sua faceta de trapalhão, com a proeza de comprometer a sorte de toda uma missão em terras de sua Majestade Isabel II. 

 

Ao agente de migração respondi formação. O visto dizia visita em turismo. Questionado sobre o local da hospedagem, a minha boa memória não me deixava em mãos alheias. Íamos ficar onde mesmo? Bem, senhor agente, os meus colegas é que sabem, é que somos um grupo. Do hotel e seu paradeiro não fazia ideia rigorosamente nenhuma de um dígito que fosse, receita pronta para a recusa da entrada e aquele carimbo no passaporte que é um chamariz da desgraça.

 

Nessas horas a pessoa quase que aplica uma auto-bofetada, mais a mais em se tratando de um ex-profissional de aviação civil com uma década de indução em acolhimento e segurança aeronáutica e toda a carga repetitiva que são os procedimentos contra as não-conformidades. 

 

E nem é preciso seguir grande espragata mental para bordar conclusões, bastando lembrar o que aprendemos diariamente com o elementar dos documentários via National Geographic. O silogismo fica à mão de semear: se a resposta oral contradiz o que vem escrito no visto ou se é turista mas não dispara na ponta da língua o destino, logo... E lá o agente investia uns instantes, que sabiam a uma eternidade, a conferir a tela do computador. Levantou a cabeça e carimbou o passaporte, como era de esperar. Sorrisos e… Welcome

 

Depois dessa, que não foi nada inédita em quesito de surpresas, o mundo que aprenda: entre mim e a Grã Bretanha ninguém meta a colher. Para todos os efeitos, importa salientar (aqui pedindo por empréstimo a muleta verbal do jurista) que estamos afinal a falar do regresso de sua excelência eu, volvidos sete anos. Senão recuemos até 2015, como reza a prova dos nove.

 

Ia o amigo Neto Muhindo carregar o botão da minha Nikon D3100 quando uma simpática e animada londrina (caucasiana na casa dos trinta, de casaquete cabedal preto a condizer com a cor dos ténis, calças jeans azul, cabelo curto e sorrisos de marfim) largou o parceiro dela com quem vinha de braços dados. Encostou-se a sua excelência eu que posava para a foto de turista, sob o olhar da estação de comboios ao fundo, o que lhe valeu o banho de sorrisos simpáticos do modelo, do fotógrafo e do seu homem, com quem aliás seguiu caminhando. 

 

E não podia ser mais memorável aquela espontaneidade na quebra de protocolos da lady, o que só enriquece o sentido cosmopolita humano, tão marcado por diferenças e estereótipos. Afinal, os ingleses até conseguem não ser tão frios. Assim já vão dizer que é feitiço do Dombe Grande ou então é sangue doce de quem nasceu em terras de abundante abacaxi como só Utwe Wombwa (Monte Belo), a cem quilómetros de Benguela sede.

 

Voltemos a 2022, frenesim de uma cidade cada vez mais amiga da caminhada, colorida, diversa, repleta de monumentos e manifestações, por isso tão apelativa para quem se dedica à arte de fotografar. A época do ano em que as grandes cidades ocidentais já não estão tão superlotadas de turistas e afins, como no verão, convida-nos a apreciar a transformação subtil que toma conta do meio. A rotação climática sugere a magia do outono, aquela estação que nos leva a reflectir sobre a fugacidade da vida e a apreciar a beleza efémera de cada momento.

 

Enfim, quando menos se esperava, o céu despencava sobre a nossa carapinha. A Rainha Isabel aparentemente faleceu, contava consternado um citadino geralmente bem informado (aqui para recorrer à muleta do jornalista manhoso), que acabava de receber um furo à hora do almoço. 

 

Ouvia-se a imprensa na sua globalidade a preparar a nação para uma comunicação a ser feita logo mais no noticiário das oito da noite, com a admirável observância do princípio ético do embargo da notícia. Constou que neste ínterim, certa proeminente figura da sociedade chegara a confirmar nas redes sociais a morte da Rainha, mas pouco depois recuaria e apagou o post. E dali em diante, Londres já não voltou a ser a mesma, luto e luta no Palácio de Buckingham.

 

Fechado o capítulo Reino Unido, era chegada a minha vez de chorar o óbito chamado crise do mercado imobiliário português. Vinha para dois anos sem naquele momento ter o essencial garantido, um lugar para morar. O alojamento temporário na hospedaria mais próxima da Universidade, para além de ferir o bolso, sucumbia face a tanta reserva a médio prazo.

 

E o telefone local? Olha, sem NIF (número de identificação fiscal) não vai dar. Se talvez o senhor tiver uma factura de água ou luz para comprovar a morada, aí sim. Resolvido, com recurso a morada sem nela morar propriamente. Então e o cartão escolar? Este é acoplado à conta bancária, que não se abre sem o NIF. Em caso de emergência? Bem, o atendimento no serviço de saúde público é mediante o número de utente, que não se consegue tratar com menos de noventa dias de permanência no país e sem NIF. Como tratar o NIF então? Ah, é simples. Precisas de um cidadão português ou residente. A pessoa faz o agendamento via telefone e no dia marcado, que pode levar um mês a julgar pela alta procura, dão entrada da papelada. E onde encontrar essa pessoa, uma vez que o visto é de estudante, sou adulto e pelo visto sem babá?

 

Na teimosia saiu um call center das Finanças e a pessoa que atende admite a possibilidade de vigorar uma lei que permite a estudantes, sem interesses económicos, obterem o NIF. Mas aqui na grande Lisboa, disponibilidade só mesmo na primeira semana de Dezembro. Nunca é demais lembrar que vamos na primeira quinzena de Setembro. Mas a senhora poderia verificar se a nível dos municípios do interior haveria disponibilidade? Um momento. Alguns minuto depois, olhe, daqui a quinze dias vejo vaga na Batalha, às onze e meia.

 

No dia marcado levanto-me muito cedo e conhecendo o país como conheço a estratosfera, resta à pessoa chamar os serviços de transporte por aplicativo, que por vocação cumprem o duplo papel incluindo o de guia. A conta é alta, passa dos cem euros. Eles até comparecem, mas cancelam mal lhes é anunciado o destino. Para a Batalha são para aí cento e cinquenta quilómetros. O último negacionista do meu louco desejo burocrático é piedoso, oferece-se a me deixar na estação de autocarros onde pegaria um para Leiria. O NIF era o meu zénite.

 

Em Leiria, outro táxi por quase dez Euros para Batalha onde me apresento confiante na Loja do Cidadão à hora agendada pelo call center, pouco antes do meio-dia. Redondamente enganado. Não constava da lista. Mas vá lá, fale com a senhora do balcão a ver o que se passou. Fome, sono, frustração passam a ser o meu sobrenome. Explico à senhora, digo que vou de Odivelas (mal imagina que é casa de um colega).

 

Depois de tanta demora, a senhora volta e pede mais documentos. Entrego a resma toda, carta de admissão da universidade, extracto bancário, certificado estampilhado pelo Mirex e autenticado pelo Consulado deles em Luanda, enfim. Lá vem a chefe da senhora com mais uma bateria de perguntas e no final me dizem que afinal eu já tinha um NIF, só que provisório, a partir do momento em que, ainda à distância, abri conta bancária numa agência com ligação a a Angola. Mas fosse como fosse, aquele também era um NIF já descontinuado.

 

O senhor vai sair daqui com o NIF hoje, antigamente levava mais tempo, agora a lei já está mais facilitada. Só que a residência que fica registada é a do seu país de origem, enquanto não sair o seu cartão de residente. Para ser franco, já naquele ponto não sabia decifrar o que sentia a não ser um profundo estado de vulnerabilidade. Meia hora depois me era entregue o papel.

 

Poderia dar-me o vosso livro de sugestões? Tomei a liberdade, para a perplexidade dela. A senhora foi tão humana no atendimento que a minha consciência exige deixar isso escrito, tendo em conta que se me tivesse atendido mal, faria reclamação. A profissional, ainda apanhada de surpresa, voltou a ir ter com a chefe para comunicar o insólito. A seguir localizou no fundo do baú o formulário de louvor, o qual preenchi com gosto. E assim começava a vida... com NIF.

 

Gociante Patissa | 15 Julho 2023

https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/a-vida-comeca-depois-do-nif/

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