domingo, 16 de julho de 2023

BENGUELA E MAFRA NO ROTEIRO DA IRMANDADE DE M... ANÓNIMOS | crónica semanal no Jornal de Angola em "Carta de Lisboa" N.º 07

 Vou a descer a mini-ladeira do Alto dos Moinhos a passos absortos, entre o Estádio da Luz e a Estrada de Benfica. Dentro da cabeça de “desterrado”, que é o lugar onde verdadeiramente mora quem padece de arte, estamos a festejar resultados do meu contributo mecenas numa teia de projectos de exumação de utopias. Tempo verbal: futuro condicional.

Até já vejo a abertura de uma escola de música em Benguela, incubadora de artes, mais um generoso fundo para enviar jovens ao estrangeiro em bolsas de estudo coordenadas pela pequena ONG que fundamos há um quarto de século (a Associação Juvenil para a Solidariedade, AJS), uma rádio com estúdio para promoção de músicos locais, pesquisas, ressignificação dos monumentos e da história do meio, de um modo que inclua os não grandes.

 

Aquela visita guiada ao Palácio Nacional e Convento de Mafra (que inspirou o romance Memorial do Convento, de José Saramago) foi o estopim. Já nada mais me podia deter na ardência de ingressar na Irmandade dos M... Anónimos, só a própria sorte, que poderá pecar por tardia. Atenção, é alguém que contabiliza trinta anos (um terço) de toda uma vida no mercado de trabalho, capturado que se viu pela lei do estômago ainda aos catorze!

 

A Irmandade seduzia. Era questão de horas. Tinha chegado a minha vez, dizia-me com veemência a convicção, calibrada, quiçá, com aquela premissa milenar, profética e inquestionável: querer é poder. E eu de facto nunca o quis mais, palavra de honra! 

 

O mundo embarcou num cruzeiro de mudanças e evoluções em relação às quais, a humildade que não nos deixe mentir, está difícil acertar. Um ano fora do Facebook é o que se vê no amontoado de complementos. Então como da pobreza até já lhe conheço a cor, o cheiro e a forma, tomei a liberdade de enfrentar a evolução que nos aguarda a partir de um status, também ele novo e inexperimentado. Milionário Anónimo. A questão é como. Lá chegaremos.

 

Não é por mal, só que para nativos dos anos setenta, é líquido que havia pronomes e substantivos auto-explicativos. Engraxador só havia um tipo profissional. Agora parece que temos de acrescentar engraxador de sapatos. Ontem, numa dessas aulas online ouvi que afinal não basta dizer os homens ou as mulheres ao formular uma frase no postulado da biologia; havia de se dizer os homens (com pénis) e as mulheres (com vagina). Vivendo e aprendendo.

 

Já volto às horas que vão anteceder a minha entrada para a Irmandade dos Milionários Anónimos. Aceite antes o leitor ou a leitora a boleia para um salto no tempo pela janela da vila de Mafra, ao volante e indução da minha amiga Alexandra Sobral, advogada de profissão, natural do Bié de outro tempo. O roteiro não dispensa a escala pelo prato típico de carneiro estufado, apaixonada que é pelo turismo como ponte cultural entre diversos povos e gerações. Conheci-a por Benguela há uma década na companhia da arqueóloga Filomena Barata.

 

Dizia, a quarenta quilómetros a noroeste de Lisboa ergue-se majestoso o Palácio Nacional de Mafra, um tesouro que desperta o fascínio dos visitantes e conta parte determinante da monarquia ao longo dos séculos de alianças com outros poderes da Europa afora. Em 2019, foi oficialmente consagrado pela Unesco como Património Mundial.

 

Ao atravessar os seus portões, somos envolvidos por um universo de grandiosidade e esplendor, com mármore de ímpar textura. O complexo abrange o Palácio, cujos aposentos testemunharam a pompa e a majestade dos monarcas de outrora. Ao seu lado, ergue-se a Basílica, um testemunho arquitectónico de devoção e espiritualidade. Não podemos deixar de mencionar o Convento, que abrigou monges em busca de uma vida dedicada à fé e ao serviço.

 

Mas o cartão de visita de Mafra não se limita a construções magníficas. A vasta extensão de mil e mais hectares é um verdadeiro íman para os amantes da natureza. Dentro das muralhas esconde-se um tesouro intelectual que atrai estudiosos e curiosos de todo o mundo. A biblioteca iluminista, com aproximadamente trinta mil volumes é uma preciosidade. Cada livro é um fragmento da história, um farol e trilho para desvendar as façanhas do passado.

 

Enquanto escalamos as torres sineiras da Basílica, somos transportados para um mundo sonoro de magnitude singular. O conjunto de sinos ali abrigado é um dos maiores do mundo, com dois carrilhões que preenchem os sentidos com uma sinfonia celestial. Graças a um minucioso trabalho de restauração realizado há uma década, essas preciosidades voltaram a ecoar. A decoração de contornos museológicos confere ao monumento o toque de verosimilhança.

 

Como referi, uma das perguntas que coloco com recorrência à senhora dona vida é se ela tem noção do quanto serei incapaz de merecer, quanto mais pagar, as pessoas maravilhosas e genuinas que me acolhem e abrem portas ao saber e ao crescimento intelectual em Angola e fora. A cicerone e poço de bagagem historiográfica e cronista apurada emprestada à advocacia, Alexandra Sobral, é das almas que só pecam por não serem fotocopiáveis na loja do chinês mais próxima, pois um só exemplar da espécie é pouco para a humanidade.

 

Voltando ao começo. Dizia sua excelência eu, em Alto dos Moinhos faço a caminhada que vai mudar o meu futuro todo abstraído, como manda a cartilha de estrangeiro desacompanhado. Já só falta atravessar a estrada. É hora de almoço mas opto pelo jejum, investindo já no relato dramático das últimas horas comigo pobre. E marcho. Não conheço ninguém, ninguém me conhece, ainda mais em sociedades onde o não saudar não significa antipatia. 

 

Está sol tépido, escondo-me no par de óculos escuros, calvície a bronzear enquanto não venta. Nas mãos um livro que me faz companhia há uma eternidade e não vejo meio de o concluir. Passo (tipo nada) por um homem que me é semelhante na tez e na carapinha.  

 

Desculpa! Dirige-se a mim o africano. Sim? Respondo eu um tanto contrariado e a pensar, mas quem é esse mais que vai querer reivindicar o mérito de ter sido a última pessoa com quem falei antes de ser Milionário?! Você é angolano, certo? Indaga o senhor, ali na casa dos quase cinquenta. Porquê? Retruco a três pancadas, ainda tentando captar a intenção.

 

Estás ligado à literatura. Somos amigos das redes sociais. Sou da Catumbela, fomos do mesmo tempo de escola. Não és da Santa Cruz? Sou o Varela. Apresenta-se o nosso conterrâneo, desarmando-me por completo. Oh, mano Eduardo, meu contemporâneo dos tempos das correspondências ali pelos CTT do Velho Chimuco, da Catumbela! Dá cá um abraço!

 

Temos em comum o passado de formandos do IED (Instituto de Estudos para o Desenvolvimento), ONG do Engenheiro Marcelino, ministrado no Centro de Formação Profissional do Lobito, tutelado pelo INEFOP. Varela fizera o curso de condutor de obras em 1996, um ciclo antes do meu curso de pedreiro de construção civil, aos dezanove anos, findo o qual concorri para o curso de soldador na recém-constituída Sonamet, empresa de fabricação de estruturas metálicas para a indústria petrolífera.

 

O nosso mano é dos pioneiros da leva de mwangolês que decidiram (ou se viram forçados pelas décadas de guerra a) trocar o solo pátrio pelo ocidente e lá singrar. Quando aqui chegamos, meu mano, isso era muito fechado para o africano, conta. Para teres ideia, até para achar branco que soubesse cortar em condições o nosso cabelo era raro. Até hoje corto eu próprio o cabelo. Trocamos os contactos e despedimo-nos com a esperança de próximo convívio.

 

Faço-me à lotaria confiante. Vou ganhar o Euromilhões! O jackpot promete meia centena de milhões. Não sou viciado nem coisa parecida, atenção! Só jogo porque, pronto... Ou ganho ou é a última vez a apostar. Tal como foi na semana passada. Minto, na antepassada. Aliás, no mês passado idem. Quer dizer, no outro mês também. Dê-me quatro raspadinhas de cinquenta vezes, por favor, senhor. Vinte Euros que compram, vinte Euros que saem. Mais uma aposta, meu amigo? Não, fico com o dinheiro, que isto de lotaria é como na guerrilha, quando não perdemos significa que ganhamos. Há que comemorar. Um dia serei Milionário... Anónimo, claro!

 

Gociante Patissa, 09 Julho 2023

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