O kota, que esbanja energias, bom humor e memória de elefante, não um mas de uma manada inteira, somou 88 anitos da sua chegada ao planeta terra (emprestado do planeta onírico, como é óbvio mas nunca é demais reforçar, onde os artistas e os génios pré-existem).
Na tarde de 27 Março, sem Carnaval da Victória, todos os agasalhos foram poucos para enfrentar os gélidos ventos de inverno lisboeta rumo a um triatlo prenhe de amplitude sociocultural e histórica. O primeiro acto da cerimónia cobriu a parte metodológica, onde Margarida Calafate Ribeiro, investigadora-coordenadora no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, debulhou o processo, ladeada por Nuno Simão Gonçalves e Helena Rebelo, responsáveis técnicos do acervo digital Papéis da Prisão de José Luandino Vieira.
A primeira parte desembocou ainda na projecção de um generoso excerto do documentário sobre a memória dos anos de prisão em Tarrafal. Em fase de pós-produção, o audiovisual promete, a julgar pelo valor testemunhal de ter sido rodado com a presença do homenageado, numa narrativa envolvente, ao mesmo tempo perspicaz e poética.
O ex-preso político aparece a franquear com os pés firmes, raciocínio fluído, os trilhos e grades do estabelecimento, num regresso recente àquele chão de desterro em terras de Cesária Évora, sob a batuta de Sandra Inês Cruz. A jornalista é também uma académica que navega nas áreas de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, Pós-Colonialismos e Cidadania.
A sinopse do projecto nota que o material, reunido em livro (publicado em 2015) e também disponível para consulta no site da fundação Calouste Gulbenkian, corresponde a duas mil folhas manuscritas, conservadas inéditas ao longo de cinquenta anos, sendo composto por anotações diarísticas, correspondência, postais, desenhos, cancioneiro popular, esboços literários, exercícios de tradução, ditos, textos em kimbundu e recortes jornalísticos.
A maioria das almas presente na homenagem é por motivos óbvios nativa de gerações que não têm ligação com o período antologiado, sob o ponto de vista da sua efervescência, a não ser pela cultura geral alimentada com o suporte da academia e do jornalismo. E, claro está, é movida pelo carinho e curiosidade em relação a Luandino Vieira, cada um a seu jeito e modo de sentir, enquanto autor incontornável do imaginário contado em português. E sobre o espaço transatlântico bordado por essa língua com já perto de trezentos milhões de falantes.
Testemunhar a abertura do acervo da obra de Luandino a mim remeteu à grata lembrança da visita que fiz em 2018 à Casa-Museu do escritor brasileiro Jorge Amado, em Salvador da Bahia, durante a FLIPELÔ, Festa Literária Internacional do Pelourinho, a convite da Fundação Pedro Calmon, afecta à Secretaria de Cultura do Estado da Bahia, com Arany Santana e Zulú Araujo à cabeça, apoio da Casa de Cultura de Angola naquelas paragens, de Benjamim Sabby. E de lá para cá lateja nos meus sonhos ver no nosso país um Museu da Literatura, que indiscutivelmente foi e continuará a ser uma âncora dos nossos rumos como sociedade.
José Luandino Vieira foi o primeiro secretário-geral da União dos Escritores Angolanos, director da Televisão de Angola, com passagem pelo Instituto Angolano do Cinema. Tradutor e escritor premiado, da sua obra que passeia pelo conto, novela e romance, destacam-se Luuanda, A vida verdadeira de Domingos Xavier, João Vêncio. Os seus amores, Nosso Musseque, Nós, os do Makulusu, só para encurtarmos o enrolamento.
Entre 1961 e 1964, esteve “internado” em diversas prisões de Luanda, sendo transferido para o Campo de Trabalho de Chão Bom, Tarrafal, Cabo Verde. Ali ficou até 1972, ao que se seguiu o despacho para Lisboa, retido em residência fixa que findaria em 1974 com o ruir da ditadura.
Até 2016, Luandino dedicou-se ao singular contributo de editar com custos próprios tanto jovens como consagrados autores sob a chancela da NósSomos, sociedade com o seu coetâneo Arnaldo Santos. Muito havia de ganhar Angola investindo na iniciativa como ente de utilidade pública, tal é a relevância de nos posicionarmos no capítulo da diplomacia cultural. É que por não ser comercial, já provou ter um olhar mais profundo sobre as diversas gerações ou matrizes da nossa literatura e seus fazedores, que tanto carecem de pontes de circulação da nossa riqueza imaterial por meio de obras e afectos. Depois era só apostar na tradução.
Mas sobre a biografia de Luandino, suas escolhas, valores e renúncias, já muito se escreveu e disse, razão pela qual o cidadão que vos fala recolhe-se à prudência de quem tem de embrulhar ainda muito funji com feijão, bastante verdura e da boa lambula (sardinha) antes de entrar numa tal avenida. Não é melhor, caro leitor? O lugar que continue ocupado e bem por estudiosos, contemporâneos do homem e jovens de anteontem. Não será em vão que o adágio umbundu cedo diga que “Ku citelã ku cupi ongangu; nda ku teka, sanga otunguka” (se está fora das tuas habilidades, não arrisques; se não te partes todo, ainda torces algo).
Retomando. A presença do corpo diplomático de Angola e Cabo-Verde preenche seguramente o símbolo da unidade africana e dos passos já dados na relação com a então potência colonizadora. É certo que o valor das políticas de cooperação deverá sempre ser medido pelo seu reflexo na vida do cidadão comum face à meta do fortalecer de laços.
Pela tela do anfiteatro à meia-luz, de si envolto num profundo estado de quietude da audiência que segue o desenrolar de cada detalhe, desfilam recortes, fragmentos de textos, ilustrações, anseios e, fundamentalmente, a inquietação de uma geração de intelectuais determinada a dar vazão à responsabilidade que a história lhes incumbia. Combater enquanto nacionalistas nas então colónias pela liberdade e derrube do jugo português, o que se alcançaria em 1975 (com algum impulso da revolução dos cravos, em 25 de Abril de 1974) tinha um custo, no corpo, na alma e em muitos casos saldado com a própria vida.
O documentário despede-se, sobem as letrinhas escoltadas pelos aplausos de comoção diante do tão intenso que se absorveu da tormenta. Inevitavelmente, as correspondências entre o prisioneiro e a sua esposa amada, Linda, que já não se encontra em vida, ainda ecoam.
É chegado o ponto mais alto do dia, a tão ansiada janela de ver e ouvir sem ser na tela o homem que se fez mistério e de quem se sabe quando muito andar pelos lados do norte de Portugal, vida contemplativa feito um monge. Presidium montado, Roberto Vecchi, o académico que vai conduzir a conversa ocupa o seu lugar, testa o microfone. Luandino é anunciado. E faz-se ao palco, curva-se perante o carinho da assistência numa sequência de vénias e... balde de água gelada. Permitam-me que não diga muito mais do que um muito obrigado. Não sou capaz. Dito isto, voz subtilmente embargada, retoma o seu lugar na plateia.
A sala é tomada pela salva de palmas, humanas e alinhadas com o céu que agora paira ao transcorrer um ontem que desafia afinal a erosão do tempo. Ao professor, restou a elevação de improvisar palavras de circunstância. O vazio, porém, foi curto, o tempo suficiente para o mais-velho se recompor e reafirmar o compromisso de seguir a agenda. E se bem o disse, melhor o fez. Daí saiu um bate-papo proverbial e atravessado pelo humor.
A sessão de autógrafos, já na puberdade da noite, deu vez aos efusivos kandandus de praxe entre velhos e novos amigos e conhecidos, renovando nisto votos de longa vida e saúde.
Gociante Patissa, Lisboa, 04 Julho 2023
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