Antologia Angola 40 anos... disponível nos mercados KERO |
À
memória do meu avô paterno e xará, Manuel Patissa, cujo relato foi a base.
As
aves no coração da aldeia eram prestimosas mensageiras. Disputavam o céu, cada
espécie tentando caprichar num rol de acrobacias desinteressadas. Anunciavam ora
cacimbos de grandes caçadas, ora estações de férteis chuvas. Um lindo
espectáculo de se ver. Várias sessões ao dia. Garças pela manhã, cegonhas ao
meio dia, gaivotas ao cair da tarde. À boleia, até as corujas, odiadas pelo seu
mau presságio, e daí o pânico, viam-se temporariamente toleradas.
Em
meios virgens, dantes a vida resumia-se a duas festas, nomeadamente, o trabalho
e a celebração das estações da natureza, muitas vezes não se sabendo ao certo onde
começava uma e terminava a outra. De tal maneira que volta e meia estavam
brancos pássaros à ponta da enxada, feitos guias, ou sobre o dorso do boi que
puxa a charrua ou, antes, trespassando a choupana da maçaroca a assar,
desmentindo a solidão de camponesas. Nas encostas do riacho, tal era a
cumplicidade entre as pessoas e a natureza que não chegava a ser novidade
poisar uma andorinha à cabeça, como se simbolicamente se quisessem tributar os
brancos cabelos debaixo do lenço de mais uma idosa com filhos e neto por criar.
A
aldeia renovava-se no seu vigor e nas suas esperanças. Não tardaria, estava às
portas o luar de fim de cacimbo, que representava uma grande festa. Nesta fase,
já com as temperaturas bem mais amenas, o ritmo quente do batuque nas veias
africanas soltava-se da hibernação e a aldeia confundia-se com um verdadeiro
festival de artes performativas, numa dança em casamento com a representação.
Ao compasso de «ukongo», os aldeões agradeciam aos deuses pelo êxito nas
caçadas e por regressarem com vida a suas casas os bravos homens. Por seu
turno, no «olundongo», por vezes até às umbigadas, convergiam os prantos
de cada um, ao passo que o fecho do ciclo da circuncisão estimulava as palmas e
os assobios com o «ocinganji», mascarado.
Esta
parte final, a mais efusiva, passava ao lado de uma alma mais ou menos
incompreendida. Suportava estoicamente o ressoar dos batuques, não podendo
dormir sossegado nem juntar-se à festa. A arena ficava distante de casa, e ele
era paralítico. É que nessa aldeia, distante, distante do nosso tempo, havia
espaço para tudo, menos para a felicidade de pessoas com deficiência.
Acreditava-se que a limitação motora seria praga dos deuses por eventual erro
dos ancestrais. E perverso do jeito que chega a ser o dogma do senso comum,
quem acabava por levar com algum desdém era a própria vítima. E começava mesmo pelo
paradigma proverbial dos nomes africanos.
Tendo
uma infância bastante doentia, ficando a sua sobrevivência a dever-se a preces
e medicações à base de raízes, os pais dele entendiam que nenhum nome seria mais
oportuno do que Lumbombo, sinónimo de raiz.
Ademais,
ao atribuir nomes simbolicamente feios, acreditava-se que seria uma maneira de
enganar a morte, pois esta tem a inconveniência de roubar do nosso convívio pessoas
que nos são queridas. Ora, se ao nome a gente revela desprezo, pode ser que a
pessoa tenha longa vida ou, no mínimo, finge-se que o finado também já não nos fazia
falta alguma, não podendo por isso a morte achar que venceu.
Em
meios rurais, onde são pelo trabalho as pessoas notadas, Lumbombo, visto como
um ser frágil, não era bem o tipo que povoava fantasias. Não se lhe via beleza nem
valentia para sustentar uma mulher. Da beleza do rio, aonde todo o mundo ia
lavar e lavar-se, já só lhe restava uma difusa memória da sua infância, quando
lá ainda podia chegar às costas de Katumbu, sua irmã. Passa por nós o tempo,
aumenta-nos a idade e o peso do corpo. Ora, já homem grandinho, transcendia as
forças da sua irmãzinha, passando a tomar o banho em casa mesmo. Com um forte
instinto maternal, Katumbu levantava-se cedo do recinto da cozinha, onde
dormia, para ir ao rio com uma cabaça de cinco litros em cada mão. Era o
suficiente para a higiene do irmão.
Diz-se
que aquele que já nasce com a deficiência tem maiores probabilidades de lidar
com a baixa auto--estima do que aquele que a adquire depois de ter uma cosmovisão
já construída. Na hipótese de ter sido, de facto, assim, Lumbombo não andava
por aí a fazer da sua condição uma canção. Para a família, ele nem era inútil.
Passava
o dia em casa e cuidava dos animais domésticos, muitas vezes usados como moeda
de permuta com produtos de uma loja que encurtava a distância entre as estrelas
de um céu escuro como breu e o brilho eléctrico das cidades.
Com
tantas horas de ócio, ainda pequeno Lumbombo desenvolveu um forte sentido de
contribuir, transformando o pátio de sua casa em uma permanente fonte de
hortaliças e alguns cereais. Fruto disso, passava o dia rodeado de aves, entre
galinhas, capotas, patos, pombos, perus, gansos e tantas outras. Qual placa
giratória, a sua pequena horta era também abundada por aves não domésticas, que
ali encontravam aconchego. Muito dados a recorrer à mitologia para encontrar
explicações sobre qualquer fenómeno que lhes escapasse, houve habitantes que
espalhassem que aquilo era muito mais do que um simples domador de aves, que
ele cuidava de as plantar. Rapidamente passou a ser conhecido como sendo o
homem que plantava aves. E não é que ele também não gostasse de tal descrição.
Romântico
inconfesso, Lumbombo não sossegava enquanto não bolasse uma estratégia
aparentemente desinteressada de atrair simpatia feminina. Foi então que aprendeu
a esculpir pentes de madeira, ciente de ser a vaidade a primeira amiga de uma
mulher. Nem foi preciso sequer um ano para o quintal do homem andar apinhado de
beldades, perdoem-me aqui algum exagero. Tantas vezes amou, outras foi amado,
ainda que às escondidas, dado o preconceito que julgava contagiosa a
deficiência. E com as suas poupanças passou o mestre Lumbombo a investir na
criação de gado. De frágil a prodigioso, cativava beldades e acumulava bens sem
sair do lugar, sem conhecer o caminho da lavra sequer, já que só se podia mover
arrastando-se.
Certo
dia, foi um amigo de um amigo seu pedir-lhe um boi emprestado para otimizar a
sua lavoura. Lumbombo, cordato, taciturno, cedeu sem sequer estabelecer qualquer
taxa de juros, quando nestes casos até se justificava.
O
boi era possante e teria muita vida pela frente, pelo que emprestar só para uma
época de cultivo não seria nada demais. Os pais dele não acharam boa ideia, viviam
repetindo que «pesinsa panyãle ongolo;
pukamba panyãle ofuka[1]», mas
ele estava determinado. Aliás, a determinação era ao mesmo tempo a sua maior
virtude e o seu maior defeito. Replicava, socorrendo-se também de outra
sabedoria popular: «walevalisa wasolekisa[2]».
Diante da contenda, ficava tudo entregue ao crivo dos dias, que sabem sempre o
que vem a seguir.
Algum
tempo depois, Lumbombo recebia por terceiras mãos o recado de que o boi havia
morrido na lavoura. «Eu, pagar o boi do paralítico? Nunca!», refilava o ajudado.
«O que é que pode ele fazer para me agarrar, por acaso vai correr?» A
repreensão dos demais aldeãos era automática, tendo em conta que é sobre a
honestidade e honradez que se constrói uma sociedade. Aquele teimava em não
ressarcir. Fazia-o com a maior das boçalidades.
Lumbombo
chegou a ser aconselhado a apresentar uma queixa à Ombala do Soba, que tem a
função de sede da autoridade e o único tribunal. Contaram-lhe uma série de
dívidas malparadas e que tiveram o desfecho merecido. Mas ele, talvez por ter a
situação económica confortável, achava que não valia a pena, que uma tal saída
só atrairia ainda mais antipatias, que aquilo lhe serviria de lição. E o
assunto por aí ficou.
Um
ano depois, uma notícia encheu de grande desalento a aldeia. Uma lasca de
madeira havia adentrado um dos olhos do mestre dos pentes. Ter-se-ia alojado atrás
da córnea. Não havendo hospital convencional, cabia aos homens ir soprar-lhe
pela boca o olho. Turnos de dois, duas vezes ao dia. E como o trabalho
voluntário é rotativo e obrigatório, teve de ser consultado o doente se permitia
o vigarista soprar-lhe também, ao que anuiu, garantindo que nos momentos de
doença e morte, a dívida podia esperar.
Chegada
a vez, o devedor curvou-se para soprar, todo ele condoído. Mas quando menos
esperava, o doente envolveu-lhe num grampo de braços pelo pescoço, cortando-lhe
assim a respiração, ao ponto soltar gazes. «Daqui só sais com o meu boi de
volta!»
Lá
estava ele a clamar por resgate. Os demais ainda tentaram de tudo para arrancar
o vigarista dos braços de Lumbombo, não faltando quem derramasse óleo de palma,
na vã tentativa de aligeirar a separação. Só horas depois, com a presença do
boi, Lumbombo soltou-lhe.
E
estava aprendida a lição. Não é com as pernas que corremos, é com o pensamento.
Gociante
Patissa
_____
- In
«Antologia Angola 40 Anos - 40 Contos - 40 Autores».Mayamba Editora, Luanda, 2015 (disponível na rede de mercados KERO)
- In «O Homem Que Plantava Aves», coletânea
de contos do autor. Penalux. São Paulo, Brasil, 2017
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