Era
uma vez uma terriola perdida nos intestinos do mapa de Angola e que vivia e
prosperava à sua medida. Digamos, antes, à medida das suas regras de base rural,
numa harmonia entre os habitantes, o meio e os recursos.
Buscavam
sustento na natureza e a ela devolviam esperanças em forma de fertilizantes. Ah,
e não era tudo! Alguns rituais tradicionais africanos consistiam em partilhar
com o chão determinadas regalias. Era disso exemplo o meio copo de aguardente
entornado ao solo para encerrar sessões de resolução de conflitos, o que
simboliza dar de beber aos antepassados que testemunham o evento por meio do
seu espírito e da sabedoria legada.
Práticas
a coabitar (com ou sem conflito ideológico) com a capelinha ali plantada pelo então
braço do regime colonial, a igreja católica romana. Coisa de ver uma autoridade
tradicional em simultâneo no papel de catequista, bíblia a tiracolo e na
cintura as mixórdias de manutenção do trono. A divisão social de papéis problema
seria não. Depois de desmatar e desbravar propriedades para cultivo, a parte
mais pesada, a lavoura, de sequeiro, ficava para a esfera feminina. Os machos
da aldeia, estes talhados a bravos, conforme a lei sazonal, organizavam
queimadas com fins de caça silvestre.
Quando
o caudal assim permitisse, a aldeia toda unia-se em animada campanha de
triturar uma espécie botânica, improvisar diques e embebedar o peixe. Uma festa!
Mas tanto a caça como a pesca não passavam de iguarias esporádicas e destinadas
ao prato. Não davam excedentes. Os caminhos para a “Venda”, como se designava a
cantina de produtos industriais, passavam mesmo por meses de curvar a coluna ao
ritmo da enxada ao sol.
E
parece fazer sentido dizer-se “venda”, a julgar pela exploração reinante na bitola
da permuta. Um quilograma de sal podia custar cinco de milho ou três de ginguba
(amendoins). De lá voltavam a resmungar por tanto produto deixado para tão
pouco, uma procissão da qual entretanto eram dependentes crónicos. O branco não
arrancava ninguém de casa para o submeter aos seus preços de diabo, logo não lhes
podia vestir os remorsos (quem não quisesse era só caminhar várias centenas de
quilómetros ao encontro de balcões eventualmente mais generosos, se é que os
houvesse).
E
quando a colheita farta fosse, os homens, muitos deles a triplicar porque
maridos de lares vários, davam-se ao luxo de menosprezar os garrafões de
kaporroto (aguardente de produção artesanal) que sempre consumiram a preço de
tomate. Mandavam vir da loja garrafões de vinho tinto, importado de cidades que
nunca viram nem em fotografias. E no final aterravam, babavam e libertavam as
suas necessidades nas calças do mesmo jeito. Às mulheres, o sacrossanto emblema,
é que não se via com muitos bons olhos o direito de se deixar beber ao ponto do
coma. Restavam como reserva moral, embora secundário. Eram estas que faziam o
trajecto à loja quando os maridos de rastos andassem.
Uma
delas chega certa vez ao marido e pede para não mais ser enviada à loja. O marido
estranha um tal pedido. A ela cabia obedecer, a menos que entendesse afrontar quem
por acaso tinha assegurado os dotes que o habilitam a ser titular da mulher. Ela,
austera em argumentos, disse apenas que não gostara do ambiente da loja, que
tinha sonhado com as montras. O marido ficou apreensivo por uns instantes. Naquele
meio, sonhar era mau presságio. Surgir-nos alguém num sonho não positivamente decifrável
era razão bastante para madrugar à porta do visado e rogar todas as pragas a
plenos pulmões. Mas andaria o tuga da cantina envolvido em feitiçarias? Não podia
acreditar!
À
mulher não restou outra saída para demover o marido. Foi então lamentar-se aos
pais e aos sogros do desgosto que via nas idas à cantina. Em vão. E os meses foram
desfilando, ela sempre intransigente. Agora, até, havia um motivo forte. Estava
grávida e precisava de proteger o bebé, cujo sexo era uma incógnita (não havia
ecografias na época). O marido, só e apenas por conta do bebé a caminho, acabaria
por ceder. Mas a paz só durou até ao nascimento do bebé e o escandalizar das famílias,
catanas e mocas à mão. Porquê?
Os
receios confirmavam-se. De tanto ver bonecas caucasianas na montra, ela acabava
de dar à luz um bebé mulato. Culpa do marido! Tivesse ele ouvido os sonhos da
mulher…
(adaptação)
Gociante
Patissa | Benguela, 17 Janeiro 2018 | www.angodebates.blogspot.com
0 Deixe o seu comentário:
Enviar um comentário