sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Fragmentos do conto «A CHEFE E OS HOMENS» | do livro «O Homem Que Plantava Aves», cuja edição para Angola está condicionada pela ausência de apoios. No mercado brasileiro saiu em 2017 sob iniciativa e despesas da editora Penalux

Adorada por mulheres que viam nela um ícone da ascensão feminina na vida, a Comissária era ao mesmo tempo alvo de intrigas. (…) Era acusada de impingir ideias de brancos e desprezos lá da China à nossa cultura africana, como aquilo de impedir que as padarias familiares se prestassem à cozedura de filhos na quantidade que bem entendessem. A má influência só podia derivar do nível académico da chefe, pois estava visto, segundo a sabedoria popular moderna naquele meio difundida, muito estudo na cabeça de uma mulher faz mal. E nesse quesito a chefe tinha o Ensino Médio (…) o maior nível findava na sexta classe. (…) Média de estatura e abonada na massa corporal, não tardou a ser alcunhada de «Superfofinha», no que pode ter contribuído o seu estilo de vida arisco.
(…)
A comuna da Equimina é uma concha cercada de montanhas e mar, ligada à Baía dos Elefantes. Fazer o troço, acidentado e serpenteante, até ao Dombe-Grande e vice-versa não era seguro. Quando não fossem as emboscadas da Unita, eram os ladrões de gado bovino (…) As deslocações de pessoas e bens exigiam guias de marcha, devidamente dactilografadas, assinadas e autenticadas com carimbo a óleo. Ser ali colocado representava em certa medida uma prova de militância e amor à pátria, tendo em conta que os habitantes eram majoritariamente pessoas capturadas nas invasões às bases do inimigo, com o qual teriam potencialmente relação de conspiração.
(…)
Para piorar as coisas, a traineira que dava jeito às deslocações dos quadros da Administração Municipal da Baía Farta dera entrada de baixa nos estaleiros, por avaria. Inadiável, a ida do instrutor teve de ser por canoa, odisseia que não tinha como ser feita em menos de três dias. Porque a pátria aos seus filhos não implora, ordena, mais tarde ou mais cedo o homem chegaria. Outro remédio não havia senão esperar.
(…)
Instantes depois, entrava a vítima. Delfim não parecia minimamente interessado em dissimular diplomacias. Saudou apenas e só o visitante e sentou-se. Mantinha propositadamente os pensos no rosto, quando na realidade já as feridas tinham sido amainadas pelos dias passados entre a agressão e a chegada do inquiridor.

Estão os três nervosos na sala. O inquiridor, pelo iminente suicídio por teimosia da Comissária. Ela, pela vontade de aplicar mais um soco a Delfim. Este rói-se por dentro pela surra de mulher (sem desforra), a primeira vez na vida, depois da mãe.

Repentinamente, uma andorinha entra por uma janela, debica a taça de arroz que serve de vaso dum ramo de rosas artificiais, faz cocô sobre o bloco de anotações e sai por outra janela em acrobacia. A cena arrancou desprevenidos sorrisos do trio.
— Camarada Delfim, como vai?
— Mais ou menos, chefe. A vista ainda está vermelha e o nariz dói com soco da chefe.
— Olha, por acaso a agressora diz…
— Desculpa, camarada Pedradura, com todo o respeito. Agressora, não!
— Pronto. Disse a camarada Comissária que teve essa atitude de te dar surra, aos olhos de too-oo-do o povo, porque o camarada Delfim agrediu uma mulher.
— Bem, chefe, vai-me desculpar, mas é verdade.
— A mulher que o camarada Delfim agrediu tentou roubar víveres?
— Não, chefe… Não, chefe…
— Desrespeitou a bicha? Disse alguma palavra reacionária contra o nosso esforçado governo, os heróis martirizados ou as causas da nossa luta? Era infiltrada e/ou colaboradora do nosso inimigo?
— Não, chefe… Não, chefe…
— Foi apanhada a bruxar?
— Não, chefe… Não, chefe…
— Mas, ó caramba!, afinal, que mal fez a mulher para lhe partires a bacia com surra?
— Me falou quero ser tua mulher, me namora. Ó chefe, uma mulher é que vai me conquistar?!

Gociante Patissa, In «O Homem Que Plantava Aves», coletânea de contos do autor. Penalux. São Paulo, Brasil, 2017
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