Vivemos
tempos de inquietação social em função da austeridade, sobretudo pela incerteza
do que está para vir desta névoa chamada crise económica e do impossível acesso
às divisas (que já mandou muita gente ao desemprego). A realidade mostra que
somos uma sociedade de contrastes, paradoxal mesmo, com cidadãos ao mesmo tempo
passivos e controladores. Ou seja, em termos de participação, quando intervenções
directas de advocacia assim recomendariam, a adesão é pouca. Mas ao mesmo tempo
quando é para defender a angolanidade (quase sempre de base moral, sem pôr de
parte valores e tradições culturais nem sempre bem apurados), aí já somos
rápidos a emitir opiniões no espaço público e informal. A título de exemplo,
insurgimo-nos contra uma eventual aparição indecente de um cantor em palco ou
em vídeos, mas fechamos os olhos se este mesmo cantor, na condição de
automobilista, atropelar (mortalmente) um peão e não assumir as suas
responsabilidades. Quanto ao estado de opinião e comentários, lidera o anúncio
recente do secretário-geral da Assembleia Nacional, que desenganou a todos
quantos julgassem estar fora de questão (uma vez que aos patriotas tem sido
apelado o aperto dos cintos) a atribuição de viaturas de luxo de marca Toyota
Lexus aos 220 deputados. O anúncio, sob o ponto de vista do impacto da sua
comunicação, não podia calhar em pior altura. Justamente na véspera do arranque
de um ano lectivo de lamentações, com tantas escolas em risco de ruir e/ou sem
carteiras, a par da seca no município do Caimbambo, em Benguela, que viu
cidadãos morrerem por falta do que comer. A indignação social, que não tem
obrigações de consultar leis, não se fez esperar. A figura do deputado anda
numa desvalorização pior que a da moeda nacional, o kwanza. Ontem, na TV Zimbo,
os comentadores Gildo Matias e Paulo Nganga convergiram no quanto não se deve estabelecer
o paralelismo entre as mordomias dos deputados e demais servidores públicos com
os demais quadros e sectores, pois, entendem, trata-se de um falso problema. Em
sua visão, quem ganha bem deve assim continuar, porque é reflexo da
responsabilidade da função. Os que ganham pouco, isto já é outro problema que
deve ser visto, o da assimetria social, em busca da equidade. Falaram da
autonomia financeira e do poder discricionário da assembleia quanto ao que
fazer com o orçamento que lhe cabe, não havendo por isso a obrigação (moral,
acho eu) de se alinhar com o repto patriótico de cortar no supérfluo. Numa coisa
sua excelência eu está de acordo com a dupla, a nossa legislação (por norma cópia
de Portugal) anda desfasada da realidade. Afiançar que o deputado tem mais
responsabilidade do que um professor, um enfermeiro ou um agente da polícia,
parece escoriar o bom senso. O que se entende afinal por responsabilidade? Enfim,
para não se julgar que não oferecemos soluções, aqui vai uma ideia disparatada.
Se do ponto de vista da lei se está a estudar a possibilidade de autorizar a
importação de viaturas usadas que tenham no mínimo cinco anos de vida, deduz-se
que o estado reconhece haver condições de segurança óptimas para o utente e a
via pública. Ora, se já na legislatura passada houve a doação de 220 Lexus, gosto
que não se pode descartar porque “queremos fidelizar a marca”, como advogou o
secretário-geral do parlamento, que tal fazer um inventário do activo? A questão
é de lógica. Se as viaturas são dadas a título oficial (e não para uso e abuso
para fins pessoais), logo pertencem ao Estado angolano. Ora, considerando que
muitos dos deputados foram “reconduzidos” e são elegíveis para receber Lexus, então
que se recolha a frota da legislatura de 2012 e seja revendida. O dinheiro que
seja investido no hospital sanatório anti-tuberculose. Senão qualquer dia temos
uma sociedade que perdoa o assassino mas tem nojo do deputado, que diz
representar um povo cujas dores não veste. Ainda era só isso. Obrigado.
Gociante
Patissa | Benguela, 22 Janeiro 2018 | www.angodebates.blogspot.com
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