quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

Crónica | UM REI DO BAILUNDO À PORTA DA CADEIA E O DESTOAR DA ORQUESTRA

Há qualquer coisa de artificial na “torcida” contra a responsabilização criminal do cidadão investido há


uns anos no poleiro de Rei do Bailundo, de sua graça Armindo Kalupeteka ou Ekwikwi V. Segundo se ficou a saber, o Rei-juiz foi condenado por co-autoria na morte de um outro compatriota, alegadamente condenado no tribunal costumeiro sob acusação de ter enfeitiçado uma neta, sendo que a pena aplicada pela “corte”, cuja letra não foi publicada, fomentou o desfecho trágico numa república que aboliu a pena de morte. Seria ou não o Rei-juiz imputável pelas sentenças? 

 

Aí é que a meu ver está o artificial da coisa. Teríamos de partir do perfil das autoridades tradicionais na sociedade moderna, sua legitimidade, coerência e o âmbito do seu poder. É evidente que o poder real/tradicional não andará muito longe do decorativo, residual e vinculativo em comunidades rurais pouco escolarizadas, fruto do curso de uma ex-colónia antropologicamente corrompida, da guerra civil e dos interesses políticos dos movimentos de libertação. Paixões à parte, se quisermos considerar alguma coerência republicana estaremos de acordo a esse respeito. 

 

Qual é o papel dos sobas, sobetas, sekulus, reis e regedores do ponto de vista de voz junto do poder político nesta república que se assume democrática de direito? É facto que o poder real implica território, identidade etnolinguística, linhagem e discernimento. Hoje por hoje, praticamente a obediência a tais autoridades é facultativa, nalguns casos só sobrevivendo por conta do medo que as sociedades tradicionais têm do feitiço. Diz-se que poder é feitiço. Consoante se teme ou não, podemos ter um pai que obedece e um filho que manda lixar. 

 

Não entrarei nos elementos técnicos da coabitação entre a lei positiva e a lei costumeira, porque em meu entender é injusta a dupla subordinação jurídica só para alguns, se tivermos em conta que todos somos iguais e merecemos igual tratamento. Serão a filosofia oral, a idiossincrasia e o dogma da autoridade critérios bastantes para se fazer justiça? No Monte Belo, a título de exemplo, interior da província de Benguela, abundam casos de pessoas que morreriam sem nunca saldar a dívida que contraíram para pagar as multas pesadas que lhes foram na Ombala aplicadas pelo crime, imaginem!, de terem aparecido no sonho de alguém, o que serve de confissão de bruxos ou feiticeiros. 

 

O que me indigna é o activismo selectivo pela “soberania da cultura ovimbundu”, na tese de que o direito positivo se equipara ao costumeiro, carecendo de peso de hierarquia para responsabilizar uma autoridade tradicional. Como alguém alertou, o cidadão angolano morto, suposto bruxo denunciado pela própria família, não tem nome e direito à protecção pelo Estado angolano? Se foi condenado por crime de feitiçaria, não haveria de ser punido pela mesma via sobrenatural?

 

Enfim, as nossas rádios quase não tocam a música cantada em umbundu, mas isso não incomoda. O direito positivo ou civil não reconhece o casamento costumeiro, mas OK. O cidadão chega à licenciatura estudando a língua portuguesa desde a iniciação mas nunca as línguas nacionais bantu e pré-bantu, e isso não incomoda. Em visita diplomática aos órgãos de soberania, o soba ou rei ou sekulu, defendeu o Ismael certa vez, não tem direito a tradutor como têm as autoridades estrangeiras. 

 

O Estado desenterra decretos da era colonial e impõe a castração das consoantes e semi-vogais W, Y, K da toponímia e perpetua deturpação secular neste campo, mas isso não incomoda. A grafia das línguas bantu anda obsoleta, situação agravada pela existência de dois códigos, o convencional versus o católico, o que compromete a familiarização com as línguas e fomento da produção literária. Isso também não incomoda. A língua portuguesa, factor de unidade nacional, ainda não dialoga e o preconceito faz com que nas instituições oficiais tacitamente se proíba o uso das línguas (em rigor) locais e regionais, mas OK. Ora, se anuímos docemente que as línguas tenham estatuto secundário e se cada língua veicula uma cultura, custa aceitar que as práticas e costumes do mosaico que enriquece o território chamado Angola sejam secundários? Temos modelos que só recorrem às línguas africanas em contexto eleitoral, mas o que incomoda mesmo é que o Rei do Bailundo seja condenado caso apadrinhe sentenças que levem à morte de alguém. A soberania cultural mora só ali. E é fácil juntar-se a esse coro até que o “feiticeiro” da vez linchado seja alguém que amamos. KWENDA CIKAPALAMA!

 

Gociante Patissa | Benguela, 11 Fevereiro 2021 | www.ombembwa.blogspot.com 

Foto: DocPlayer 

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