In «A Última Ouvinte», Copyright © 2009,
by Gociante Patissa & União dos Escritores Angolanos. 1ª Edição: Luanda,
2010
Não acontecia de outra forma. Se tocasse
no mato, vinham os pássaros ter com ele, aglutinando melodias. Se tocasse numa
zona habitada, poisavam os pombos à sua volta, um atrás do outro. Uns achavam que
era da voz, outros achavam que o poder estava na viola. Mas como se vai saber
distinguir, se ele nunca deixava o instrumento, se não cantava sem dedilhar?
É um gajo fixe, o Homem-da-viola, mesmo
que alguns se assustem porque ele quase nunca ri — o espelho é que lhe disse,
certo dia, que ficaria feio pela falta de dois dentes logo à entrada da boca.
Então, mas é obrigatório rir para ser simpático?!
Sempre renovou, no seu cantarolar de
praguejar a guerra, a promessa de visitar a terra que o viu nascer, a comuna da
Chila, logo que calassem as armas. Mas o tão sonhado regresso acabou por não
ser do jeito que imaginava. A onda de raiva com que o seu povo o expulsou, antes
mesmo que se instalasse devidamente e se refizesse do cansaço da viagem, fê-lo
abortar a visita. A sua canção não seduzia apenas pombos, atraía também corujas
e corvos. E era disso que as pessoas tinham medo.
— Que dom é esse? — reprovou o líder da
comuna, temendo desgraça. — Filho da terra traz esposa, cobertor, sal, não me
traz azar. Assim é que não!
— Não faço mal a uma mosca, e isso não
depende de mim, pai.
— C’os meu uotenta anuji, meu menino,
nunca ouvi história bonita de corujas e corvos. É porque esses bicho é veneno.
Senão, caté criava, como galinha-do-mato. Se quer visitar tua terra, não toca
viola, também não canta.
Como era de esperar, o Homem-da-viola
respondeu que não aguentava um dia sem cantar. Apodreceu a paz. Regressou à
cidade, onde a sua trova ao menos não era ameaça para ninguém, nem mesmo para
os pombos que volta e meia podiam sucumbir à fisga de putos que fantasiavam
heroísmos na gula de petiscar borrachos. Mesmo rejeitado, partia um pouco mais
fortalecido no seu íntimo. E, talvez por ser artista, ainda via motivos para
celebrar, cantando, trovando…
Não há momento mais fértil para
valorizar a paisagem à nossa volta do que quando nada há a fazer, além de
esbanjar horas na paragem, aguardando pelo meio de transporte. Finalmente
aproximava-se um veículo. Ainda bem, para o Homem-da-viola, porque de contrário
pernoitaria ao relento. Nem dá para imaginar o susto que pregaria à comuna (e
ao líder desta) com um regresso ao anoitecer. Uma vez confirmada a tarifa, o
Homem-da-viola meteu-se na carroçaria do camião DAF do kota Avindo, o único
meio que desafiava os solavancos do troço. Lá estava ele a trovar durante a viagem,
com mais uma lição aprendida: no sucesso de uma viagem, a questão não é a ida,
é o regresso.
Estava a trovar certo dia no jardim.
Como de costume os pombos o circundaram. A cena era apreciada por uma loira
linda rapariga, que tomava café no restaurante perto dali. Curiosa,
aproximou-se de caxexe, metade do seu rosto oculta atrás da máquina fotográfica
Canon. As sandálias e a mochila não deixavam dúvidas. Era turista, esse tipo de
gente que usa as férias para redescobrir o mundo, fugindo envelhecer. Ela tomou
a liberdade de puxar a conversa, o que embora não desagradasse o
Homem-da-viola, interrompia a trova de vez em quando. Chamou o prodigioso de
artista, como nunca ninguém o fizera, e ofereceu-lhe duzentos dólares. Foi com
ela que aprendeu que pobre também podia ser turista, e que o melhor lugar no
avião era junto à porta de emergência, onde havia espaço maior para esticar as
pernas. Bastava localizar o letreiro «EXIT».
O contato com a estrangeira despertou no
Homem-da-viola o impulso de experimentar a vida de turista. Aspirava conhecer o
país, o novo sonho-consolo para exorcizar a frustração do regresso à terra natal.
A província do Namibe era o primeiro ponto. E já via o deserto de Calahari,
para ele, o símbolo da liberdade do voo espiritual. Embarcou. Levava nada mais
senão a sua a viola. Viu o letreiro «EXIT» e sentou-se. Entretanto, viu-se
invadido por um momentâneo apagão espiritual quando se fechou a porta do avião,
aquele bicho insensível que vive separando pessoas sem se importar com o pesar
de quem vai ou fica para sempre.
Do alto, observava a paisagem. Uma
imprevisível sequência de cenários, sem ser brusca nas sucessões. O verde dava
lugar ao castanho, solidariamente, a vegetação cedia para o deserto. Benguela
ficava para trás. Os rios, que andavam com o caudal alto, pareciam pequenos fios
dourados contornando serras.
Nunca sentiu as nuvens tão perto de si,
brancas como montes de algodão. Via-se literalmente a voar, o que se confirmava
cada vez que discretamente levantasse os pés do piso e estendesse os braços. A
larga extensão de areia desértica assemelhava-se a um lençol caqui, sobre o qual
dentro de instantes um casal apaixonado partilharia justas doses de orgasmo. Do
aeroporto foi direitinho à marginal. Apetecia um peixe grelhado. Ajoelhado.
Olhar perdido no zénite do oceano. Pombos à sua volta, gente também.
— O moço é novo aqui, não? — abordou-o
uma moça que, à primeira vista, parecia estar há mais de cinco anos sem sorrir.
— Já há muito que os pombos não festejam assim, como dantes, por um visitante.
— É curioso, é curioso. — respondeu,
enquanto procurava entender o que faria aquela jovem mulher no seu caminho.
A cama é sempre grande para quem dorme
sozinho. O que seria dos humanos se não tivessem as dúvidas, com as quais se
ocupam enquanto o sono não chega?! E a dúvida do Homem-da-viola, deitado na sua
enorme cama solteira de quarto barato de pensão, era uma: a moça da praia. “Como
pode ela entender o comportamento dos pombos? O que a faria estar naquela hora,
naquele lugar?” Ao mesmo tempo, desencorajava-se também: “Bom, mas a praia é
local público, portanto fértil em coincidências”. E veio o sono.
No dia seguinte, o Homem-da-viola voltou
à Marginal para falar com o mar, sentando-se exatamente sob o mesmo
chapéu-de-sol do dia anterior. Mas não era o único a querer fazê-lo, a moça
(dos cinco anos sem sorrir) já lá se encontrava. Chamava-se Isabel. Os outros
nomes que pudessem compor seu nome completo continuaram desconhecidos para o
encantado Homem-da-viola. Encontraram-se mais vezes, tudo tão rápido, tão
intenso, que iniciaram o namoro na primeira semana que se conheceram. Passados
alguns dias de namoro, de muita diplomacia periférica, era normal entre eles
crescer o desejo. Não há quem não conheça as fantasias da primeira vez. A deles
aconteceria por volta das dezasseis horas.
Faltava finalmente meia hora para a
hora. Preparou o quarto e foi banhar. Mas ao sair do WC reparou que o céu se
fazia escuro. As nuvens anunciavam chuva imediata. “Que raio de desgraça”,
sussurrou. E resolveu explorar a biblioteca humana mais próxima, a lavadeira da
pensão, que se encontrava sentada mas a viajar nos pensamentos:
— Acha que vai chover?
— Não, são só nuvens! — assegurou
favoravelmente a lavadeira, não sabendo as motivações da pergunta. Mas não
parou de escurecer, pelo contrário começou a chover mesmo. Por muito que o
quisesse, a viola só tinha o poder de chamar aves, não o de travar a chuva. “Por
que comigo, meu Deus, hoje, agora?”, desabafou. Foram três dias e noites de
chuva grossa e ininterrupta.
Passada a chuva, o Homem-da-viola saiu
imediatamente à procura da casa da namorada. Mal conhecia a morada, mas já não
aguentava. Eram dez horas da manhã. O sol por detrás das cortinas anunciava o
começo de um sábado agitado. Estava Isabel dividida entre a preguiça — que a
obrigava a permanecer no quarto — e a vontade — para começar a fazer limpeza. O
disco dos “Cafala Brothers” tocava (suave) as esquinas da alma. De repente toca
a campainha. A primeira, a segunda e a caminho da terceira chamada, estava ela
a girar a maçaneta…
— Surprise, surprise!
— Oi, entra! Então, a chuva?!
— É verdade, a chuva tramou-nos.
Após o matabicho, o Homem-da-viola
pediu-a para dançar. Tocou o ombro dela e esta sentiu toneladas de arrepios em
queda livre. Segura e confortável, ela encostou-se no peito dele, dela afinal,
conforme mandam as regras do slow. Quando deram conta, já estavam a mudar de camisinha
pela terceira vez, possuídos pelo suor sagrado. Nisto alguém abre a porta, no
caso, o irmão mais novo do falecido marido, que tinha as chaves da casa. Tudo
muito rápido, tudo muito à vista. Estava instalada a confusão.
Reuniram-se as famílias para a resolução
do problema. Faltava uma semana para Isabel tirar o luto, o que o apaixonado
Homem-da-viola não sabia. Isabel era mulher alheia, afinal. O erro tinha um
nome: “Ukoi”. E a assembleia chegou mesmo a desatar-se em estrondosas
gargalhadas ao saber que a viola era tudo o que o prevaricador tinha de valor.
Foi então que, simbolicamente, dada a sua miséria material, ao artista foi
exigido apenas o pagamento de uma vaca.
Ficou acordado que a dívida seria
liquidada dentro de um ano, passando a acumular a partir daquele dia gorjetas.
Tocaria em bares e em praças. E só o tempo responderia se ficaria ou não com
Isabel, se continuaria ou não no Namibe.
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