terça-feira, 10 de setembro de 2013

Conto: O HOMEM-DA-VIOLA

In «A Última Ouvinte», Copyright © 2009, by Gociante Patissa & União dos Escritores Angolanos. 1ª Edição: Luanda, 2010

Não acontecia de outra forma. Se tocasse no mato, vinham os pássaros ter com ele, aglutinando melodias. Se tocasse numa zona habitada, poisavam os pombos à sua volta, um atrás do outro. Uns achavam que era da voz, outros achavam que o poder estava na viola. Mas como se vai saber distinguir, se ele nunca deixava o instrumento, se não cantava sem dedilhar?

É um gajo fixe, o Homem-da-viola, mesmo que alguns se assustem porque ele quase nunca ri — o espelho é que lhe disse, certo dia, que ficaria feio pela falta de dois dentes logo à entrada da boca. Então, mas é obrigatório rir para ser simpático?!

Sempre renovou, no seu cantarolar de praguejar a guerra, a promessa de visitar a terra que o viu nascer, a comuna da Chila, logo que calassem as armas. Mas o tão sonhado regresso acabou por não ser do jeito que imaginava. A onda de raiva com que o seu povo o expulsou, antes mesmo que se instalasse devidamente e se refizesse do cansaço da viagem, fê-lo abortar a visita. A sua canção não seduzia apenas pombos, atraía também corujas e corvos. E era disso que as pessoas tinham medo.
— Que dom é esse? — reprovou o líder da comuna, temendo desgraça. — Filho da terra traz esposa, cobertor, sal, não me traz azar. Assim é que não!
— Não faço mal a uma mosca, e isso não depende de mim, pai.
— C’os meu uotenta anuji, meu menino, nunca ouvi história bonita de corujas e corvos. É porque esses bicho é veneno. Senão, caté criava, como galinha-do-mato. Se quer visitar tua terra, não toca viola, também não canta.

Como era de esperar, o Homem-da-viola respondeu que não aguentava um dia sem cantar. Apodreceu a paz. Regressou à cidade, onde a sua trova ao menos não era ameaça para ninguém, nem mesmo para os pombos que volta e meia podiam sucumbir à fisga de putos que fantasiavam heroísmos na gula de petiscar borrachos. Mesmo rejeitado, partia um pouco mais fortalecido no seu íntimo. E, talvez por ser artista, ainda via motivos para celebrar, cantando, trovando…

Não há momento mais fértil para valorizar a paisagem à nossa volta do que quando nada há a fazer, além de esbanjar horas na paragem, aguardando pelo meio de transporte. Finalmente aproximava-se um veículo. Ainda bem, para o Homem-da-viola, porque de contrário pernoitaria ao relento. Nem dá para imaginar o susto que pregaria à comuna (e ao líder desta) com um regresso ao anoitecer. Uma vez confirmada a tarifa, o Homem-da-viola meteu-se na carroçaria do camião DAF do kota Avindo, o único meio que desafiava os solavancos do troço. Lá estava ele a trovar durante a viagem, com mais uma lição aprendida: no sucesso de uma viagem, a questão não é a ida, é o regresso.

Estava a trovar certo dia no jardim. Como de costume os pombos o circundaram. A cena era apreciada por uma loira linda rapariga, que tomava café no restaurante perto dali. Curiosa, aproximou-se de caxexe, metade do seu rosto oculta atrás da máquina fotográfica Canon. As sandálias e a mochila não deixavam dúvidas. Era turista, esse tipo de gente que usa as férias para redescobrir o mundo, fugindo envelhecer. Ela tomou a liberdade de puxar a conversa, o que embora não desagradasse o Homem-da-viola, interrompia a trova de vez em quando. Chamou o prodigioso de artista, como nunca ninguém o fizera, e ofereceu-lhe duzentos dólares. Foi com ela que aprendeu que pobre também podia ser turista, e que o melhor lugar no avião era junto à porta de emergência, onde havia espaço maior para esticar as pernas. Bastava localizar o letreiro «EXIT».

O contato com a estrangeira despertou no Homem-da-viola o impulso de experimentar a vida de turista. Aspirava conhecer o país, o novo sonho-consolo para exorcizar a frustração do regresso à terra natal. A província do Namibe era o primeiro ponto. E já via o deserto de Calahari, para ele, o símbolo da liberdade do voo espiritual. Embarcou. Levava nada mais senão a sua a viola. Viu o letreiro «EXIT» e sentou-se. Entretanto, viu-se invadido por um momentâneo apagão espiritual quando se fechou a porta do avião, aquele bicho insensível que vive separando pessoas sem se importar com o pesar de quem vai ou fica para sempre.

Do alto, observava a paisagem. Uma imprevisível sequência de cenários, sem ser brusca nas sucessões. O verde dava lugar ao castanho, solidariamente, a vegetação cedia para o deserto. Benguela ficava para trás. Os rios, que andavam com o caudal alto, pareciam pequenos fios dourados contornando serras.

Nunca sentiu as nuvens tão perto de si, brancas como montes de algodão. Via-se literalmente a voar, o que se confirmava cada vez que discretamente levantasse os pés do piso e estendesse os braços. A larga extensão de areia desértica assemelhava-se a um lençol caqui, sobre o qual dentro de instantes um casal apaixonado partilharia justas doses de orgasmo. Do aeroporto foi direitinho à marginal. Apetecia um peixe grelhado. Ajoelhado. Olhar perdido no zénite do oceano. Pombos à sua volta, gente também.
— O moço é novo aqui, não? — abordou-o uma moça que, à primeira vista, parecia estar há mais de cinco anos sem sorrir. — Já há muito que os pombos não festejam assim, como dantes, por um visitante.
— É curioso, é curioso. — respondeu, enquanto procurava entender o que faria aquela jovem mulher no seu caminho.

A cama é sempre grande para quem dorme sozinho. O que seria dos humanos se não tivessem as dúvidas, com as quais se ocupam enquanto o sono não chega?! E a dúvida do Homem-da-viola, deitado na sua enorme cama solteira de quarto barato de pensão, era uma: a moça da praia. “Como pode ela entender o comportamento dos pombos? O que a faria estar naquela hora, naquele lugar?” Ao mesmo tempo, desencorajava-se também: “Bom, mas a praia é local público, portanto fértil em coincidências”. E veio o sono.

No dia seguinte, o Homem-da-viola voltou à Marginal para falar com o mar, sentando-se exatamente sob o mesmo chapéu-de-sol do dia anterior. Mas não era o único a querer fazê-lo, a moça (dos cinco anos sem sorrir) já lá se encontrava. Chamava-se Isabel. Os outros nomes que pudessem compor seu nome completo continuaram desconhecidos para o encantado Homem-da-viola. Encontraram-se mais vezes, tudo tão rápido, tão intenso, que iniciaram o namoro na primeira semana que se conheceram. Passados alguns dias de namoro, de muita diplomacia periférica, era normal entre eles crescer o desejo. Não há quem não conheça as fantasias da primeira vez. A deles aconteceria por volta das dezasseis horas.

Faltava finalmente meia hora para a hora. Preparou o quarto e foi banhar. Mas ao sair do WC reparou que o céu se fazia escuro. As nuvens anunciavam chuva imediata. “Que raio de desgraça”, sussurrou. E resolveu explorar a biblioteca humana mais próxima, a lavadeira da pensão, que se encontrava sentada mas a viajar nos pensamentos:
— Acha que vai chover?
— Não, são só nuvens! — assegurou favoravelmente a lavadeira, não sabendo as motivações da pergunta. Mas não parou de escurecer, pelo contrário começou a chover mesmo. Por muito que o quisesse, a viola só tinha o poder de chamar aves, não o de travar a chuva. “Por que comigo, meu Deus, hoje, agora?”, desabafou. Foram três dias e noites de chuva grossa e ininterrupta.

Passada a chuva, o Homem-da-viola saiu imediatamente à procura da casa da namorada. Mal conhecia a morada, mas já não aguentava. Eram dez horas da manhã. O sol por detrás das cortinas anunciava o começo de um sábado agitado. Estava Isabel dividida entre a preguiça — que a obrigava a permanecer no quarto — e a vontade — para começar a fazer limpeza. O disco dos “Cafala Brothers” tocava (suave) as esquinas da alma. De repente toca a campainha. A primeira, a segunda e a caminho da terceira chamada, estava ela a girar a maçaneta…
— Surprise, surprise!
— Oi, entra! Então, a chuva?!
— É verdade, a chuva tramou-nos.

Após o matabicho, o Homem-da-viola pediu-a para dançar. Tocou o ombro dela e esta sentiu toneladas de arrepios em queda livre. Segura e confortável, ela encostou-se no peito dele, dela afinal, conforme mandam as regras do slow. Quando deram conta, já estavam a mudar de camisinha pela terceira vez, possuídos pelo suor sagrado. Nisto alguém abre a porta, no caso, o irmão mais novo do falecido marido, que tinha as chaves da casa. Tudo muito rápido, tudo muito à vista. Estava instalada a confusão.

Reuniram-se as famílias para a resolução do problema. Faltava uma semana para Isabel tirar o luto, o que o apaixonado Homem-da-viola não sabia. Isabel era mulher alheia, afinal. O erro tinha um nome: “Ukoi”. E a assembleia chegou mesmo a desatar-se em estrondosas gargalhadas ao saber que a viola era tudo o que o prevaricador tinha de valor. Foi então que, simbolicamente, dada a sua miséria material, ao artista foi exigido apenas o pagamento de uma vaca.

Ficou acordado que a dívida seria liquidada dentro de um ano, passando a acumular a partir daquele dia gorjetas. Tocaria em bares e em praças. E só o tempo responderia se ficaria ou não com Isabel, se continuaria ou não no Namibe.
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