Dadas as numerosas formas de
manifestação que a oratura tradicional angolana assume – a música, a poesia, as
narrativas e os provérbios e até os testos ou tampas de panela[1] –
optamos por seguir a classificação proposta por Héli Chatelain a propósito dos
quimbundo, a qual, deve-se frisar, não colide com a de outros estudiosos[2] como,
por exemplo, Oscar Ribas (1964).
Dessa maneira, pode-se afirmar
que as manifestações culturais orais angolanas classificam-se em seis classes
principais:
·
a
primeira delas inclui todas as estórias tradicionais de ficção, inclusive
aquelas em que os protagonistas são animais. Segundo Chatelain, elas “devem
conter algo de maravilhoso, de sobrenatural. Quando personificamos animais, as
fábulas pertencem a esta classe, sendo estas histórias, no falar nativo,
chamadas de MI-SOSO. Começam e findam sempre por uma fórmula
especial” (CHATELAIN, 1964, p. 102)
A forma especial de intróito
dessas narrativas se dá graças a uma utilização idiomática do verbo ku-ta,
que significa “contar”, “falar”, “expor”. Uma tradução do uso específico desse
verbo nas narrativas tradicionais equivaleria aproximadamente a “por uma
estória”. Esse uso se observa quando o contador dá início à narrativa com:
“Vou por uma estória”.
A que o auditório prontamente responde: “Venha ela” (“Diize”) Já com relação ao
fecho das narrativas tradicionais, é Óscar Ribas quem informa: No encerramento,
diz-se: ‘Já expus (Ngateletele) a minha historiazinha. Se é bonita, se é feia,
vocês é que sabem.’ Quando a história é pequena, finaliza-se: “Uma criança não põe
uma história comprida, senão nasce-lhe um rabo!” (RIBAS, 1964, p. 28).
Referindo-se aos
temas e personagens do mi-soso (ou misosso), o mesmo autor ainda diz o seguinte
sobre as personagens e ações dos contos tradicionais angolanos: Os contos,
ordinariamente, refletem aspectos da vida real. Neles figuram as mais variadas personagens:
homens, animais, monstros, divindades, almas. Se, por vezes, a ação decorre
entre elementos da mesma espécie, outras, no entanto, desenrolam-se misteriosamente,
numa participação de seres diferentes. (RIBAS, 1964, p. 30)
Nos mi-sosso os
animais, assim como os homens, revestem-se de dignidade própria e são dotados
do dom da fala. Entre si tratam-se de forma cortês e ordinariamente as suas
relações pautam-se não pela escala de hierarquia social, mas tão-somente da
familiar. Quando em sociedade, o valor individual reside na corpulência e, por
conseguinte na força, constituindo, aparentemente, a inteligência e a astúcia,
predicados secundários. Ocorre, entretanto, que via de regra, tal como acontece
entre os homens, um animal pequeno, valendo-se da sua esperteza, vence o de
porte superior e, assim pode-se verificar que grande parte dos mi-sosso acaba
por enaltecer a astúcia, em detrimento da força bruta. Dentre os animais
destacam-se:
·
o mbewu (cágado ou tartaruga) que
normalmente é apresentado como juiz inteligente e sagaz e cuja longevidade
lembra a sabedoria dos mais-velhos;
·
kandimba (a lebre ou coelho selvagem) – é também
juiz, mas não raro foge às consequências, ou seja, dá a sua opinião, decide mas
não implementa as decisões, preferindo esconder-se;
·
njamba (o elefante) – apresenta-se como
representante da força bruta, de modo na sua representação a força física
sobreleva a inteligência;
·
nguli, hosi ou ndumba (leão) – assim como o
elefante, é representante da força e da ferocidade. É, no entanto, representado
como facilmente enganável por um animal mais astuto. Os mi-sosso, também, podem
ter como personagens os monstros, antropófagos quase sempre, dentre os quais se
destacam:
·
os
quinzáris que possuem corpo de fera (onça ou pantera), mas com pés
humanos – metamorfose obtida por magia concedida para o efeito. “Homem-fera.
Palavra formada a partir do quimbundo: kuzuma (dilacerar) + kûria (comer)”
(RIBAS, 1997, p. 249);
·
os
diquíxis que apresentam aparência humana, mas possuem cabeças que se reproduzem
quando decepadas “limitadamente, segundos uns; ou com muitas cabeças simultaneamente,
em número variável, segundo outros”. Ainda que tenham forma humana, esses
antropófagos vivem isolados do homem. “Este estado também pode ser obtido por
magia, por um tempo determinado(...)”. A origem do vocábulo diquixi remontaria
ao quimbundo kuxiba (sorver)”. (RIBAS, 1997, p. 82).
A segunda classe das categorias
da oratura angolana é a das
·
MAKA – que compreenderiam as histórias
verdadeiras ou reputadas como tal. “Embora servindo também de distração estas
histórias têm um fim instrutivo e útil, sendo como que uma preparação para
futuras emergências”, nos informa o autor de Contos populares de Angola (CHATELAIN,
1964, p. 102). Com relação à terceira categoria da oratura angolana, temos
·
MA-LUNDA ou MI-SENDU. São estórias
especiais, já que são transmitidas apenas pelos mais velhos (especialmente os
chefes), pois se constituem nas verdadeiras crônicas históricas. “São
geralmente consideradas segredos de estado e os plebeus apenas conhecem
pequenos trechos do sagrado tesouro das classes dominantes”. (CHATELAIN, 1974,
p. 102).
Na quarta categoria estão os
·
JI-SABU - provérbios, em que avulta a concisão.
São largamente usados na fala cotidiana: “para prova das afirmações que se
fazem ao correr de um discurso, para decisão final, numa troca de impressões, a
fim de destacar a idéia-mestra do diálogo; para conclusão de julgamentos (...)”
(VALENTE, 1973, p. XI)
A quinta categoria abrange
·
a
poesia e a música, quase que inseparáveis: Em regra, a poesia é cantada, e a música
vocal é raramente expressa em palavras. (...) Na poesia quimbunda existem poucos
sinais de rima, mas muitos de aliteração, ritmo e paralelismo” (CHATELAIN, p. 102).
Essas produções são chamadas de MI-IMBU.
A sexta e última categoria é
formadas pelas
·
adivinhas,
chamadas JI-NONGONONGO[3].
Têm como função principal exercitar o pensamento e a memória. “Como noutras
partes do mundo, também possuem em Angola, as suas frases pragmáticas de
iniciação. Palavra do quimbundo kunyongojoka: voltear, torcer.” (RIBAS,
1997, p. 215).
Por: Profa. Dra. Tania Macêdo
Bibliografia referida
RIBAS, Óscar. Misosso -
literatura tradicional angolana. Luanda: Angolana, 1964, 3 vol.
VALENTE, José Francisco. Paisagem
africana (Uma tribo angolana no seu fabulário). Luanda: Instituto de
investigação científica de Angola, 1973.
OLIVEIRA, Américo Correia de. O
livro das adivinhas angolanas. Lisboa: Mar além, 2001.
In «LITERATURAS
AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA I - Antologia de Textos», UNIVERSIDADE DE
SÃO PAULO, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de
Letras Clássicas e Vernáculas, 2008.
[1] Para José Martins Vaz (1969- I vol. p. 9), os testos
– tampas - de panela são “cartas, bilhetes esculpidos, portadores de mensagem
traduzíveis em provérbios (...)
[2] Ver, a respeito, ver a exaustiva bibliografia citada
e comentada por Oliveira (2000, vol. I, p. 94)
[3] A respeito, remetemos a O
livro das adivinhas angolanas, de Américo Correia de Oliveira (OLIVEIRA,
2001) que congrega mais de mil adivinhas divididas a partir de temas: Fauna,
Flora, Mundo, Geografia, Objetos, Corpo humano, Alimentação, Pessoas,
Miscelânea, Impossíveis e Filosofia de vida.
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