terça-feira, 20 de novembro de 2018

[Oficina literária 15] NDIYEVITE OKULILA KWOLONDJILA (*) – crónica de Banny de Castro


Bem, eis-me aqui, senhor; sentado sobre uma majestosa rocha, na selva, ouvindo o choro dos pássaros.

Aqui é no Município do Bocoio, uma região onde abundam montanhas. Eu gosto de montanhas e já satisfiz os meus desejos selvagens de escalar montes. Como eu gosto literalmente desse género de coisas! Como eu adoro a Mãe Natureza e todos os seus componentes originais.

Agora o capim está cheio de olume ou orvalho; é consequência da chuva e do nevoeiro que se abateram ontem à noite. Uma brisa branda vem de todos os lados transmitindo-me segredos muito profundos da terra. Os pássaros assobiam, indiferentes ou muito atentos, suas canções embaladoras, na linguagem natural que o criador lhes conferiu. Se nós, seres humanos, não tivéssemos, por orgulho e soberba, destruído as linguagens com que fomos talhados pela mãe natureza, talvez hoje nada fosse insondável e não houvesse mistério. Talvez permanecêssemos com os olhos perspicazes e mágicos doutrora. Se assim fosse não haveria brecha para as igrejas e para quaisquer convenções sociais. Sem mistério nada faz sentido, tudo torna-se demais claro. Porquê estudar quando tudo é evidente?, quando podemos detetar a olho nu um cancro e uma mentira?

Eu estou no Bocoio, terra de um amigo chamado ou rotulado (eu acho que os nomes são os primeiros rótulos que nos são impostos pelos nossos pais quando estes querem afirmar o seu grande poder de procriação) Gociante Patissa (se possuísse uma daguerre talvez fizesse agora uma bela foto do panorama, mas estou totalmente desprovido de tudo o que brilha e reluz e que seja artificial, vou vagueando que nem o pior selvagem da natureza: não sei quem é, se é o homem ou um kamasindi, por exemplo). Ainda não alcancei nem o centro da cidade nem o famoso Monte-Belo. Fiquei encalhado alhures nas imediações dos Dois Pilares. É para manter o mistério da natureza que não revelo exatamente onde me encontro. Mas existem aqueles para quem a natureza se dignou em manifestar todos os seus segredos; para estes torna-se inútil armar-se em parvo e esconder coisas. O olho misterioso da montanha só é comparável aos olhos perfurantes de um gato-bravo. E eu sei que nesse momento, enquanto contemplo perdidamente a rica vegetação que me rodeia, sentado sobre uma rocha, a natureza retribui o gesto observando-me, mas sem que por isso eu não passe de um insignificante ao Grande-Olho que tudo vê.

Pronto, vou-me deitar de barriga para o ar, sobre a rocha nua, vou fechar os olhos e entregar a alma aos cuidados do todo-poderoso. É possível que tudo venha a tornar-se claro como águas de uma nascente. Talvez destrua as convenções e descubra todos os segredos da natureza.

Bom dia!

O calendário “Anno Domini” diz-me que são oito horas do dia vinte de Dezembro de 2015. Em breve será Natal e eu sei que os negros também vão festejar o nascimento do Senhor Jesus Cristo, dizem-me frequentemente que é ele o Nosso Senhor!

P.S. – E no outro dia, com o Patissa, juntos escalamos a majestosa rocha do Atuki, na Ganda; um exercício que ao outro custou muito suor (eu já estava treinado!).
Banny de Castro.-

(*) Oiço o trinado das aves (na língua umbundu)

SOBRE O AUTOR

Banny de Castro nasceu aos 22 de Setembro de 1988. Natural da Ganda – Benguela; atualmente reside em Benguela. Publicou: “Quando tudo parece breu, esvanecem-se as esperanças” - Romance, pela Chiado Editora, PT, (2012); “Trilogia Negra” – Prosa, pela Celeiro de Escritores, BR (2014-2015); “Ulika”? - Romance, pela Chela Editora, AO (Abril de 2018); e “O Medo das bruxas, reflexões sobre feitiçaria em Angola” - Ensaio, pela Chiado Books, PT (Julho de 2018).
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