sexta-feira, 30 de novembro de 2018

[Oficina literária 28] QUE COMECEM AS CALIFÓRNIAS – crónica de Kelson Kaputo

Vocês já sabem como é a cidade de Benguela. Uma amiga minha costumava dizer que Benguela era uma província burra. Ela não sabia explicar a razão dos insultos, mas sei que acusava a cidade de não saber dar valor aos seus produtos internos brutos, e sei com toda a certeza que a acusava também de ter dificuldades de gestão em época chuvosa.

“Benguela nos castiga muito!”, dizia a mulher. Se calhar a pobrezinha tem razão, mas não era preciso ofender de tal maneira a nossa mãe. Até porque ela se esforça em tentar gerir bem as coisas, eu sei que aquelas chuvas do mês de Março não são por mal, aquele sol de Fevereiro, Março e Abril que deixa pobres estudantes peões da recta da paciência confundidos ao tentar saber se era pelo sol das doze e quarenta (que fazia doer a cabeça), ou era por causa dos conteúdos de lá da escola (que para começar não são bem facilitados, facilitando aquele desgosto e desconsideração pelos estudos). Mas enfim.

Eu ponho-me a pensar em torno disso porque é dura a realidade de viver em bairros esburacados sem saneamento. Quando chove não se deseja nada mais senão saber voar. Mas é na terra das acácias que se encontram todas as cordas que (cada uma delas e em conjunto) libertam sons em melodias de cantar e encantar até aos confins do corpo de viola da nossa mboa Angola. E houve já quem dissesse uma vez que se Benguela não repousasse dentro do território angolano, este com certeza seria um deficiente cultural. Aqui vivem pessoas de todo tipo; belas donzelas, vozes de rouxinóis e saem até presidentes. Pelo menos é o que eu tenho visto.

Uma vez eu sentado, passava por mim um homem. Percebi ter o nome de Joaquim Sanga, na sua actividade laboral, com um semblante que trazia todo o tipo  de mensagem não verbal que comunicavam pobreza, luta e morte da alma. Sentindo-se derrotado pelo cansaço, decidiu calmamente render-se ao suposto conforto dos bancos assentados no jardim sintéticos do tal aclamado Largo d’África.

Aquele estava a ser um dia bastante violento e não era só do sol mas da cidade em si. Um pobre vendedor ambulante que não via em sol nenhum a esperança de um novo dia, quanto mais a lua e as estrelinhas? E como se não bastasse um polícia decide forçá-lo a abandonar um dos assentos públicos, que de facto era público, por ser um vendedor ambulante. “Desculpa senhor, o senhor deve-se levantar porque este lugar é público.” Pareceu até uma guerra de esfomeados. Todos ouviram a pergunta dirigida ao agente: “Desculpa ainda, chefe, público não quer dizer para todos?” “Sim, senhor, é sim”. Vês? Nem se percebe quem tem razão ou quem não sabe do que fala ou do que faz.

Mesmo depois de ter sido a sua pergunta confirmada pelo mesmo polícia de fiscalização pública que um bem público é um bem de toda gente, levantou-se. Era um homem educado, não tinha o objectivo de lá comercializar os seus acessórios de telemóveis, mas isso não o livrou de ser jogado novamente para aquele sol que por sinal estava sob tutela do diabo. Sentiu-se assassinado, considerando o facto de que ser assassinado no final das contas não é nada mais se não tirar de alguém o poder de ter vida na terra, não obstante o pai mandar não haver privilegiados entre os irmãos em casa.

Durante a guerra dos lobos famintos para liderança de Angola, em 2017, João Lourenço encheu de água as nossas bocas ao prometer a transformação da terra das acácias em Califórnia. Promessa muito é dívida.

Então que venham as autarquias! Vamos cozinhar a nossa própria comida, mbora lá fazer a nossa própria cama e pôr lá a dormir aquele grupo social que diz “o país já tem dono” e abre as pernas para aqueles jogos de lançamento dados que diz NÃO TE IRRITES, mesmo que matem as tuas peças. Verdades que me trazem lágrimas aos óculos. E já agora, se a Califórnia que nos prometeram for apenas física, então não adianta. Vamos fazer primeiro uma Califórnia psicológica, pois a alma do homem não pode estar onde ainda lhe possam matar.

Kelson Kaputo

SOBRE O AUTOR


António Quelson Kaputo, residente em Benguela desde 17 de Agosto de 1997, de 21 anos de idade, tem como profissão as actividades ligadas à área da comunicação social (propriamente comunicação e imagem). É Formando na Universidade Katyavala Bwila no curso de Licenciatura em Linguística/Inglês, ama a literatura e alimenta um sonho veemente de ser professor, escritor, interprete e empreendedor. É um homem determinado que acredita no amor e no poder pessoal, e conhece de perto o que é ser um jovem da periferia. 
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