domingo, 11 de novembro de 2018

NOSSA LUTA, VOSSA LUTA [fragmentos do conto do livro O HOMEM QUE PLANTAVA AVES, de Gociante Patissa]


Ia eu dar umas palmadinhas de empatia nas costas do estratega, major cubano de vinte e oito anos, barba aparada a Che. «CORAGEM, UNA MIERDA, HOMBRE!», reagiu assim abruptamente, coisa de cair mal a qualquer camarada. O camuflado da farda coreana estava irreconhecível. Muito ensopado. Mais de lágrimas, ranho e baba do que de chuva de granizo no interior de Benguela. Estamos em meados de 1984. O nosso inimigo tem muitos nomes. Fantoche, lacaio, tribalista, traidor, enfim, kwatcha[1]. Somos a integridade territorial contra a guerrilha. «Liberdade ou morte, ao inimigo nem um palmo da nossa terra».
(…)
O único diferente aqui somos nós, continuava histérico o major, bala na câmara, feito perigo a nu para a manutenção do moral das FAPLA[2]. Distinguiam-se, pelo tom moreno, do resto do pelotão de infantaria. Cubanos e angolanos unidos pela mesma farda na linha da frente, dando corpo à barreira na fronteira com a província do Huambo. Vai-se lá saber porquê, as baixas neste dia só falavam espanhol. O inimigo é como vocês, fala como vocês; como sei que não são vocês?
Ele espumava mas cá para mim era coisa do porco a rir no farelo. Sabia ele o que era andar meio-ano com o mesmo par de botas, trinta dias por mês?! Até ao cigarro com filtro tinha privilégio. Quisera eu! Mas, pronto, como não lhe vi jurar a bandeira, não censuro o cubila. Enrolei uma pedra da liamba[3] e lhe dei: isso é que é o tira-medo dos homens, camarada. É só saber fumar com arte. «Há que endurecer-se, mas sem jamais perder a ternura», esqueceste o grande revolucionário Guevara, primo? Nossa luta, vossa luta. (…)
As estações da guerra, melhor dizer da guerrilha fratricida, podem muito bem ser contadas em quatro actos: quando sofremos com a chuva, quando nos gela as veias o cacimbo, quando matamos e/ou quando morremos. Toca a empurrar o capim. Cantemos: «Eu vou, eu vou morrer em Angola, com arma, com arma de guerra na mão. Granada, granada será o meu caixão. Enterro, enterro será a minha patrulha.»
(…)
«Na tentativa de ocupar tal localidade, o inimigo foi rechaçado e saiu em debandada», anunciava um lado, o que traduzido queria dizer que se reocupara determinada localidade, até então em mãos rebeldes.
«Os caudilhos, auxiliados pelos mercenários cubanos, deixaram sangue», anunciava o outro lado, que chegava a recorrer às mais inverosímeis das imaginações, sendo disso exemplo apresentar trilhos de pneus pela manhã sob alegação de ter chegado no véu da noite avião com medicamentos. (…) militares e civis acreditavam no poder silencioso dos motores do avião contratado pelo movimento. Esforçavam-se ao máximo de suas pálpebras a trocar o sono pela vigilância, quem sabe lhes calhava da próxima vez a honra de testemunhar a aterragem e partida do alucinante bicho dos ares.
(…)
Eu saí da vida militar com a desmobilização de 1991. Passei a civil numa sociedade que não contava comigo. Depois já é cada um por si, Deus para todos. Isso é que é lixado. O serviço militar é obrigatório, voltar a viver já é facultativo. De vez em quando ainda me punha a rir só de lembrar aquele major cubano. (…)
Uma parte de mim ficou congelada no tempo, mas não me queixo. Ninguém me aponta o dedo. Não matei e não morri completamente. Mas há por aí pólvora na via pública a apanhar restos nos contentores, na birra do trânsito, na estatística da investigação criminal. Basta saber ouvir. Falei em ouvir? Não sei porquê, mas às vezes sou tentado a crer que o cerume do meu canal auditivo atrai relatos demais. Psiquiatras? Onde? Ainda ontem dormia no meio de velhos e professores nas filas do BPC[4].
(…)
As voltas que a vida dá! Palavra de honra, pá! Eu lá imaginava um dia essa life[5] que me caiu como gerente da nossa empresa de segurança, logo às custas do cubano? E não é me gabar, não, mas posso mesmo afirmar de boca cheia que hoje eu já escolho as pessoas a quem cumprimentar…
(…)
Se gamou ou não, só sei que me organizou a vida. É o meu Deus. Hoje o negócio que dá é substituir luta por paz, onde e se exequível rentabilizar as cicatrizes do passado. Depois você só tem que saber molhar bem as mãos que te lançam. Daí o nome da empresa: «Nossa Paz, Vossa Paz».
A luta continua. O meu nome? Não tem importância. A história que conta é dos grandes. Ainda não começamos a escrever sobre os pequenos. Talvez um dia…

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Gociante Patissa. do conto Nossa Paz, Vossa Paz. In «O Homem Que Plantava Aves”. Edição angolana na forja
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Na foto: Victor Manuel Patissa, de pistola na cintura ao centro, Comissário/Administrador Comunal da Equimina, município da Baía Farta, província de Benguela, década de 1980, e a elite da sua segurança e guarda-Costas




[1] Kwatcha (amanheceu!) é grito de anúncio de alvorada. O termo da língua Umbundu passou a ser a identidade do movimento de guerrilha, em cujas bandeiras se destacam dois símbolos: o galo negro e o raiar do sol.
[2] Forças Armadas Populares de Libertação de Angola (exército governamental).
[3] Canábis; marijuana.
[4] Banco de Poupança e Crédito.
[5] Empréstimo do inglês «life» para indicar estilo de vida extravagante.
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