Todas as manhãs cuido de despertar as várias pessoas que me habitam. O trabalhador inteira-se do relógio, das correspondências no telemóvel e pensa no que comer. Já o escritor, que não aprende nunca a deitar-se mais cedo, quer mais algum tempo de paparicar a cama, sonhar com respostas de meia-idade. Enquanto isso o doméstico anda às voltas a ver o que vestir, algo a condizer com a agenda do dia. É sempre um debate tácito até o moderador chamado ditadura racional pender a balança da rotina. Não há mais tempo a perder! Cuide-se da higiene, do matabicho e bom dia rua! Faço o trajecto a pé por opção, diria melhor por oposição ao atolado trânsito e inerente stress. De resto, localidades amigas da caminhada notam-se pelo uso popular de sapatilhas. Por cá sapatilhas só quando se abre a porta de um carro à porta de ginásio.
Há uns poucos meses já que deixei a marginal e passei a morar nos Estados Unidos, espiritualmente falando. Estados desavindos seria o mais justo. Não necessariamente por algum confronto, mas pela desobrigação de corresponder à saudação, por exemplo. Rostos carrancudos. A simpatia não mora ali. Tal como nos elevadores dos Estados Unidos, saudar ou não o vizinho dá igual. É de facto um microcosmo sociologicamente rico e representativo da heterogeneidade e das assimetrias. As escadas que levam aos mais de seis andares testemunham o corrupio desde a classe aparentemente média à classe mais de entrada. Desde o perfume intenso dos trajes a rigor ao odor forte (do banho esquecido) pelos tarefeiros que fazem a vida no sobe e desce dos degraus distribuindo pelos apartamentos água em bidões de 20 litros. Do cirandar das Testemunhas de Jeová, tão amigas de portas e campainhas, à fedorenta combustão da liamba em estado permanente. Do reluzir dos azulejos do prédio em recondicionamento ao estrondo dos casebres de chapa que lhe circundam a cada golo na Europa.
Entre Maianga e Mutamba também a cidade acontece antes do raiar do sol, pelo que nunca se pode dizer que saímos cedo de casa, só porque dentro do horário. Que me desmintam os Hiaces candongueiros azuis-brancos. O contraste é a marca da cidade, onde a esperança e o desespero se entrecortam no branco das batas ou uniforme de crianças a caminho da escola, contrastando com outras andrajosas em sono profundo no horizonte acessível que é o seu lar de lancil e berma. Engarrafamento não é só na estrada, no passeio também. O angolano tem o belo hábito de parar no exacto espaço estreito de passagem, ora porque está pensativo, ora porque conversa, está na fila no multicaixa. Ou então... porque o passeio vira mercado do informal para a venda de tudo e mais alguma coisa. É também a banca da quitandeira de legumes e frutas, ela que conta com roturas de condutas para molhar o produto e mantê-lo apelativo. A poesia visual corta o coração do olhar impotente, quando o verde do contentor de lixo ainda se arroga a prometer esperança ao estômago pelas artérias da moderna capital. Esse frenesim é a voz da cidade que se desdobra em ricas narrativas, ainda que fragmentadas. Do Umbundu, Lingala, Kikongo e algum Kimbundu, os nossos diálogos predominantes em português são um tesouro!
Esta manhã de cacimbo sem frio retive parte da prosa entre um munícipe e a sua amiga agente de trânsito. É daqueles registos bem arrancados das marcas da oralidade Bantu, quando o desdém aparente é afinal uma metáfora para o luto, um estado de negação. “Aquele mesmo bem calmo morreu mais?”, admirava-se o senhor, ao que ela responde, toda sentida: “Os outros se matam com grandes máquinas; ele foi morrer logo com aquele carrito bem simples?!” É claro que não é sobre carros, mas sobre o sentido curto da vida. Enfim, o contexto é tudo!
Gociante Patissa | www.angodebates.blogspot.com | Luanda 04 Junho 2025
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