Escandalizava-nos absurdamente ouvir dizer que alguém estava com catorze anos. Isso tudo?! Vinte
então... era coisa de dinossauro. Percorríamos picadas atrás da cana-de-açúcar, aguçados também por uma outra doçura, as lendas de heróis que desafiavam o exército de mosquitos e a ferocidade dos guardas e ODP para abastecerem o bairro com aquele petisco todos os dias e noites. Havia mesmo no bairro uma beldade com a proeza de completar a mesma idade, dezoito, já lá iam uns seis anos desde que estagnara em tão generosa faixa, auxiliada pela estatura esguia. E ninguém se feria com isso. Talvez, até, houvesse quem se roesse de inveja e sonhasse com o dom de ter apenas dezoitos, fosse em 1987, fosse em 1992.Só que um dia fomos dormir e demos, já na mesa do matabicho ou pequeno-almoço, como soe dizer-se, dizia demos com o temido século vinte e um bem sentadinho, desmentindo todo aquele espectro apocalíptico. Afinal os computadores não se descomandaram. Afinal o fim do mundo não era para já, a emigração para os céus imaginada falhara a data. E pior mesmo para os maus presságios foi 2002 e o calar definitivo da guerra civil.
Salvos do susto, continuamos a ir e vir do sono até que um dia, sem darmos por isso, estávamos já com a idade dos nossos pais. Vinte e tais, uns; trinta e poucos, outros. Servia de consolo o tecto de trinta e cinco anos para transpor a categoria de jovem. Ufa! Ainda falta contar mais uns para dinossauro! O tempo dos prolongamentos é sempre gasoso, por isso há que batalhar e batalhar quanto mais, por nós, pela família que nos legou o sobrenome e pela sociedade. Ser feliz também, claro, mas antes de tudo dar o litro para conquistar uma vaga na escola, desafiar a rocha que estorva a viela do emprego, num país que ensaiava viver após a guerra civil.
Vinte e três anos volvidos, as crianças daquele tempo hoje já só moram nos dizeres do documento na carteira, na roda dentada que cilindra e recicla o melhor da música dos anos oitenta. À criança daquele tempo hoje resta dar a mão à palmatória por tanto que ralhou os pais pela frequência com que acampavam em óbitos. Chegamos àquela fase em que os kotas, estado de alma impotente e discordante, diziam aconselhar a trouxa do acampamento de óbitos em prontidão. Ontem por exemplo foi-se, traído pelo coração, o Kamutamba, Sapalo Serviço, o fã inveterado dos Irmãos Almeida, tractorista da Empresa de Águas e Saneamento, irmão mais novo do antigo cobrador de autocarros da ETP, Amândio Serviço! Fica congelada a sua criança.
“A vida é criança perfeita, que renasce a cada amanhecer”, lia-se por aí neste universo digital das frases feitas com cheiro metálico das máquinas ou de fusíveis dos computadores que se iludem e nos iludem substitutos do pensar humano.
Angola segue sendo a criança dos nossos afectos. O futuro a nós pertence? Crianças, futuro e pertencer podem ser simples substantivos ou a insónia da coesão adiada. Por vezes me engasgo de ouvir nomes atribuídos à criança com pretexto africano, como quem rouba ramos e flores do jardim do vizinho sem lhe conhecer o propósito. E montam-se palavras divorciadas da essência proverbial e da virtude da conotação filosófica. Soa bem. Será que dialoga com a raiz?
Há dias soube da conclusão de um curso que levou três anos de memorização do Alcorão, conduzido pela comunidade muçulmana. Grupo-alvo? Crianças, quinhentas delas. Era ouvir na rádio algumas reverenciando a oportunidade da merenda servida em três anos de potencial investimento nacional em auroras embaciadas. É que o sono das crianças é cofre do sonho dos adultos.
Gociante Patissa | www.angodebates.blogspot.com | Luanda 06 Junho 2025
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