quarta-feira, 20 de abril de 2016

Crónica | As ruas da cidade têem uma dimensão de jornal

Precisava de dar uma volta pela cidade, volta mesmo como quem dialoga com as avenidas e os acontecimentos dos últimos dias. Há muito por onde pegar. Dito de outra forma, as ruas cá da cidade, no que já se fez tradição, têem uma dimensão de jornal, não já o mural, mas o ambulante. Na berma, na calçada, na esplanada de bar, à beira-mar, no banco de trás do kupapata. O parlamento é qualquer lugar que respire.

A mortalidade em níveis preocupantes no Hospital de Benguela já vai gasta enquanto tema, sobretudo depois de ter saltado para a mesa do governador e com isso a criação de uma comissão para acompanhar o caso. Se já chegou ao chefe, então o parlamento ambulante aplaca o assunto e logo destaca outro tema. Mas há um tema que parece ultrapassar esta lógica tácita dos ciclos do lamento social.

A boca que não sai de moda é mesmo ainda da malfadada crise, a económica e de ramificações incalculáveis. É ver como cada vez mais desfilam senhoras transportando à cabeça recados afrodisíacos em forma de negócio. Sim, aquela coisa de zungar rodelas de mandioca crua com ginguba (amendoim)… hum! Assim já é para dizer o quê, que os maridos estão a tirar negativas na hora de dar vez à libido? Parece haver ali um toque de subtileza, porque é sintomático ser um comércio só lembrado por mulheres. Ou não?

Também, né?, se a pessoa chega à casa e não sabe se o emprego amanhã deixa de existir, ora, a verticalidade debaixo dos lençóis acaba ficando um pouco chocha, não é verdade? Pronto, mas há sinais de esperança. Um deles pode ser a vinda do Avô Kitoko nos próximos dias, um curandeiro de primeira linha. Sendo do tipo cura tudo, quem sabe… E não sei se por medo já ou quê, mas o locutor anunciou-o “doutor”, um termo que nos écrans pertence aos engravatados comentadores, juristas, licenciados que dão aulas e aos dirigentes.

Até parece que vários estabelecimentos privados resolveram competir de quem encerra primeiro. Cresce o número de vitrinas vestidas de opaco por jornais velhos. A falência agora é lei. Hoje mesmo constatei a falta de bom senso que foi a falência da Bom senso, a clínica de fisioterapia (padrão europeu) do Kali, da selecção. Tive de ir aos chineses para me passarem a mão numa lesão por distensão muscular nas costelas. Já me tinham dito que os orientais confundem pessoas com tapetes, pelo que me deitei já desconfiado. E não é que a meio da sessão senti a gaja pronta a marchar-me sobre o tronco... “Amiga! Pisar, não, caramba!”

Voltando ao principal. O mais profundo sinal de esperança vi esta tarde, talvez o mais profético e poético do que qualquer discurso tecnocrata, demagogo, ou coisa que o valha. Quando eu vi em uma loja um relógio a custar acima de três milhões de kwanzas (USD 10 mil ao câmbio da rua), algo surreal numa cidade em que grandes lojas esgotaram o stock de ovos, a metalinguagem traduziu logo o simbolismo da intenção: não estava à venda o relógio mas sim o sonho. Três milhões eram o preço do sonho de tudo voltar ao normal. Aliás, como escreveu o poeta Abreu Paxe, “o tempo é a medida de precariedade de todas as coisas”.

Gociante Patissa, Benguela, 19 Abril 2016
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