segunda-feira, 4 de abril de 2016

Crónica | E assim construímos reencontros

(C) foto: Sérgio Guerra
 Ia eu dar umas palmadinhas de empatia nas costas do estratega, major cubano de 28 anos, barba a Ché. “CORAGEM, UNA MERDA, HOMBRE!”, reagiu, intempestivo. O camuflado da farda coreana era irreconhecível, de tão ensopado, mais de lágrimas, ranho e baba do que de chuva de granizo no interior de Benguela em 1984. “CINCO HERMANOS CAÍDOS SÓLO HOY”. Estatística de um primeiro dia para esquecer. Não se via o sol. Devia andar distraído a namorar as nuvens de bruta chuva. Mas o relógio biológico não podia mentir. Em dias de glória, devia poisar a mochila e abrir uma latinha da sua conserva preferida na ração, a de porco, mas não havia fome nem peito. Cinco dos seus camaradas de armas aguardavam por um enterro, improvisado mas condigno, ali mesmo, logo que o tiroteio baixasse. Tinham partes dos membros por recolher entre o capinzal e a copa de pequenitas árvores, um cenário escusado de qualificar como chocante. Que mais minas afinavam vozes para a hora da explosão, já se sabia; só não se sabia era onde exactamente, pelo que a hipótese de um helicóptero para a recolha dos corpos nem se punha. Sorte a dele de ainda estar vivo, não se sabendo ao certo para quanto tempo mais. Conseguiria por caso comer carnes? E a missão sequer ia a meio. O único diferente aqui somos nós, continuava colérico o major, bala na câmara, feito perigo a nu para a manutenção do moral das FAPLA (Forças Armadas Populares de Libertação de Angola), tanto do lado angolano, como do contingente internacionalista cubano. Vai-se lá saber porquê, as baixas neste dia só falavam espanhol. O inimigo é como vocês, fala como vocês; como sei que não são vocês? Na recta-guarda a continuação da luta nas ondas da rádio. Num extremo, o “Angola Combatente”. No outro, o “Alvorada”. As estações da guerra, melhor dizer da guerrilha fratricida, podem muito bem ser contadas em quatro actos: quando sofremos com a chuva, quando nos gela as veias o cacimbo, quando matamos e/ou quando morremos. Ao fim de uma semana de bombardeamentos, os resultados na contra-informação. "Na tentativa de ocupar a localidade X, o inimigo foi rechaçado e saiu em debandada", anunciava um lado, o que traduzido queria na verdade dizer que se reocupara determinada localidade, até então em mãos rebeldes. "Os caudilhos, auxiliados pelos mercenários cubanos, deixaram sangue”, anunciava o outro lado, que chegava a recorrer às mais inverosímeis das imaginações, sendo disso exemplo apresentar trilhos de pneus pela manhã sob alegação de ter chegado (silencioso?) de noite avião com medicamentos. Por fim, o batalhão seguia para outra missão, para mais um ciclo de incertezas. Implantada a bandeira, restava aguardar pela próxima emboscada. Nada podia ser duradoiro. No meio-termo, o povo, que adopta rapidamente o que cada lado esperava. Lei da sobrevivência. Nas alternâncias bélicas, as inevitáveis cicatrizes sociais e familiares. “Chegou a meio da noite, bateu à porta. Abri. Assim que abri, apontou-me a arma na cara, ‘vais morrer hoje, seu traidor!’ Meu próprio sobrinho, agora dirigente. Então porquê? ‘Aceitaste ser soba no tempo do inimigo’. Eu lhe disse: filho, tem toda a razão. Até vou tirar a camisa, assim a bala entra directamente. Mas a tua bala é comprida o suficiente para me trespassar o corpo e atingir os dois partidos? Se não, vais ter de viajar para a Jamba e para Luanda, assim matas a Unita e o Mpla pelo prejuízo que te vão causar. Mesmo morto, eu pago a passagem e a comida da viagem. Se me matas, eles não perdem, eu também não, que já estou velho. Já tu perdes um tio e a inocência. E ele saiu a chorar, eu tremi do medo que andei a conter”. Depois veio 2002, os angolanos ouviram o mais nobre dentro de si… e assim construímos reencontros.
Gociante Patissa, Aeroporto Internacional da Catumbela, 04 Abril 2016
Share:

0 Deixe o seu comentário:

A Voz do Olho Podcast

[áudio]: Académicos Gociante Patissa e Lubuatu discutem Literatura Oral na Rádio Cultura Angola 2022

TV-ANGODEBATES (novidades 2022)

Puxa Palavra com João Carrascoza e Gociante Patissa (escritores) Brasil e Angola

MAAN - Textualidades com o escritor angolano Gociante Patissa

Gociante Patissa improvisando "Tchiungue", de Joaquim Viola, clássico da língua umbundu

Escritor angolano GOCIANTE PATISSA entrevistado em língua UMBUNDU na TV estatal 2019

Escritor angolano Gociante Patissa sobre AUTARQUIAS em língua Umbundu, TPA 2019

Escritor angolano Gociante Patissa sobre O VALOR DO PROVÉRBIO em língua Umbundu, TPA 2019

Lançamento Luanda O HOMEM QUE PLANTAVA AVES, livro contos Gociante Patissa, Embaixada Portugal2019

Voz da América: Angola do oportunismo’’ e riqueza do campo retratadas em livro de contos

Lançamento em Benguela livro O HOMEM QUE PLANTAVA AVES de Gociante Patissa TPA 2018

Vídeo | escritor Gociante Patissa na 2ª FLIPELÓ 2018, Brasil. Entrevista pelo poeta Salgado Maranhão

Vídeo | Sexto Sentido TV Zimbo com o escritor Gociante Patissa, 2015

Vídeo | Gociante Patissa fala Umbundu no final da entrevista à TV Zimbo programa Fair Play 2014

Vídeo | Entrevista no programa Hora Quente, TPA2, com o escritor Gociante Patissa

Vídeo | Lançamento do livro A ÚLTIMA OUVINTE,2010

Vídeo | Gociante Patissa entrevistado pela TPA sobre Consulado do Vazio, 2009

Publicações arquivadas