(C) foto: Sérgio Guerra |
Ia eu dar umas palmadinhas de empatia nas costas do
estratega, major cubano de 28 anos, barba a Ché. “CORAGEM, UNA MERDA, HOMBRE!”,
reagiu, intempestivo. O camuflado da farda coreana era irreconhecível, de tão
ensopado, mais de lágrimas, ranho e baba do que de chuva de granizo no interior
de Benguela em 1984. “CINCO HERMANOS CAÍDOS SÓLO HOY”. Estatística de um
primeiro dia para esquecer. Não se via o sol. Devia andar distraído a namorar
as nuvens de bruta chuva. Mas o relógio biológico não podia mentir. Em dias de
glória, devia poisar a mochila e abrir uma latinha da sua conserva preferida na
ração, a de porco, mas não havia fome nem peito. Cinco dos seus camaradas de
armas aguardavam por um enterro, improvisado mas condigno, ali mesmo, logo que
o tiroteio baixasse. Tinham partes dos membros por recolher entre o capinzal e
a copa de pequenitas árvores, um cenário escusado de qualificar como chocante.
Que mais minas afinavam vozes para a hora da explosão, já se sabia; só não se
sabia era onde exactamente, pelo que a hipótese de um helicóptero para a
recolha dos corpos nem se punha. Sorte a dele de ainda estar vivo, não se
sabendo ao certo para quanto tempo mais. Conseguiria por caso comer carnes? E a
missão sequer ia a meio. O único diferente aqui somos nós, continuava colérico
o major, bala na câmara, feito perigo a nu para a manutenção do moral das FAPLA
(Forças Armadas Populares de Libertação de Angola), tanto do lado angolano,
como do contingente internacionalista cubano. Vai-se lá saber porquê, as baixas
neste dia só falavam espanhol. O inimigo é como vocês, fala como vocês; como
sei que não são vocês? Na recta-guarda a continuação da luta nas ondas da
rádio. Num extremo, o “Angola Combatente”. No outro, o “Alvorada”. As estações
da guerra, melhor dizer da guerrilha fratricida, podem muito bem ser contadas
em quatro actos: quando sofremos com a chuva, quando nos gela as veias o
cacimbo, quando matamos e/ou quando morremos. Ao fim de uma semana de
bombardeamentos, os resultados na contra-informação. "Na tentativa de
ocupar a localidade X, o inimigo foi rechaçado e saiu em debandada",
anunciava um lado, o que traduzido queria na verdade dizer que se reocupara
determinada localidade, até então em mãos rebeldes. "Os caudilhos,
auxiliados pelos mercenários cubanos, deixaram sangue”, anunciava o outro lado,
que chegava a recorrer às mais inverosímeis das imaginações, sendo disso
exemplo apresentar trilhos de pneus pela manhã sob alegação de ter chegado
(silencioso?) de noite avião com medicamentos. Por fim, o batalhão seguia para
outra missão, para mais um ciclo de incertezas. Implantada a bandeira, restava
aguardar pela próxima emboscada. Nada podia ser duradoiro. No meio-termo, o
povo, que adopta rapidamente o que cada lado esperava. Lei da sobrevivência.
Nas alternâncias bélicas, as inevitáveis cicatrizes sociais e familiares.
“Chegou a meio da noite, bateu à porta. Abri. Assim que abri, apontou-me a arma
na cara, ‘vais morrer hoje, seu traidor!’ Meu próprio sobrinho, agora
dirigente. Então porquê? ‘Aceitaste ser soba no tempo do inimigo’. Eu lhe
disse: filho, tem toda a razão. Até vou tirar a camisa, assim a bala entra
directamente. Mas a tua bala é comprida o suficiente para me trespassar o corpo
e atingir os dois partidos? Se não, vais ter de viajar para a Jamba e para
Luanda, assim matas a Unita e o Mpla pelo prejuízo que te vão causar. Mesmo
morto, eu pago a passagem e a comida da viagem. Se me matas, eles não perdem,
eu também não, que já estou velho. Já tu perdes um tio e a inocência. E ele
saiu a chorar, eu tremi do medo que andei a conter”. Depois veio 2002, os angolanos
ouviram o mais nobre dentro de si… e assim construímos reencontros.
Gociante Patissa, Aeroporto
Internacional da Catumbela, 04 Abril 2016
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