terça-feira, 1 de março de 2016

Crónica | Um sobrinho e a língua que não foi falada

Texto de Lauriano Tchoia
Kuito 28 Fevereiro 2016
Olhos perfilando, na ânsia de que algo mais poderá acontecer.

Entre ir à escola e não, a fome empurrava para o lado da preguiça. Se dependesse apenas de mim, não seria difícil determinar a escolha, sabendo que o foco alimentar tem resultados imediatos. O que não entendia era o porquê de tantas disciplinas na escola, se na prática não iremos fazer uso dela.

Lá fomos sem resmungar para o cumprimento do dever do pioneiro, carregando na sacola uma batata doce assada na véspera, com a missão de celebrar a morte da fome que não tardaria a chegar.


Do bairro à escola, superamos a distância, ora caminhando, ora parando de vez em quando para dar uns pontapés em latas vazias, e encarnávamos desta forma o Mantorras ou Akwá, ou outros ídolos do nosso imaginário.

Sabendo que o meu destino era medicina, não entendia a razão de aprender matemática e inglês, até porque, para doente estrangeiro, acredito ser bastante um intérprete.

Nem sei se seria mesmo necessário um tradutor. Nas coisas do amor, da música e do futebol, a língua não domina a vontade de as coisas acontecerem. Joana Divua era a confirmação de todo o argumento para a defesa certa da minha tese. Logo que chegou a paz, a vida abriu-se a parcerias de todo o género.

Na jovem começou por se clarear a pele, enquanto por outro lado seleccionava a dedo o que devia, ou não, ser aceite para ingestão metabólica. Foi cuspindo a cada minuto e o abdómen denunciava que o que a fazia engordar… não era apenas alimento.

Juntaram-se as tias, mas sobre o pai da gravidez, o segredo fechava-se a sete chaves, Divua não tugia nem mugia por nada. Ralhetes e palmadas ou ameaças a feitiço não deram abertura ao confessionismo exigido por alturas destas.

Não tardou, veio à dor. O parto foi de risco, tendo valido a experiência das anciãs e lá estava o sobrinho ao primeiro grito. O tracejar dos olhos do bebé estampavam, era chegado à família um herdeiro de PiongYang ou de Pequim em pleno Nambuangongo.
Só podia ter sido aquele motorista chinês (já que por cá é padrão, tudo o que se apresenta de olhos rasgado não passa disso) que trouxe o tractor da cooperativa; é o único que por cá passou nos últimos doze meses.

E nesta nova parceria, a dúvida persistia se era mesmo necessária a disciplina de língua estrangeira para o meu futuro currículo de medicina.
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