sábado, 12 de março de 2016

Crónica | Uma brasa ao comité do tio

Em tempos, por mais de uma vez, telefonei para uns amigos activos no exercício político-partidário ligado ao emblema tradicional da minha família (MPLA).

Entre sugestões e o puxão de orelhas, contestei o aspecto pouco atraente de alguns comités de acção, quase sempre bem localizados. Será que não podiam os deputados de cada partido contribuir com uma pequena mensalidade capaz de formar salário de uma ou duas pessoas administrativas e deste modo manter a casa aberta?

De argumento em argumento, sublinhei que tal aparente desleixo punha em causa o princípio da ascensão a partir da base, pois se não arrumamos o ponto de partida, ficaria complicado convencer novos militantes. Mas as minhas intervenções, confesso, só pecam pela sua agenda escondida, ou não fossem elas motivadas por memórias de infância e melancolia familiar. É que tal génio conselheiro só salta do estado de hibernação cada vez que passo pelo comité José Samuel, na Zona Comercial ou 28. O anúncio mais recente, colado na porta, é sobre um evento ocorrido em 2014, salvo erro.

Com a nossa chegada ao Lobito em 1985, fugidos do interior por causa da guerra civil, passamos, finalmente, a ter um avô da parte materna. “Ó neto, eu sou o avô Samueli”, dizia ele cada vez que nos saudasse, numa fonética muito próxima da europeia, típica aliás de quem muito cedo veio para as cidades. Era primo e supria bem a ausência afectiva de Gociante Kapiñalã, que nem por fotografias conhecíamos. Morava no Kambembwa (zona alta do Lobito) o avô e nos enchia de mimos quando nos fosse visitar ali perto do jardim do Elefante ou vice-versa.

Com os filhos dele é que nunca houve muita proximidade com a nossa mãe, de resto uma barreira frequente nas relações cidade-campo. Sabíamos que um é professor de biologia e outro camionista de um Izusu cinzento que revendia sacos de carvão. Acreditava a minha mãe que o José, se vivesse, seria diferente da frieza dos irmãos. Ela fazia recurso inconsciente ao condicional generoso em que conservamos o carácter de quem já partiu.

Mas desse José não se podia falar muito, sobretudo na presença do avô Samuel Ferramenta, seu pai, oriundo da Ganda. Como se já não bastassem os relatos de sofrimento do nosso avô paterno, preso político colonial em São Nicolau (1961-66), o lado materno viu um vigoroso militar assassinado ainda jovem em 1975, no Lobito, a mando de um figurão que hoje se auto-promove como o mais imaculado dos patriotas.

José Samuel, mártir que dava nome ao actual Terreiro do Pó, adjacente ao BFA, e a uma escola no Alto Liro, filho de Samuel Ferramenta, também ele perecido já depois de 1992 pela estupidez político-militar, é um primo da nossa mãe que não conhecemos e que nem por isso deixou de estar presente em nossas vidas. E faz-me, pois, espécie ver o comité em sua memória sempre fechado e atraindo pó. Pronto, está aberto o jogo.
Gociante Patissa, Lobito, 10 Março de 2016
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