Texto e foto: José Kaliengue, Jornal O País - Lino Passassi é uma figura conhecida no Lobito, com uma longa carreira no ramo da Educação. Natural da Hanha do Cubal, vive no “poiso do flamingo” há mais de trinta anos. Tempo suficiente para ter observado e aprendido a sua terra adoptada. Nesta conversa falamos um pouco de tudo, de memórias e dos dias de hoje, da Canata, “o bairro” do Lobito, da Restinga restrita, da beleza das mulheres, dos valores que não se passam aos mais jovens, da aculturação.
Como caracteriza o Lobito de hoje, com tanta gente vinda de fora?
O litoral do Lobito está como todas as cidades superlotadas. No princípio
pensámos que seria passageiro, que as pessoas depois voltariam aos seus locais
de origem. Está visto que não. O Lobito tem hoje até problemas de trânsito,
está perto dos problemas das cidades grandes, isso pode ser sentido já no
estacionamento automóvel no centro da cidade, além de que não se está a criar
novos parques.
E estes problemas não foram sendo resolvidos com o tempo, ou antecipados, já
que a cidade não foi das maiores vítimas da guerra?
Nós tivemos foi os efeitos da guerra, que se reflectiram aqui. E um dos
efeitos é termos esta gente toda aqui. E para tanta gente faltam-nos vias
estruturais, para a cidade circular bem. Isso vê-se no bairro Africano, no
Chapanguel. Havia aí uma via rápida, bonita, mas com tanta gente a construir na
área alta, construiu-se até nas linhas naturais de passagem da água das chuvas,
que lavavam as águas para a Catumbela… agora as construções fecharam tudo. O
que fez com que as águas das chuvas arrastem tudo o que encontram nos bairros
S. João e Sta. Cruz, onde hoje há casas soterradas até meia altura, no sopé do
morro. Como resultado, o asfalto foi-se. Foi a via rápida.
Eu acho que estão a tentar, mas imagino que seja muito difícil, haverá que
desalojar pessoas, etc. mas penso que que isso ajudaria a desanuviar a cidade.
Mesmo o bairro Africano, no Chapanguel, penso que se deveria deslocar a praça
que lá existe. Aliás, sabe-se da existência de um outro local, já identificado
e com desenho de um novo mercado feito. Diz-se que haverá lá agências
bancárias, parque de estacionamento, câmaras frigoríficas…
Mas nestas mudanças há sempre uma espécie de confronto com os hábitos
instalados. Aliás, ainda existem hábitos puros do Lobito?
Hábitos arreigados são difíceis de abandonar, mesmo os hábitos maus. Hoje
há muita mistura de costumes. O Camutangre, que gostava de farras, pairas,
etc., ainda existe… Há algumas pessoas com hábitos marcadamente do Lobito, mais
velhos. Os mais novos já não, cosmopolizaram-se. Já nem se nota tanto o sotaque
na língua portuguesa, nem mesmo no umbundu. Mudou muita coisa. Mesmo porque
aconteceram muitas coisas, muitas alterações quase bruscas na forma de estar e
de viver. Por exemplo, já houve tempos de ter cabritos nos prédios, os tchines
(almofarizes, em umbundu), coisas do tempo da guerra e de carências, hoje isso
já não existe.
Usou a expressão camutangre, de onde veio e o que caracteriza o camutangre?
Há muitas versões, mas parece ser uma corruptela ao umbundu daqui. Os
portugueses “corromperam” muitas expressões nativas, naquele tempo. Mas parece
que camutangre vem de catanguele, que significa o que não leu, não estudou. Os
do Bié, Huambo, Ganda, etc., terão sido os responsáveis por este nome. Os do
Lobito gozavam com eles, chamando-os de atrasados, gente do mato, menos
civilizados. Afinal, o do Lobito era esperto, homem do mar, lidava com o
europeu. Mas eles respondiam dizendo que o do Lobito era esperto, vivo, dava
baçulas, mas catanguele. O do Lobito é esperto, mas se lhe pões um livro a
frente ele não sabe ler. Sabe-se que aquelas pessoas são muito dedicadas aos
estudos. Hoje o camutangtre aceita e vestiu a expressão. Há orgulho no nome,
talvez não no significado original.
Então foi o camutangre que deu fama ao bairro da Canata?
É um bairro famoso, que gerou grandes pessoas. Um bairro com história
importante na evolução do Lobito, o que se passou, as pessoas… Lobito é Canata.
A Canata é o germe do nascimento de tudo o que se criou no Lobito. Um bairro
que criou gente de referência, também grandes namoradeiros, grandes dançarinos,
gente de bem-vestir.Nos outros tempo, os marinheiros das europas e das américas
aportavam cá e queriam imediatamente ir à Canata. A parte europeia da cidade
era sóbria. Na Canata era a efervescência, lugar de liamba, fumo, farras, era
aí. Os embarcadiços negros eram também da Canata. O resto são bairros que foram
nascendo. Hoje fala-se de nomes como Chipenda, Valentim, mas houve também
muitos brancos como o Sr. Eduardo, ligado aos autocarros ETB, que também é da
Canata. ele é Filho do Sr. Tupi, uma alcunha que lhe veio por beber com as
gentes do bairro. Tupi é aquele que bebe…
E o Bairro da Cabaia?
Este é um bairro novo, cujo nome veio de eavaia, que significa tábua, ou
madeira. Tuende cavaia (tuende co evaia. Vamos à madeira, em português), mas o
branco dizia cabaia. Ficou o nome, que veio de mais uma corruptela.
E há lá muitos flamingos, por estes dias...
Não se consegue explicar bem. Houve uma fase, que coincidiu com a do
conflito armado, em que, para tristeza de todos, os flamingos tinham
desaparecido. Já se disse até que tinha sido por causa do barulho das centrais
térmicas, dos geradores. Ou por causa dos resíduos das máquinas que vieram
parar aos mangais. Mas agora está proibido pescar nos mangais, há cuidados.
Fez-se trabalho.
E então, na Cabaia já há mesmo flamingos, não o cinema Flamingo apenas?
O Lobito tem vários cinemas, lindos. O Baía, o Flamingo, o Nimas 500, o
Império. Hoje estão todos degradados, não sei se ainda pertencem à EDICINE. Mas
são salas projectadas com grande beleza. Sei que há algumas semanas, quando cá
esteve o novo governador da província, Eng.º Isac dos Anjos, falou-se do cinema
Flamingo.
Tenho como paixões o desporto e o cinema. O desporto é até morrer. O
cinema, hoje já durmo à frente da televisão… Mas sou um homem do desporto,
ajudei no Electro do Lobito, no andebol, sofro por alguns clubes. No futebol e
no basquetebol sou do 1º de Agosto, também sou do futebol do Benfica de Lisboa.
Este ano não ganhámos nada, mas estivemos lá perto, foi uma grande época,
chegar a todas as finais das competições em que a equipa esteve envolvida.
E os namoros no Lobito, a Restinga era obrigatória naqueles tempos?
Na Restinga quase não havia negros, só um ou outro. Os negros eram
lavadeiras, cozinheiros, etc., serviçais. A Restinga era um bairro silencioso,
onde depois passaram a viver um ou dois assimilados. Também aquilo era muito
silencioso para os negros. Se um negro fosse a passar pela Restinga podia
aparecer uma senhora branca, com a sua filha, a perguntar para onde é que vais?
Os namoros eram na Canata, na Caponte. A Restinga era para os brancos.
Namoro era na Canata, aí sim, com vida, alegria, festas, marinheiros, farras
que atraiam as moças, havia muitos salões, como o Giro-giro. Os barcos e os
comboios do CFB (Caminho de Ferro de Benguela) traziam imigrantes, gente de
muito longe. O Hotel Términus, na Restinga, era para os belgas do CFB.
Digamos que a Canata estava entre os brancos da Restinga e Benguela, isso
explica a rivalidade do Lobito e Benguela?
O Lobito foi-se fazendo com famílias vindas do Huambo, Ukuma, Kinjenje,
etc., gente do interior. Benguela teve também desta gente, mas teve mestiços
donos de quintalões, gente vinda do mar, etc. Talvez estas diferenças expliquem
a rivalidade, os conflitos. Também havia pancadaria por causa das meninas
moças… é uma rivalidade que ainda perdura no desporto, por exemplo.
Mas a Restinga dos brancos hoje é outra coisa, nota-se que vai sofrendo
alterações...
Há muita luta por terrenos no Lobito, não imagina o quanto. Não imagina a
transformação que a Independência trouxe… até na Igreja. Hoje a Igreja é
assegurada pelos nossos filhos e pelos nossos hábitos. Antigamente era tudo
regido pelos europeus, os padres eram europeus… É verdade que ainda há uns
poucos com muita riqueza e outros sem nada. Mas esta luta por terrenos, estas
novas construções são sinais de que vai havendo dinheiro. Há dinheiro. E serem
os angolanos, também é uma das coisas trazidas pela Independência.
Imagino que a Administração viva uma grande luta, até parece que se
constrói durante a noite, na orla marítima. Muita coisa está a mudar.
No tempo colonial, mesmo na Canata, eu vinha ao Lobito e ficava em casa de
um tio, uma casa com cobertura de capim. Hoje é tudo construções definitivas. O
Governo tem de ordenar, cuidar do ordenamento, adiantar-se nas infraestruturas,
no saneamento, criando escolas, hospitais, campos desportivos, residências para
o funcionalismo público, até definir a arquitectura para cada área. Mas vai ser
necessário efectuar demolições, há uma grande anarquia também.
De entre as duas grandes empresas do Lobito, o Porto do Lobito e o
CFB, qual delas era mais importante e da qual os trabalhadores eram mais
vaidosos?
O Caminho de Ferro de Benguela é uma empresa muito grande. Organizou-se de
forma a ser quase um poder dentro do poder geral. Tem, por exemplo, terrenos
que nunca mais acabam. O Porto também tem terrenos, mas não se aproximam aos do
CFB. Naquele tempo, quando concluí a quarta classe, na Missão Católica da Hanha
(Cubal) pensei em ser escriturário no CFB. Bastava olhar para o uniforme, o
boné… pareciam os trabalhadores mais importantes do mundo. Eles tinham lojas
próprias, o Comboio Pagador, o Comboio do Víveres, hospitais próprios. As suas
centrais hidroeléctricas, ainda que pequenas…
Vindo para os dias de hoje, quando a quarta classe já não garante o lugar
com que sonhava, como vê o ensino hoje?
Sabe-se que o parque escolar ainda não alberga todas as crianças em boas
condições. Hoje temos de escolarizar toda a gente, precisamos de colocar todas
as crianças em escolas normais…
Mas como é lidar com o aluno de hoje? O senhor tem uma larga experiência na
direcção da Educação…
Hoje não é possível fazer-se comparações com o passado, ir buscar o estilo
de criança de há quarenta anos. O contexto está mudado, é outro. Por outro
lado, terá de se exigir uma preparação, ou consciencialização dos mais velhos,
pais, tios, etc. hoje, estas crianças “rebeldes” demais com que lidamos
nasceram sem vícios, aprenderam tudo com a sociedade. Não teremos nós, os mais
velhos, de rever a nossa conduta? Temos sim. Deveria haver uma escola paras os
pais. As crianças, hoje fugimos delas porque não as preparamos
convenientemente. De manhã saímos e vamos ao serviço, depois, quando voltamos,
pomo-nos a ver televisão e nem buscamos tempo para conversar com os nossos
filhos. Entretanto temos o hábito de mostrar que somos homens, somamos
casinhas… estamos a fabricar uma juventude difícil.
A escola tem de ser potenciada, falta-lhe qualidade, tanto nas instalações,
algumas, como no pessoal. Os professores, os ajudantes. Há educadores que se
expressam mal, mal preparados. Vê-se nos concursos públicos. E temos gente
superior que não sabe um ofício. A escola está fraca, não está a formar bem,
mas a culpa, obviamente, não é das crianças, nem dos jovens.
Disse que gosta de desporto, praticou alguma modalidade?
Já fui de tudo… agora sou mais de um clube pequeno, fui por muito tempo um
dirigente desse clube, na modalidade de andebol, o Electro do Lobito. Dos
grandes, como já disse, sou do 1º de Agosto, em basquetebol e sou, por causa da
ligação, em miúdo, com um professor que me moldou, desde a segunda classe, do
Benfica de Lisboa. Com dezassete anos, quando estudava no Magistério, eu
chorava com as derrotas do Benfica. É assim a clubite…
Aos dezassete anos é idade de namoro, e se havia lutas entre Benguela e o
Lobito por causa das moças, afinal, as mulheres mais bonitas estão em Benguela
ou no Lobito?
As negras, retintas, as mais bonitas, sem dúvidas, estão no Lobito. A
mulher do Lobito é muito bonita. Em Benguela as mais bonitas são as mestiças.
E as negras do Lobito mantêm o umbundu na cidade?
Um dos males da colonização foi o assimilacionismo. O negro tinha de
aprender a falar, a andar, a comer, etc., como o branco. Na verdade, as outras
potências coloniais foram segregacionistas, separavam, Portugal, misturou-se,
talvez por ser um país pequeno e que era uma potência colonial. Esta mistura
com o colono faz-nos viver em prédios, mas levou-nos também a não gostarmos da
nossa cultura. Para a cultura, a língua é um instrumento muito importante.
Quando tinha catorze anos e estava no Magistério, havia lá gente de toda a
Angola. Quando lá cheguei percebi que era proibido falar as nossas línguas,
apenas o português era permitido… ou levávamos porrada. Aprendemos que o
positivo, o bom era o português ou quem falasse português. O contrário estava
mal. Havia tristeza, humilhação, houve gente a mudar ou modificar o nome. O
padre mostrava imagens da Hanha, com as nossas gentes e era uma gozação comigo,
tal que passei a assinar Lino Passagem. O me nome é Lino Passassi, que por
acaso significa passagem.
Lembro-me de um episódio em que, com alguns colegas fomos a uma loja
comprar relógios, era fiado. Fomos com umas meninas de Benguela. No relojoeiro,
um colega, Tchiculupiti, ao ditar o seu nome para o lojista anotar, dizia Marcelo
e depois, por causa das meninas, dizia Tchiculupiti em surdina, quase
inaudível. Mesmo para as meninas ficava mal andar com um rapaz com nome
“atrasado” na nossa língua. Hoje não há disso, os nossos filhos vêm estes nomes
como normais, vão dando estes nomes aos seus filhos. Também se está a promover
o ensino das nossas línguas, embora haja ainda gente com a tal vergonha.
Mas a língua portuguesa já é nossa também, e é importante para a união do
país, une kwanhamas, umbundus, kimbundus, etc., é importante para o comércio e
para a política. Mas temos de criar uma personalidade linguística forte,
veja-se como um angolano que lide com brasileiros lá ou cá, em pouco tempo já
fala como eles. Temos de falar com o nosso sotaque. Não é proibido termos o
nosso sotaque. Não o podemos perder. Aliás, falar bem é outra coisa, há
portugueses que falam muito mal a língua portuguesa.
0 Deixe o seu comentário:
Enviar um comentário