Nessa onda de fabulosos dinheiros e sonhos, estive a pensar no que faria
com pelo menos 2 milhões (não de massaroca, que a minha mãe nunca
foi de produzir "milhinhos", mas "milhões" mesmo, vezes sem
conta arrumados em sua despensa)…
Pois, continuando, com 2 milhões de dólares eu tomaria um banho de perfume
e pela primeira vez (última também, espero) me punha num fato e gravata para ir
ter com o meu patrão. Enchia o peito de ar, pigarreava, coçava a barba,
agarrava num frasco de desodorizante e pulverizava as notas que tivesse no meu bolso,
tossia com um pouco mais de classe, dizia-lhe para estar à vontade no seu
próprio gabinete e, pronto, inaugurando a era de libertação íntima no uso de palavras, abrir-me-ia ao que vinha:
“Como sabe, muito poucos entre nós podem dar-se ao luxo de escolher. Tenho
a si como tenho vizinhos, amigos, alguns familiares, ex-patrões, enfim, por casualidade,
que no meu caso está mais para fatalidade. Seu rosto lembra-me a quantidade de
sapos que venho deglutindo, quantos deles indigestos, desde os meus quinze anos,
quando o sustento dos estudos e a lei do estômago me atiraram ao mercado do
trabalho, qual Daniel à cova dos leões, chamando a um qualquer mortal de chefe.
Hoje, venho mui respeitosamente, diria mais simbolicamente, declarar-me
independente. Tenho com que viver para o resto da vida, e mais, para ser seu
colega enquanto entidade ou engatatão para secretárias. Me esquece, ouviu?!”
A entidade patronal, ou a pessoa que a representa porque, como diz o outro,
as instituições não existem como tal, haveria de me olhar com perplexidade, pondo
em causa a minha saúde mental. Só que tudo isso estaria já previsto, bastando
dizer:
“Imagino como me inveja esta liberdade, pois tudo o que o senhor pode estar
a imaginar é espetar-me faltas, comunicar aos maiorais para um processo
disciplinar, um corte, mais um ou menos um, como de costume. Poupe-se de cansar a
mente, que o passe já o entreguei ao efectivo da segurança, que por sua vez
acaba de me passar o curriculum vitae, sabe-se lá como ficou a saber da minha nova
condição, está a ver?!”
Nesse instante, eu aliviava o nó da gravata, marcava uns passos porta afora,
fingia ter esquecido algo, voltava a entrar e atirava a gravata e o cinto (esse
maldito simbolizando o lado carrasco do desenrascanço) para o balde de lixo. “Receba-me
o vento”, gritaria.
No dia seguinte, recrutava algumas bocas de aluguer, elevando bem alta a tenção
de instituir a preguiça como um direito fundamental para mentes criativas, num
qualquer enquadramento com a nova Lei do Mecenato. A minha casa transformava-se
imediatamente em estação de rádio, com estúdio especial emitindo a partir do
conforto da minha cama. Pronto, são ideias. Ou seja, estou já acordado?
Oh, caramba!, estou atrasado para o serviço, nem tempo para o matabicho resta.
O carro, vigésima mão da Europa, está avariado, quer dizer, já só falta ir busca-lo
à oficina; mas como, se o salário só cai uma vez por mês? Ainda por cima, não
há água na torneira, foi-se outra vez, ao passo que o gerador não permite engomar o
uniforme.
Gociante Patissa, Aeroporto Internacional da Catumbela, 28 Julho 2013
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