«Os mestres mentem, todos eles. O pedreiro não entrega no prazo
acordado; o mecânico tem sempre uma desculpa; o canalizador, tirando proveito
da semelhança nas duas primeiras sílabas, faz-se canalha perfeito; o
electricista é outro a quem é arriscado confiar, tão arriscado como seria pôr a
mão no fogo pelo ladrilhador ou pelo pintor, enfim... Será que devo mesmo
voltar à escola para o mestrado?», lia-se.
Lágrimas molhavam o sorriso do velho Jornal (que por acaso caminhava
para a terceira idade). Acabava de abrir o envelope, mas mantinha escancarada a
caixa postal 208. Tinha o estranho hábito de só trancar a portinhola depois de
lida a carta, como se, por eventual desgosto, conseguisse devolver a
correspondência com o gesto mecânico de enfiar o papel e girar a chave em
tácito trejeito de «assunto encerrado!»
Do discreto guichet, a funcionária dos CTT (que o falecido velho
Cimuku decifrava, com saudável malandrice, como sendo Continua Tudo Torto) via
tudo, no silêncio que exigia o amontoado de emoções, quiçá, contraditórias.
Abrir ansiosamente o apartado ao tilintar do porta-chaves, levar o correio ao
peito, lacrimejar, gestos vagarosos. Era sempre um pequeno evento cada visita
do velho Jornal aos Correios. Era semanal. Mudavam-se os selos, as datas dos
carimbos de entrada e saída, mas dois elementos eram inalteráveis: o remetente
e o receptor.
Velho Jornal proibira, terminantemente, sublinhe-se, o filho de usar
outra via, que não fosse o correio postal e a respectiva escrita à caneta,
durante os cinco anos que o levaram a viver em Coimbra. A própria ida à Europa,
pelas poupanças de alfaiate suportada, era faísca para intermináveis
introspecções. Teria valido a pena a independência se, pouco menos de
meio-século depois, temos que mandar os filhos aos paradigmas que um dia
combatemos? Enquanto as respostas tardavam, já no mercado do trabalho, a
concorrência era (e hoje, ainda mais do que ontem) rija.
Como não é de um mestre traçar caminhos, mas tão-só tricotar o
reverso das escolhas, velho Jornal não se opusera a partida. O que fez foi
traçar o que ele chamava de Mapa do Luar. Era, se me permitem a simplificação,
uma circunferência irregular a preto e branco, com intersecções e
convergências, qual labirinto, acrescida de palavras dispersas, mas não
desconexas de todo, que bem se podem dispor assim:
Era
nosso o luar
Fértil e certo
Como as cores possuem o pincel
Depois
À ordem do fogo
Corremos
O
asfalto engoliu a parábola
Nós com ela
Desnudos
O
que resta de nós
Salvos da guerra
São ocas essências de carne
De
tão iguais, perdemo-nos
As correspondências com o filho visavam manter os debates de aquecer
o lar no cacimbo de Menongue, a capital da província do Kuando-Kubango. Na
intemporal concepção de Jornal, a língua é que não se deixa ser estática. Uma
combinação de símbolos, vendo bem, tem cores demais, para se deixar apanhar em
uma só tonalidade. As palavras são cores em movimento, em certa medida.
Todavia, estas mesmas palavras seriam sem alma, se lavadas do barro com que
fossem colhidas.
Seu
filho, agora homem com o nome gravado em diploma conimbricense, sabia alegrar
as expectativas do pai, que lhe vivia lembrando que a universalidade não era
algo insipido mas, antes, um encontro de identidades; que nós não chegaríamos
lá nunca, enquanto a nossa missão fosse partilhar o nosso vazio interior.
E ao tomar contacto com tal medular correspondência, velho Jornal
usava do faro para garimpar o filho, auto-revelado como ente que se conhecia
semente de uma África que respira, antes de se colher na lavoura da cosmovisão.
Divisado isso, acreditava justificarem-se as lágrimas que embaciavam os óculos
graduados.
«Os mestres mentem, todos eles. O pedreiro não entrega no prazo
acordado; o mecânico tem sempre uma desculpa; o canalizador, tirando proveito
da semelhança nas duas primeiras sílabas, faz-se canalha perfeito; o
electricista é outro a quem é arriscado confiar, tão arriscado como seria pôr a
mão no fogo pelo ladrilhador ou pelo pintor, enfim... Será que devo mesmo
voltar à escola para o mestrado?»
Ora, nesse parágrafo, que abre o conto em suas mãos, Jornal
interpretava que o filho tinha tido êxito no curso de licenciatura e que pedia,
por merecer, autorização para permanecer na Europa pelo mestrado; que, passasse
o tempo que passasse, continuava identificado com as virtudes e defeitos da sua
sociedade. Um patriota!
Velho Jornal tinha a mania de acreditar que o belo, antes de se perder
pelo mundo, brotara do seu quintal aonde, ainda segundo suas absolutas sugestões,
acabará por regressar para respeitar a lei da vida, que é incompleta sem a
morte. E por assim ser, dedicava a cada dia alguns minutos ao mais florido
cantinho do quintal. Cruzava as pernas com um livro na mão. Não era um canto
qualquer, tratava-se de um com vista privilegiada. Pela janela, via-se do lado de
dentro uma estante. O orvalho a escorrer pela vidraça dava a impressão que os
livros andavam muito bem conservados num frigobar. É nessa altura em que lhe
vinha à cabeça a alegria de camponês que completa o ciclo com um escoamento
eficaz. Nesse instante, dava um gole, entornava um pouco para regar o chão e
acreditava que, na manha seguinte, estaria a nova poesia a germinar. Talvez no chão,
talvez num qualquer pregão. Apenas algo menos bom: era como se fosse inorgânica
a poesia que do seu canteiro não nascesse.
Certa vez, criticado por investir horas no isolamento, escreveria para
o filho: «Pelos livros, é uma viagem sempre boa... ainda por cima, sem risco de
acidentes. Aliás, só pode ser doentia a sociedade que estranha o isolamento, a ausência.
A colmeia é, afinal, a soma do que cada abelha leva ao colectivo. Portanto, não
pode ser saudável a regularidade enquanto ser social, descurando da auto-descoberta
no espaço singular. Ou passamos a ser iguais e, de tão iguais, perdemo-nos.»
Pronto, Jornal acreditava ser um mestre dos seus, só que… disso não
passava.
Gociante Patissa, in «Fátussengóla, O
Homem do Rádio que Espalhava Dúvidas» (pág. 77). GRECIMA. Programa Ler Angola.
Luanda, 2014