Nunca mais quis ou pude ter cães. Aos
que amei ao longo destes anos, foi por afinidade. A única cadelinha que
verdadeiramente me pertenceu chamou-se Estrela. O brilho dos olhos dela
evidenciava suficientemente a beleza das quatro patas, parecendo-se mesmo,
vista de frente, com estrelas que as crianças guardam no céu para servirem de
brinquedo em noites de calor. Era fêmea, criança, baixinha, acastanhada,
brincalhona, obediente.
Ganhara-a de um primo que dela se
queria livrar, no que se pode considerar um dos mais memoráveis passeios da
adolescência, com a diferença de o destino ter sido apenas o bairro da Kanata,
duas horas a pé de casa. Tinha catorze anos, que pareciam menos, dada a pouca
altura que me era característica até aos dezanove anos e o curso de pedreiro no
IED[1].
O que disse é uma verdade passível
de desiludir o Stick, cão lá da casa de minha mãe, que não faz outra coisa
quando me vê, a não ser pular e sujar-me a roupa toda. Só mesmo o Stick, com
aquele carinho (sobejo mas sincero) de saudades. Por sorte, os cães não sabem
ler — ou ao menos, como ironizaria
certa poetisa, não todos.
Como já confessei numa crónica
parida algures em 2010, tive infortúnio com cães, um pouco por culpa da noite.
O sangue sob a roda confirmava. Era o cão da vizinha, que eventualmente
procurava aconchego nos restos do calor do motor.
— Matou, assacou em baixo da roda!!!
— acusavam as crianças, como se não se tivessem distraído, elas também, pelo
brotar do luar e as brincadeiras de quem chama o apetite para jantar.
Nada mais havia a fazer, além de
seguir para a escola,
enquanto a sobrinha e outros jovens da casa ao lado cuidavam do resto. É que já levávamos uns quarenta minutos de atraso. Ficava para o fim das aulas a conversa com a ama do Bruninho, como era carinhosamente chamado (no entanto tratado como a maioria dos considerados rafeiros, protegidos pelo acaso e co-alimentados pela rua).
enquanto a sobrinha e outros jovens da casa ao lado cuidavam do resto. É que já levávamos uns quarenta minutos de atraso. Ficava para o fim das aulas a conversa com a ama do Bruninho, como era carinhosamente chamado (no entanto tratado como a maioria dos considerados rafeiros, protegidos pelo acaso e co-alimentados pela rua).
— Assim o tio não vai na cadeia? —
indagava Nair, sobrinha de cinco anos. E logo cuidei de esclarecer que o tio
não atropelou de propósito e que, como devia ser, lugar do cão era em casa, não
na estrada; que o tio não iria responder, por não se tratar de vida humana.
Outra questão soou-me à condenação pública:
— O tio também já não gostava do
Bruninho, né?! — A resposta objectiva foi afirmativa, pois ela me vira
recorrentes vezes a enxotá-lo, sem que isso significasse motivo para o que
aconteceu. São as tais analogias pueris, justificáveis por isso mesmo.
Havia um cão no quintal em que em
tempos fui morar, nessa busca solteira de anexo módico, que me recordava o
Bruninho. Tinha cor preta, malcheiroso e com a mesma vivência. No outro dia,
dei por ele a sair, envergonhado, da minha cozinha, onde achara saco de lixo
com restos. Não tive forças para o condenar —
não que assumisse o desleixo de ter deixado a porta aberta, mas por o
compreender de certo modo.
Numa bela semana dos dois anos do
meu convívio parcial com aquela família, constatei uma situação de afecto
colectivo pelo cão, talvez a maior mesmo. Tinha sido atropelado, quebrando uma
pata e causando ferimento à outra. A sangrar desesperadamente, era de um
silêncio inusitado. Nem só um chiado. É como aquele mito dos humanos que diz
que quando se chora muito, é porque o choque é mínimo. Umas vezes deitado no
quintal, outras no corredor do beco que dá para a casa, o cão vivia uma pacatez
moribunda. E não era para menos, conforme se veio a ver. A pata engessada
infestara-se, a outra fedia que nem uma coisa doida, rompendo-se algo que me
parecia ser sutura lá do veterinário.
Quando acordei, algumas manhãs
depois, vi-o num estertor que me fez pensar por uns instantes se uma eutanásia
não seria a mais assertiva saída para aquele ser impotentemente vivo. Saí para
matabichar. De regresso, os jovens da casa escovavam do chão a porcaria do
doente. Para onde fora o cão, nem quis perguntar. Desconfio que terão feito a
ele o mesmo que à minha Estrela, comparação de todo o modo injusta, quiçá,
se tivermos em conta que a minha cadelinha não chegou a adoecer, mas fora
abatida juntamente com dois outros cães adultos de casa... para agradar um
vizinho que se queixara de roubo.
Se calhar, o erro foi meu, por
querer ter uma estrela para mim, ainda tão pequeno no mundo dos adultos, quando
elas foram feitas para as termos à distância, no palco ou no céu.
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