Santa Cruz
ajusta-se à coreografia da máquina. Muito do que era do bairro, hoje é de alguém.
Sorte a nossa que a poeira seja impossível de privatizar. Graças a ela, agora
menos umbilical e com mais salitre, dá para colher o tempo, polido pelos
sentires e dizeres daqui. Um destes caminhos era o do «avô» Batalha, que andava
literalmente com a bicicleta na bíblica rotina «casa-trabalho-casa».
Batalha, promovido pela força
dos brancos cabelos a avô (da comunidade inteira), foi, até finais da década de
noventa do século vinte, o segundo bakongo mais famoso (há quem o ache cokwe),
somente suplantado pelo professor Carlos. Este último deleitava a criançada com
a sua pronúncia algo franco-abrasileirada (ass bananass… ass crriancasss). Já
volto a falar do velho Batalha e sua misteriosa bicicleta, mas desconfio que
você se estará a indagar se não há protagonismo feminino na história do meu
bairro.
Abro, então,
parêntesis para partilhar dois casos (talvez os mais representativos). Quando
conhecemos a «tia» Isa, já ela andava metida na yula. Explico: toneladas de
produtos alimentares do exército eram desviadas pela madrugada e
comercializadas em residências com quintais insuspeitos, estrategicamente
seleccionados dentro de um circuito. Calhava de vez em quando um ou outro
flagrante, logo cadeia para o dono da casa, nunca tendo ocorrido com ela nem
com o marido, de longe menos famoso. Conta-se que certo garoto foi fazer
traquinices no território da Sra. Isa, que atirou:
– Você foi educado
no sovaco da tua mãe!
O insulto
rapidamente chegou aos ouvidos da mãe do ofendido, que não tardou em ir
pessoalmente devolvê-lo, trazendo cá para fora uma parte nebulosa do passado da
endinheirada:
– Mana Isa, quem
és tu para me insultares?! Nós te vimos chegar, andavas aí a esmolar guelras de
peixe… Ou já esqueceste o kalulú de sardinha? – tergiversava, sarcástica e
triunfal, ao pronunciar a palavra sardinha, conotada com miséria, por causa do
seu baixo valor comercial.
Outra mulher,
entre as grandes referências lá na banda, é a tia Esperança. Todas as pessoas
podiam ter cães, que ninguém se incomodava com isso. E esses cães podiam mesmo
ser agressivos, ninguém ligava, desde que não fossem dela.
Gociante Patissa,
in «Fátussengóla, O Homem do Rádio que Espalhava Dúvidas» (pág. 89). GRECIMA. Programa
Ler Angola. Luanda, 2014
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