segunda-feira, 3 de novembro de 2014

(arquivo) Contos da nossa Terra| QUANDO O LEÃO TEMEU O FIM DO MUNDO

foto de autor não indentificado
Como a estação chuvosa tinha sido fraca, a aldeia vestia-se de carência. Pirão de milho ou de bombó à mesa? Quanto luxo! O povo comia mesmo era pirão de batata-doce, jocosamente conhecido por alcatrão, dado o tom castanho torrado.

Para piorar as coisas, o frio tem o hábito de tornar a rama (folhas de batateira) amarga, de sorte que pouco sabia para conduto. De mal a mal, O caudal do rio andava perto de seco, tornando impossível a pesca continental. O talho do velho Mango até tinha alguma carne, mas só para os abastados, nada tendo de valor os aldeões comuns com que permutar.

Entretanto, é em tempos difíceis que os actos de bravura mais se evidenciam. E para desafiar a crise, lá os homens todos da aldeia decidiram realizar a caça colectiva. Uns ateavam fogo ao capim, outros agitavam os animais escondidos, enquanto os demais empunhavam flechas e azagaias, ajudados por cães – cujo tributo não passava de osso limpo e míseras tripas, quando sobrassem. A carne devia ser repartida em iguais porções. Festejava-se cada regresso, não tanto pela quantidade, mas porque a aldeia via na caça uma escola de transmissão de valores e costumes entre gerações.

Mas houve alguém que achava que, caçando só, mostraria mais valentia. Além do mais, como não teria que dividir a carne, mesmo que abatesse um só coelho, bem chegaria para uma refeição com a família. Chamava-se Kameia. Foi então que, em mais um dia de caça, Kameia foi espreitar na sua “etambo” (cubata dos espíritos) para agradecer aos antepassados. Deixou lá ficar uma bola de pirão e, já cumprido o ritual, seguiu.

A mata estava mais calma do que o habitual, só os pássaros ofereciam a sinfonia natural ao vento. Não se viam borboletas. De repente, Kameia ouve um barulho, olha à sua volta e vê um tigre. O bicho procurava escapar da perseguição de um leão que estava decidido a matar o inferior hierárquico para não morrer a fome. O caçador, em pânico, não acabasse ele em ementa para os bichos, agarrou-se à mais alta das árvores ali perto. O tigre, desesperado, fez o mesmo. Só depois de atingir o topo, o tigre notou que um pouquinho abaixo estava um homem agarrado a um galho. Como o leão não podia trepar, deitou-se ao pé da árvore, certo de que o cansaço e a fome fariam a presa descer.

Depois de se acalmar, o tigre concluiu que, fazendo cair o homem, o problema do leão estaria resolvido. E começou a pisá-lo na cabeça, cada golpe mais violento que o outro. Mas o homem tinha o medo para resistir. Enquanto isso, o leão, sem pressa, já lambia os bigodes antecipadamente, imaginando o bom apetite que teria ao degustar o tigre.

Cada vez que olhasse para baixo, o tigre empurrava com mais força ainda o caçador que, em retaliação, cortava o galho onde estava pendurado o tigre. A cena repetiu-se até que o galho cedeu. Caíram o galho, o tigre e o Kameia para o chão. Tão grande foi o estrondo da queda, que o leão julgou tratar-se do fim do mundo. Inconsciente, desatou a fugir. Mas não fugiu só ele, fugiram também o tigre e o caçador.

Moral: Para cada corajoso, o seu medo.
Adaptação de Gociante Patissa, recolha do meu kota (irmão mais velho) Amós Patissa. Publicado inicialmente no Boletim “A Voz do Olho” Veículo Informativo, Educativo e Cultural da AJS (Associação Juvenil para a Solidariedade). Lobito, Dezembro/2007
Share:

0 Deixe o seu comentário:

A Voz do Olho Podcast

[áudio]: Académicos Gociante Patissa e Lubuatu discutem Literatura Oral na Rádio Cultura Angola 2022

TV-ANGODEBATES (novidades 2022)

Puxa Palavra com João Carrascoza e Gociante Patissa (escritores) Brasil e Angola

MAAN - Textualidades com o escritor angolano Gociante Patissa

Gociante Patissa improvisando "Tchiungue", de Joaquim Viola, clássico da língua umbundu

Escritor angolano GOCIANTE PATISSA entrevistado em língua UMBUNDU na TV estatal 2019

Escritor angolano Gociante Patissa sobre AUTARQUIAS em língua Umbundu, TPA 2019

Escritor angolano Gociante Patissa sobre O VALOR DO PROVÉRBIO em língua Umbundu, TPA 2019

Lançamento Luanda O HOMEM QUE PLANTAVA AVES, livro contos Gociante Patissa, Embaixada Portugal2019

Voz da América: Angola do oportunismo’’ e riqueza do campo retratadas em livro de contos

Lançamento em Benguela livro O HOMEM QUE PLANTAVA AVES de Gociante Patissa TPA 2018

Vídeo | escritor Gociante Patissa na 2ª FLIPELÓ 2018, Brasil. Entrevista pelo poeta Salgado Maranhão

Vídeo | Sexto Sentido TV Zimbo com o escritor Gociante Patissa, 2015

Vídeo | Gociante Patissa fala Umbundu no final da entrevista à TV Zimbo programa Fair Play 2014

Vídeo | Entrevista no programa Hora Quente, TPA2, com o escritor Gociante Patissa

Vídeo | Lançamento do livro A ÚLTIMA OUVINTE,2010

Vídeo | Gociante Patissa entrevistado pela TPA sobre Consulado do Vazio, 2009

Publicações arquivadas