segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Em linhas tortas (19)

Vivemos tempos de inquietação social em função da austeridade, sobretudo pela incerteza do que está para vir desta névoa chamada crise económica e do impossível acesso às divisas (que já mandou muita gente ao desemprego). A realidade mostra que somos uma sociedade de contrastes, paradoxal mesmo, com cidadãos ao mesmo tempo passivos e controladores. Ou seja, em termos de participação, quando intervenções directas de advocacia assim recomendariam, a adesão é pouca. Mas ao mesmo tempo quando é para defender a angolanidade (quase sempre de base moral, sem pôr de parte valores e tradições culturais nem sempre bem apurados), aí já somos rápidos a emitir opiniões no espaço público e informal. A título de exemplo, insurgimo-nos contra uma eventual aparição indecente de um cantor em palco ou em vídeos, mas fechamos os olhos se este mesmo cantor, na condição de automobilista, atropelar (mortalmente) um peão e não assumir as suas responsabilidades. Quanto ao estado de opinião e comentários, lidera o anúncio recente do secretário-geral da Assembleia Nacional, que desenganou a todos quantos julgassem estar fora de questão (uma vez que aos patriotas tem sido apelado o aperto dos cintos) a atribuição de viaturas de luxo de marca Toyota Lexus aos 220 deputados. O anúncio, sob o ponto de vista do impacto da sua comunicação, não podia calhar em pior altura. Justamente na véspera do arranque de um ano lectivo de lamentações, com tantas escolas em risco de ruir e/ou sem carteiras, a par da seca no município do Caimbambo, em Benguela, que viu cidadãos morrerem por falta do que comer. A indignação social, que não tem obrigações de consultar leis, não se fez esperar. A figura do deputado anda numa desvalorização pior que a da moeda nacional, o kwanza. Ontem, na TV Zimbo, os comentadores Gildo Matias e Paulo Nganga convergiram no quanto não se deve estabelecer o paralelismo entre as mordomias dos deputados e demais servidores públicos com os demais quadros e sectores, pois, entendem, trata-se de um falso problema. Em sua visão, quem ganha bem deve assim continuar, porque é reflexo da responsabilidade da função. Os que ganham pouco, isto já é outro problema que deve ser visto, o da assimetria social, em busca da equidade. Falaram da autonomia financeira e do poder discricionário da assembleia quanto ao que fazer com o orçamento que lhe cabe, não havendo por isso a obrigação (moral, acho eu) de se alinhar com o repto patriótico de cortar no supérfluo. Numa coisa sua excelência eu está de acordo com a dupla, a nossa legislação (por norma cópia de Portugal) anda desfasada da realidade. Afiançar que o deputado tem mais responsabilidade do que um professor, um enfermeiro ou um agente da polícia, parece escoriar o bom senso. O que se entende afinal por responsabilidade? Enfim, para não se julgar que não oferecemos soluções, aqui vai uma ideia disparatada. Se do ponto de vista da lei se está a estudar a possibilidade de autorizar a importação de viaturas usadas que tenham no mínimo cinco anos de vida, deduz-se que o estado reconhece haver condições de segurança óptimas para o utente e a via pública. Ora, se já na legislatura passada houve a doação de 220 Lexus, gosto que não se pode descartar porque “queremos fidelizar a marca”, como advogou o secretário-geral do parlamento, que tal fazer um inventário do activo? A questão é de lógica. Se as viaturas são dadas a título oficial (e não para uso e abuso para fins pessoais), logo pertencem ao Estado angolano. Ora, considerando que muitos dos deputados foram “reconduzidos” e são elegíveis para receber Lexus, então que se recolha a frota da legislatura de 2012 e seja revendida. O dinheiro que seja investido no hospital sanatório anti-tuberculose. Senão qualquer dia temos uma sociedade que perdoa o assassino mas tem nojo do deputado, que diz representar um povo cujas dores não veste. Ainda era só isso. Obrigado.

Gociante Patissa | Benguela, 22 Janeiro 2018 | www.angodebates.blogspot.com
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