quinta-feira, 5 de maio de 2016

Partilhando leituras | TRECHO DO CONTO «AS FAÇANHAS DO SOBA MIGUEL»

Cheguei a ver o soba Miguel no papel de juiz, no último quinquénio do século vinte, num diferendo que evoluíra para agressão corporal com pontapés (qual guarda-redes e a bola) em recém-nascido. Tudo começou quando o jovem Welema resolveu assumir os dois meses de gravidez que o Ukuma depositara na barriga da jovem Senje, sem no entanto se apresentar. Welema convenceu a mãe da Senje, contra a vontade de um tio desta, porém não levado a sério, e plantaram morada em Luanda. O nascimento do bebé implicou vários gastos com assistência médica, quase levando à morte a parturiente, ela que caminhava no prumo entre a adolescência e a juventude propriamente dita. Dizia-se que era por causa de olondalu[1]. Quando o casal Welema e Senje regressou à terra de origem, ouviram-se pelas esquinas bocas mil, segundo as quais Ukuma reclamava a paternidade do filho e o direito de arranjar um chará (geralmente nome de um familiar) para ele. Isso nunca!, contestaria Welema, julgando possuir todos os direitos sobre o bebé, já que assumiu desde cedo a gravidez e as despesas do parto. Reunidas as famílias, o soba impôs-se:
Havia três jovens que foram pedir emprego. O primeiro entrou, relatou convincentemente as suas capacidades, mas não apanhou o papel que encontrou no chão. O segundo apanhou o papel da porta, mas ignorou outro que encontrou na sala. O terceiro, que tinha um pouco menos em termos de capacidade, recolheu os papéis que estavam no chão, e ficou com o emprego. O que você fez, ó pai, é falta de respeito. Não se engravida menina de família, sem assumir, e ainda sair por aí a anunciar que alguém está a sustentar nosso filho.

Nesta lógica, além de perder o direito sobre a criança, o jovem Ukuma, órfão de pai, foi obrigado a pagar em dinheiro uma multa que só por milagre conseguiria.

Gociante Patissa, in FÁTUSSENGÓLA, O HOMEM DO RÁDIO QUE ESPALHAVA DÚVIDAS, 2014. GRECIMA, Luanda. Programa LER ANGOLA.
 
PS: Livro disponível a quinhentos kwanzas na livraria Texto Editores em Benguela e rede KERO nas províncias em que estiver implatada.

[1] Acredita-se que seja doença resultante de promiscuidade dos cônjuges durante a gravidez.
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