Naquele
ano os cafezais do norte tinham florido fora do comum. Os fazendeiros
esfregavam as mãos de contentes, antevendo colheita
abundante, com terreiros cheios de café cereja a secar, para meter a descasque.
(…)
Às
sete horas da manhã de certo dia apareceu no terreiro de determinada roça uma
mulherzinha com o filho às costas e levava na mão uma cabacinha de quissangua
[refresco feito de fuba]. Dirigiu-se ao capataz do grupo das mulheres para lhe
pedir dispensa do serviço nesse dia por ter o filhinho doente há mais de dois
dias. O capataz negou-lhe a dispensa e marcou-lhe a tarefa habitual, de
enchimento de uns tantos cestos de café cereja. A dureza com que a ordem foi
dada não permitiu recusa da mulher habituada como outras a ver como eram
tratadas em caso de desobediência. Com o filho a escaldar em febre, manteve-o
nas costas e foi colhendo bagos com maior ligeireza, na tentativa de abreviar o
tempo da empreitada. As horas correram. De vez em quando desapertava o pano de
pintado para verificar o estado da criança que amolentada, respirava
custosamente pela boca. Retomou a tarefa. Seriam cerca de treze horas quando,
de novo, desamarrou o pano. Puxou o pequerrucho para o peito. Tinha os
bracinhos descaídos, os olhinhos semicerrados, a boca entreaberta, o corpo
inerte e frio. Tinha sido levado pela morte. E aquela mãe ao descobrir que fora
despojada do ente querido das suas entranhas, entrou em pranto próprio da
mulher africana que, quando dorida, não tem as pragmáticas dos chamados
civilizados como se para enfrentar a dor humana seja preciso estudar pelos
códigos da etiqueta e civilidade. Aquela mãe estrebuchou pelo chão e as
companheiras de trabalho, ao ouvi-la chorar, correram em seu socorro. E o
pranto contagiante estendeu-se a todas aquelas mulheres, mães também, servindo
à força naquelas plantações de café de suor, dor e morte.
Só o
capataz preto, industriado para sacrificar seus irmãos de cor em benefício do
capitalista, se manteve insensível à desgraça em que tinha quota parte. Boçal
com alma de escravo, não passava de pau-mandado naquela triste época em que os
paus-mandados tanto podiam ser pretos analfabetos como brancos componentes da
rede administrativa a impor trabalho sem horário com salário de fome.
Raul
David, 1989, pág. 55. In «Crónicas de Ontem – para ouvir e contar». União Dos
Escritores Angolanos. Luanda, Angola.
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