domingo, 1 de maio de 2016

Crónica | É saber não chorar

Toda hora mesmo é hora de morrer, menos só doze horas. Falam que é sagrada, ninguém nasce nem ninguém morre doze em ponto. Deve ser por causa de comer. Mas, meu irmão, minha irmã, eu é que te falo. Há muitas ruas de passar se você quer sair da cidade para os bairros do Cavaco, tipo assim Cihõsi ou Masangalala, mas evita só a rua do IMS. Se você assim encontra carro parado, já sabe, deu entrada família na morgue. A morgue é uma casa da esquina, você até nem dá conta se ninguém te fala, é terra batida e com poeira. Dizem que está cheia. Que corpo já não é corpo, que há fila para caber na gaveta. Eu só vou entrar lá quando chegar a minha vez, também já não falta muito. Essas transfusões de sangue, cada semana só, me matam. É preciso coragem para não ir lá, porque os outros ainda falam morgue é castigo. Que as famílias têem que saber que chorar muito, dar cabo do silêncio da cidade, não resolve, não enterra os mortos. Que assim mesmo a tua criança abriu a boca pela última vez, enfermeiro já chama, tipo não viu nada grave. Quem é a mãe ou família da fulana. Vocês já não respondem estamos aqui? Enfermeiro fala eu preciso alguém com coragem. As famílias até, como mesmo já sabem, indicam já alguém que tem espírito de ovelha. Acho que se não tem, alugam, há sempre alguém a passar caminho. Entra caladinho, amarra vosso defunto nas costas e sai tranquilo, cara sem dor. Se já arranjam kuapapata, se é kaleluya, depende só. O importante é chegar em casa e despachar o resto. Porque mínimo grito, empurram o corpo para a morgue e é aquele monte de voltas, você que já sabe que morgue não é para todos... É saber não chorar! Quer dizer, há chorar e chorar. Umas famílias que choram na garganta, outras já só depende. Ainda anteontem, você tinha que colocar abafador nos ouvidos, porque aquilo já não era gritar. Mas também, é com razão. Como é que uma mãe ainda não enterrou uma criança de dois anos, dia seguinte lhe entregam a outra de quatro que estava grave? A criança alheia que já pensava na escola estão a lhe levar no i10. A mãe só está a perguntar assim mesmo é verdade? Morreu mesmo? Mas quem é que vai responder? Haka! Assim vão fazer dois cortejos, se falam que cadáver fica 24 horas? Cada vez já não respeito mais medicamentos, só respeito a poeira, mesmo de noite ela voa, só Deus sabe o que leva de casa em casa. Falam só é febre. Mas febre afinal que sai aonde? Ainda mba é febre, ya? Hoko!...
Gociante Patissa, Benguela, 1 Maio 2016
www.angodebates.blogspot.com
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