quinta-feira, 19 de maio de 2016

Conto | Uma prenda demasiado profissional

Ó profissional, espera ainda! Gritava a mulher com alguma autoridade (ou ao menos determinação) na voz. Parei de imediato. E lá vinha ela de salientes ancas em natural coreografia. Na primeira vez que me chamaram por esta alcunha, Profissional, reagi com um certo congelamento, não sabendo se aceitava ou se rejeitava. E tive mesmo de ir a correr para o Dicionário, alcunha de um bar lá do bairro, onde professores e jornalistas gostavam de desfilar o peso de seus diplomas, regados com aguardente, vaidades e cerveja nacional, como se conseguissem pagar o que consumiam sem ser a crédito e no fim do mês. Profissional é quem vive do que faz, disse-me o primeiro. Fiquei na dúvida, dado o avançado estado de embriaguez do homem. Ora, meu caro, e disso sabe todo o gajo que um dia sentou diante de um bom professor, profissional é quem tem sofisticação no saber e nos meios para a tarefa que se propõe. E mal disse a última palavra, o segundo orador caiu em coma, pelo que fiquei sem saber se o levava a sério ou não. Aí, abordei o terceiro, dono de uma grande boca, todavia muito mal aproveitada, tão taciturno que era. Se calhar pouco perderia a mãe dele se parisse um mudo. Profissional é aquele que faz das técnicas a sua segunda natureza. Confuso, dei um soco na parede e acendi um cigarro. Porra, pá! Como é possível haver tantos tentáculos teoréticos sobre uma só palavra?
Por fim, no triângulo optei pela terceira acepção, isento embora de quaisquer imputações autorais. De maneira que rapidamente me acostumei à alcunha. O meu nome de registo, já agora não sei se o povo sabia mas também tenho, passou a ser nada mais do que roupa de casa. O cliente tem sempre razão, não é isto? Nunca mais te vi, ó Profissional!, exclamou a mulher, pronta a me dar os dois beijos socialmente previstos. Peço desculpas, desencorajei-a eu, estou a transpirar. Deixa-te de formalidades!, por acaso queres vestir as culpas pelo sol? Ah, pois, fico descansado pela compreensão. Mas também, prosseguiu ela, fazes bem: quem muito aparece… aborrece. Estás ocupado? Até, não. Venho de uma reportagem. Ainda bem, quero uma sessão agora em minha casa. Um momento, deixa ver se tenho comigo o flash. O resto não era nada que uma lente 50 milímetros e o ISO alto não resolvessem, na ausência do tripé. E pronto, confirmados os acessórios, fui com a cliente, mau grado a fome. Eram 13h00. O quarto dela era um espaço pequeno (pouco favorável para o efeito de profundidade de campo) mas muito bem arrumado, como se andasse o tempo todo à espera de ser fotografado. Com a câmara em punho, anunciei-me pronto. Despiu as calças suavemente. Ficou só de blusinha de alças e a roupa interior. Não ligues, sou peluda. Como bom profissional, mantive-me inerte. Tossi um pouco só, corrijo. Tinha uma vaga ideia do que se escondia atrás do pequeno pedaço de tecido entre virilhas. Ela deitou-se de barriga para o ar e dobrou o joelho direito. Não mais de trinta aniversários, contra cinquenta meus. Disparei a primeira. A seguir, abraçou forte a almofada mas, estranhamente, sem desviar olhar dos meus olhos. Ocorreu-me ter sentido algo em mim a ganhar volume, porém, sempre profissional, não liguei. Despiu a blusa em gesto brusco, expondo um par de cones dignos de se lhes assentar os lábios, só que os olhos de fotógrafo são bem treinados: um no visor, outro tapado para não perder o foco. No ar, o cheiro a velas, eram quatro ardendo, e a um perfume com aroma de tentação. Virou-se de costas e baixou para metade das nádegas a cintura do fio dental. Aí, trémulo, talvez de fome (porque, como profissional, outra sensibilidade que não fosse de natureza estritamente técnica não podia ser), escapou-me a máquina das mãos. Ela abraçou-me apertadinho, selou uma nuvem de batom no meu colete de trabalho e ordenou: carrega no botão. Qual deles? Perguntei. O profissional… olha que o meu pai daqui a pouco chega, e ele é amigo de catanas, cuidou de esclarecer. Apenas uma cortina transparente isolava o quarto dela do resto, cujo compartimento de entrada era a sala comum. Resgatei a máquina, quando já ia indisfarçável a saliência na braguilha, mas não perdi a pose, afinal sou profissional. Acho que está tudo. 10 mil kwanzas a impressão e o digital. E ela: Ah, a sessão foi uma prenda minha do teu aniversário...

Gociante Patissa. Benguela, 19 Maio 2016
www.angodebates.blogspot.com
Share:

0 Deixe o seu comentário:

A Voz do Olho Podcast

[áudio]: Académicos Gociante Patissa e Lubuatu discutem Literatura Oral na Rádio Cultura Angola 2022

TV-ANGODEBATES (novidades 2022)

Puxa Palavra com João Carrascoza e Gociante Patissa (escritores) Brasil e Angola

MAAN - Textualidades com o escritor angolano Gociante Patissa

Gociante Patissa improvisando "Tchiungue", de Joaquim Viola, clássico da língua umbundu

Escritor angolano GOCIANTE PATISSA entrevistado em língua UMBUNDU na TV estatal 2019

Escritor angolano Gociante Patissa sobre AUTARQUIAS em língua Umbundu, TPA 2019

Escritor angolano Gociante Patissa sobre O VALOR DO PROVÉRBIO em língua Umbundu, TPA 2019

Lançamento Luanda O HOMEM QUE PLANTAVA AVES, livro contos Gociante Patissa, Embaixada Portugal2019

Voz da América: Angola do oportunismo’’ e riqueza do campo retratadas em livro de contos

Lançamento em Benguela livro O HOMEM QUE PLANTAVA AVES de Gociante Patissa TPA 2018

Vídeo | escritor Gociante Patissa na 2ª FLIPELÓ 2018, Brasil. Entrevista pelo poeta Salgado Maranhão

Vídeo | Sexto Sentido TV Zimbo com o escritor Gociante Patissa, 2015

Vídeo | Gociante Patissa fala Umbundu no final da entrevista à TV Zimbo programa Fair Play 2014

Vídeo | Entrevista no programa Hora Quente, TPA2, com o escritor Gociante Patissa

Vídeo | Lançamento do livro A ÚLTIMA OUVINTE,2010

Vídeo | Gociante Patissa entrevistado pela TPA sobre Consulado do Vazio, 2009

Publicações arquivadas