Um
livro pode ser apresentado de mil maneiras diferentes. Na escolha de uma de
entre essas mil maneiras diferentes existe uma espécie de poder soberano do
apresentador, que se torna dono e senhor, por momentos, de algo que não fez,
que não produziu, que não criou, mas ao qual se associou na ponta final.
Se
os poetas, os romancistas, os cronistas, enfim, os escritores genericamente
falando, não fôssemos essa fauna de absolutos geradores de emoções e tecedores
incansáveis de laços de agregação e união, poderíamos ter casos em que um
apresentador desanca sobre o dono da obra, ou seja, aquele que queimou
neurónios, extremou os limites da paciência e enfrentou o bom e o mau das
insónias das madrugadas, para dar à Humanidade um presente sob a forma de livro.
Nunca
o fazemos pelas inúmeras razões associadas ao difícil processo que vai da
génese da ideia à fixação da letra impressa sobre o papel em branco. É uma
gravidez seguida de parto e este longo e intrincado percurso impele-nos ao
respeito e à valorização inevitável do esforço alheio.
Ou
seja, ainda que um livro fosse um soberbo fracasso criativo – que os há,
evidentemente, e tê-los-emos sempre enquanto as voltas em redor do Sol não
pararem – ainda que um livro fosse um soberbo fracasso (dizia), uma invencível
generosidade presente na alma de todos e cada um de nós, impediria de desfazer
à pedrada e aos pontapés o trabalho que outro pregador de ideias escritas andou
a fazer.
Portanto,
deixo claro logo de início, que não me ouvirão maltratar a acção e o labor de
longas horas subentendidos no produto que o Gociante Patissa oferece aos
angolanos que lêem neste sábado de uma Benguela invadida até às cavernas por
forasteiros de toda a índole.
E
nada disso acontecerá não pelo tal ditame aludido sobre o “politicamente
correcto” das palavras que se devem dizer nos actos de apresentação dos livros
que se escrevem, mas por uma razão diametralmente oposta: este livro é um
portento, é um pequeno-grande tesouro, é filigrana de luxo montada com palavras
muito finas e pequeninas, desenhadas sem pressa nem ansiedade, à procura de um
espaço de glorificação da Literatura como arte de requintada elevação e
nobreza.
Tenho
de vos confessar que me deu imenso prazer deslizar da primeira página até à
número 97, a última, e são ainda muitas as imagens que guerreiam entre si na
minha cabeça, desejosas todas elas de palco, de um direito disputado ao
milímetro, para serem as mais presentes.
Um
livro de crónicas tem, felizmente, esse condão. Porque se monta com relatos que
representam cada um deles um momento específico – um episódio, uma evocação,
uma viagem, uma experiência, uma dor, uma celebração, uma piada…- torna-se
fácil ao leitor armar no seu imaginário réplicas a papel químico ou mil milhas
distanciadas daquilo que o autor criou, com as palavras que escolheu e as
emoções que selecionou.
Na
verdade escrever crónicas é um exercício de convite a outros para que as
escrevam também connosco, arrastados por esse helán invisível mas que todos
percebemos que está lá no momento em que nos deliciamos com a leitura e os
relatos começam a parecer-nos episódios familiares, experiências com todas as
probabilidades de terem sido vividas também por quem apenas as vive na leitura.
Parece um trava-línguas para rasteirar incautos num qualquer exercício
acadêmico mas é, de facto, a simplicidade de uma certeza óbvia que os cronistas
conhecemos desde sempre e os apreciadores do género confirmam que acontece sem
qualquer esforço suplementar de sua parte.
Pois
bem: Debruçando-nos sobre as particularidades da obra que nos congrega esta
tarde neste magnífico espaço de Benguela…
Temos
em mãos Trinta e Sete crónicas escritas pelo autor no período que vai de 2006 a
2014 e que, como normalmente acontece neste género, foram agora recolhidas,
compiladas, arrumadas, para terem o formato de livro. Aparecem agrupadas em
três capítulos, nomeadamente Viagens; Por Dentro da Nossa Gente e Na Via.
Posso
assegurar a todos aqueles que possuam sensibilidade para se enternecerem com as
estórias comuns que fazem os nossos percursos enquanto cá andamos, que têem
leitura para alegrar as vossas vidas.
Vão
encontrar relatos feitos com o perfeccionismo que se exige aos cronistas, sendo
notável a capacidade demonstrada pelo autor em contar em pouquíssimas linhas
estórias completas. É esse o grande mérito da crónica, é esse o grande desafio
de quem cultiva o género, é esse o triunfo do livro que esta tarde chega ao
mercado literário angolano.
Temos
muito por onde pegar, num pacote de relatos que nos ajuda a conhecer o Gociante
Patissa – para quem o encontro pela primeira vez só agora acontece -; a
conhecer melhor o Gociante para quem o traz na memória de outras tribunas, como
os blogues que anima no amplo mundo da Internet, designadamente o angodebates e
o ombembwa ou a ir pensando em conhecer o menino escritor do Bocoio para
aqueles que vão ouvir falar do evento desta tarde por aí, pelas rádios, pelas
redes sociais, no passa-a-palavra das praças a céu aberto, dos bancos da
universidade ou das mesas de bar.
Direi
que embora os capítulos por que se subdividem os textos sejam três e Viagens
seja apenas um deles, em bom rigor a ideia de viajar estende-se por todos eles.
O modo como uma crónica nos entra pelos olhos e se ocupa do nosso imaginário
nos labirínticos meandros do cérebro, é sempre uma viagem. O leitor cola-se às
mesmas asas com que voa o cronista, sobe
e desce com ele no infinito espaço que ele percorre, seja na glorificação dos
momentos festivos, seja no recolhimento lutuoso das horas tristes.
As
crónicas, para serem belas, devem contemplar também o ingrediente humor.
É
justo que vos adiante que quem gosta de uma boa gargalhada, tem mesmo de se
agarrar às asas do Gociante e fazer o voo divertido com ele. Eu não me coibi e
acreditem que ainda oiço, presas algures no espaço, as gargalhadas que soltei
quando, no texto que acredito seja das maiores entregas de humor de toda a
obra, me vi infiltrado naquele quarto da página 55 onde um cliente e uma
prostituta têm um diálogo de antologia sobre a maneira como fechariam as contas
depois de cumprida a relação contratual efémera. Vou partilhar com todos nesta
plateia estes momentos supremos, que são uma inequívoca demonstração do modo
tão belo e criativo como autor escreve:
“Em
coisa de minutos, Janota tinha uma rapariga, expedita vendedora de orgasmos
simulados, e um canto para o labor e o sabor, não sem antes ficar claro o
preçário. A menina fê-lo chegar à China por alguns instantes. Ora, completada a
viagem, surgia um tipo de conversa mais ou menos imprevista para aquele
segmento de negócio. (Pergunta o Janota): “E agora, como vamos fazer? Posso
pagar com cartão?”.
A
rapariga olhou para ele, como quem diz, “caramba!, está aqui um espertalhão”. E
antes mesmo que ela emitisse uma palavra, o cliente continuou justificando-se:
“Sabes como é que é. É fim de semana, a função pública pagou. Já circulei pela
cidade e cercanias, mas nenhum aparelho tem dinheiro. Mesmo a nível de
macroeconomia, honrar os salários dos professores é um caso sério, já que eles
não produzem como tal. É um sector nobre, muito importante, mas pobre. Com os
militares é a mesma coisa. Não sei como vamos fazer, sabes? Eu gosto de pagar
as minhas contas, acontece que não consigo tirar dinheiro do banco”.
A
rapariga ouvia, franzindo progressivamente a testa. Pensava por dentro : “este
gajo não quer com este monte de palavras que no final fique tudo por um crédito
sine die, não?
-
Doutor, pela próxima, quando é assim, avisa antes. Estás a ver se hoje eu não
trouxesse o TPA, íamos mesmo se pegar nas camisas. E até não fica bem. Vá, dá
lá o cartão multicaixa. Hôko!, assim também querias quê?!”.
O
final foi feliz para o professor Janota, uma vez que a menina, sendo
profissional com visão empreendedora, tinha a sua máquina de pagamento
electrónico na mesma bolsa em que guardava os preservativos, pensos e
lubrificantes íntimos, não tendo sido necessário, como ela mesma disse, «se
pegar nas camisas». Como diria o ditado, para um esperto, esperto e meio”.
-------------------
Minhas
Senhoras e Meus Senhores,
Este
livro é tão bom e tão convidativo que dá vontade de o descascar todo e
oferece-lo como uma donzela de passerelle para que se deliciem logo aqui. Mas
não. Esse é um direito que vos assiste, levem-no a tiracolo, para a praia, para
as areias quentes do Atlântico, para a Baía Azul, para os campos de futebol,
para as esplanadas, para as sombras benfazejas da Restinga, no Lobito….para
todo o lado, mas levem-no.
A
ideia é que o leiam mesmo; que descubram
o Gociante Patissa, que apreciem alegremente o tão bem como ele escreve, mesmo
quando seja para relatar episódios tristes como a crónica que dá título ao
livro, a última por sinal. Que caminhem felizes do princípio até ao fim; que
viagem para os Estados Unidos e se intriguem com esse hábito feio de não se
cumprimentar ninguém nos elevadores americanos e terminam a fantástica passeata
com uma homenagem ao agente Kalú, que frequentava o segundo ano do Curso de
Direito na Universidade Jean Piaget e numa noite de azar, no cumprimento do
dever, partiu precocemente devido à imprudência de um desses assassinos à solta
das nossas estradas. Partilhem a dor de todos, dos familiares, dos amigos, dos
colegas, pelo agente de trânsito Kalú. Inerte ficou o apito, que não mais se
ouviu.
Tenho dito! Benguela,
31 de Outubro de 2015
0 Deixe o seu comentário:
Enviar um comentário