Um
país rasurado. É capaz de ser mesmo esta a mais expressiva fotografia para
definir o que foi Angola em 2015, conforme nos sugere a voz do nosso povo
numa alegoria registada ontem ao andar pelos subúrbios da Catumbela.
Dediquei-me
ontem a mais um exercício de reencontro com o meu passado que, para quem não
passa da casa dos trinta anos, só pode ser recente. Escolhi radiografar a via
alternativa à estrada nacional número cem, aquele troço que vai da Catumbela à
Kalumba. Só poeira e sacudidelas. Nada mais lembra o asfalto do tempo colonial,
nem a hibernada promessa da sua reabilitação há quase uma década. Mas conduzir ali,
olhando pelo outro lado da moeda, a par do suplício de ver o carro envelhecer
vários anos por minuto, tem o seu lado altruísta: dá de comer o mecânico e o
vendedor de peças.
O
último dia do ano é sempre um acontecimento em si, pelo que estranho seria
estranhar a agitação social. O ponto mais crítico é logo no início do troço, no
desvio antes das bombas de combustível ao lado do cemitério. Clientes e
vendedores de legumes dão vida ao pequenito mercado informal da berma, estreitando
ao mínimo possível a via, como quem diz ‘atropele se quiser’. São 15h30 e o Ano
Novo é já ali ao dobrar da esquina.
A
condução faz-se devagarinho, muito abaixo dos medianos 30 km/h actuais, num
troço de 6 Km que frequentei durante seis anos lectivos a pé. Já agora, usando do
direito do escritor ao egocentrismo, depois de ouvir um veterano reivindicar
investimento a uma aldeia, por ter sido ali circuncidado… peço atenção a esse
troço pelo seu contributo na história sócio-económica da província de Benguela.
Posto
no Kambambi, o olhar à esquerda é instintivo. Aquelas lúgubres paredes de
tijolos desenterram felizes memórias do colega Cigano, dono de uma invejável bicicleta,
que ainda na 7.ª classe (década de 90) faleceu num incêndio a meio da noite. Avancemos.
Ao passar pelo bairro Akala e o respectivo desvio que dá para o Alto-Niva, os
efeitos da crise económica são indisfarçáveis na pacatez de moradores e
transeuntes. Noutras épocas, dava-se tudo a ver pela confluência de altas músicas,
entre residências, barracas, lanchonetes e cantinas. Outro indicador de
boa-vida durante a quadra festiva é ver gente trôpega, de ébria, desde as
primeiras horas do dia. Eram já 16h00, e por acaso nada vi.
A
minha jornada teve de ser interrompida já dentro do bairro Santa Cruz (que me
viu crescer). Não podia avançar depois da igreja Católica, tal é a má condição do
caminho. Pretendia ir até à cruz implantada por colonos madeirenses e que deram
nome ao bairro, um bom miradouro para fotografar o Estádio do Buraco e outros
ângulos panorâmicos.
De
tudo o que vi, foi sugestivo um letreiro. Na inocência de um morador, se calhar
alheio à profundidade semiológica do gesto, estava uma fiel miniatura do estado
de alma do país. À inscrição original «RUA DA PAZ», estampada há vários anos,
juntou-se uma enigmática rasura abrasileirada: «Não tem como, a crise afectou».
Se afectou a rua, a paz, ou ambas, fica para o critério de quem lê. São paródias
que o povo traça.
Já
num registo mais objectivo, pelo desempenho dos mais variados sectores (político,
económico, justiça, cultural, social), a imagem do país da paz saiu-se garantidamente
rasurada.
Gociante Patissa. Benguela, 1 Janeiro 2016
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