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Ao contrário da tendência que se assiste nas últimas duas décadas, a da
consagração do jornalismo ou estrelato de cabine, a reportagem é o género
jornalístico mais completo. Pelo menos assim diziam alguns manuais de
jornalismo que andamos a devorar ainda na década de 1990 do século vinte. Então
porquê?
Porque a reportagem carrega um pouco de
crónica, outro pouco de notícia, mais outro pouco de análise, e mesmo opinião,
onde o estilo do autor faz a diferença dentro da mesmice que seria a redacção
de só dar resposta literal a «O quê, Onde, Quem, Quando, Como e Porquê». Repórteres
há vários, incluindo os que a gíria jornalística em rádio e TV trata por “mudos”,
convencionalmente afastados do microfone devido a debilidades na dicção, na articulação
ou no domínio da língua de trabalho. Estes fazem a recolha e depositam o material
na Redacção, cabendo ao editor indicar quem “põe a voz na peça”.
Como é de imaginar, é nas situações
adversas que o verdadeiro profissional emerge. O estilo, o faro, o sentido de
persuasão e a resiliência costumam ser determinantes na hora de arrancar da
fonte aquela cirúrgica informação, parecer ou estado de alma, seja a propósito
do facto do dia, seja uma radiografia social de determinado grupo, entre a
interminável lista de motivos de cobertura.
Ontem, ao ouvir o noticiário vespertino
da Rádio Lobito, vi-me obrigado a fazer uma vénia ao trabalho do repórter
Carlos Marques (que não faz parte dos “mudos”), numa radiografia pelos bairros
do subúrbio do Lobito, visando auscultar os moradores sobre a ausência (já se
passou da condição de falhas) de energia.
A dado momento, surge um impasse. Dois interlocutores revelam-se agastados, não acreditam em mais nada, nem em ninguém. Já por lá tinham passado várias equipas, a da própria companhia eléctrica inclusive, mas nada de resolver o problema. Nestes casos, é sobre o repórter que o cidadão descarrega o rancor, o que exige um grande sentido de tacto para a necessária isenção e levar o interlocutor a falar para o microfone.
O ponto mais alto de toda a reportagem, a meu ver, dá-se na entrevista a uma anciã, voz trémula, aparentemente doente. A caminho da terceira pergunta, a anciã diz-se pouco confortável, talvez a cabeça a chatear. Instintivamente, o repórter flexibiliza o registo do diálogo, abandona a língua oficial e fala a língua materna da interlocutora, o Umbundu. Ela até já falava com o fôlego redobrado, discurso a fluir impecavelmente.
Mesmo sendo bilingue, um outro repórter desistiria,
na mania das "finuras" e exclusão de classes que grassam na comunicação
social, até porque a estação tem uma Editoria de Línguas Nacionais. O Marques,
não. Fora da pauta, mostrou saber do valor profundo da língua na vivência do
cidadão comum, entre a cultura e a sociolinguística.
Ora, uma vez ganha a confiança e vendo
que o repórter se identificava com ela, vieram revelações marcantes sobre o
modo de vida nos bairros emergentes, onde a energia falha, o combustível foge
do alcance para alimentar o gerador, sem falar das pilhas que se esqueceram de alimentar
a lanterna. O grande medo é que a noite dure para sempre.
Gociante Patissa, Benguela 29.01.2016
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