(...) Uma metade da arena estava recheada de amuletos, e é até redundância destacar isso. Incomum mesmo era o repertório que havia na outra metade. Num improvisado andaime, tábua sobre duas pilhas de blocos de cimento, que não merece sequer o nobre nome de prateleira, havia livros. Uns duzentos talvez, com os vértices carcomidos e várias camadas de poeira. As folhas ganharam do tempo e da falta de generosos leitores a cor do café e um mofo que só visto! “Esse kimbanda, que certamente não sabe ler, devia ser levado a tribunal por asfixiar lentamente os books. Livros são para se ler, deixar os coitados na prateleira só para impressionar visitas é humilhar os autores”, teorizava por dentro Man’Toy. “Que ciência procura? Acaso as almas do outro mundo vêm ler, como os pais fazem para adormecer uma criança?”
— Filho, depois deste banho, como você não conseguiu xinguilar, duas horas de batuque, é esperar pente da kianda. Como veio, é bom. Já vi bué que quer ser ngweta. Pedir no outro feitiço para ficar rico é pedir lume no curral aos cabrito, num’tem. Mas as pessoa num aprende. É terra do milho e da perdiz. Pássaro num para de dar cabo do milho, milho sempre a crescer. O que damos é sorte, da mãe kianda. Tem um conto que num conto a pessoa quarquere. Tem mistério. Anos e anos não fica velha, gente num entende ainda porquê. No tempo mais andico, os rei tudo queria manter kianda, porque é bonita. Mas eu sei que não é só isso, era para roubar segredo de viver para sempre, num envelhece, num doence. Rei da Lunda jogou no alto mar quatro navio cheia de diamante para conquistar kianda. Nada. Rei do Transval mandou cinco navio d’ouro. Nada. Rei de Cabinda prometeu tudo dinheiro do petróleo. Uns fala que Rei d’América trouxe quilos e quilos de democracia, um produto refinado lá. Mesmo assim, nada. Muito rei no mundo jogou tudo no mar, kianda recebe, só num aceita ninguém. Num tem como recramá, faz tudo na escuridão. Veio tempo. Tudo pretendente num vive mais. Kianda tem os fundo. Ainda num nasceu homem dono dela. Só tem gente que kianda escolheu para madrinha. Cada ano, kianda aparece quatro vez, este ano já veio três. Ngana Zambi num mi deu filho homem, caporquaso qui num m’intressa ter mais os benji, ‘tou ‘mbora velho, filho. Duas mulhere na minha casota. Se vem gente que quere mbora sorte, quê que custa ajudar? Chegas na praia às duzoito hora, fica de cócoras sem se mexer, abre bem os olhos, a Sereia vai te aparecer antes de cair a manhã.
— Só isso, mestre?!
— Sim, mas tem que ficar atento, porque kianda não tem paciência, fica uns segundos à tua frente, e se não vê sorriso, acha desprezo e volta no fundo do kalunga.
De manhã, Man’Toy regressava, cabisbaixo, à arena do kimbanda. Sua expressão corporal rogava por uma segunda oportunidade.
— Paizinho mestre, a kianda não apareceu.
— MENTIROSO!!! — exclamou, histérico, o kimbanda. — Conta lá! Que viste às duas horas quarenta e cinco minutos?
Man’Toy não respondeu. Eventualmente esteve a ressonar na referida madrugada, sonhando estar confortável, sobre a cama da areia, enquanto as horas caminhavam.
— Não gosto doente teimoso. Nunca vorta mais! SAI MBORA!!!
Man’Toy carregou durante meses o peso do fracasso, e sobretudo a culpa, por não ter aguentado, de cócoras, uma única noite acordado. Mas não desistiu de caçar uma vida estribada, afinal já esteve tão perto! Decidira atribuir o fracasso à fraca pedagogia do kimbanda e à matreirice da kianda, criticando desta última a forma nada igualitária de escolher afilhados. Afinal, se o próprio kimbanda disse que a kianda conseguira passar a perna a réis e soberanos de forma recorrente, que lhe custaria tramar um simples kamundongo? (...)
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Amo muito este livro, o problema é que perdi ele e não consigo baixar em pdf
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