"Partiu do Huambo dia antes do troar dos canhões, uma sorte providencial mesmo, só que não se conseguiu livrar tão facilmente assim da fumaça da pólvora. Ia o cessar-fogo no segundo dia, quando o camião chegou ao Lobito. Corria o primeiro semestre de 1993.
À chegada, António Veremos testemunhou a mais voraz anarquia de sempre, a de saquear tudo, mormente no centro urbano. Disbundar, era esse o verbo. Em quase duas semanas, as pessoas cuidaram de açambarcar tudo, tornando-se difícil distinguir os escombros da guerra civil (de 1975 a 1991) das ruínas da disbunda (uma semana mais ou menos). E não faltaram flagrantes hilariantes. Houve quem roubasse monitores de computador, confundidos com televisores a cores, algo raros na altura… e até sanitas, com autoclismo por carregar, andaram à cabeça para negócio.
Era tentação temerária ir à disbunda, cujo fim custava calcular. Uma anarquia que desmentia a existência de forças da ordem, que atravessavam um défice de recursos humanos, dado o recente processo de desmobilização. Havia assassinatos impunes, tanto por armas de fogo, a granel em posse de civis e ex-militares, como por arma branca.
Veremos quase desfaleceu ao tomar conhecimento da tragédia na Tintas Cin. Custava-lhe afastar da imaginação o estertor de conterrâneos sobreviventes das escaramuças, porém impotentes diante do incêndio que os engoliria em fracção de segundos, um incêndio resultante da imprudência de quem entendeu beijar o cigarro no armazém de produtos inflamáveis. No momento em que a Rádio Benguela passava tal notícia, Veremos passava pela fábrica de montagem de electrodomésticos, no bairro da Kanata, onde conseguira disbundar caixinha de duzentos botões de roupa".
In «Não Tem Pernas o Tempo», pág. 69.
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