João Serra (in Facebook) |
Nota: Foi com tristeza que me chegou por telefone a notícia da morte (súbita) do jornalista João Serra, em Luanda, na noite de domingo, 18/08/13. Fui por ele entrevistado sobre o meu trabalho literário no passado dia 12/08. Seguiu-se um questionário por-email para complementar o artigo que publicaria provavelmente no Jornal Cultura (ou no Agora). Só me resta guardar boa memória do pouco contacto que tivemos. Uma das passagens que retive dele é: "As pessoas devem olhar para um gajo e pensar que está velho. Estou velho é para o que não quero, para outras coisa estou bem vivo". Seguem-se as perguntas e as respostas ao questionário que a morte guardou.
João Serra (JS): Este teu mais recente livro “Não tem Pernas o Tempo” muda alguma coisa em relação aos dois anteriores, que são de poesia e romance?
Gociante Patissa (GP): Bem, este novo livro muda sempre, no sentido de marcar a minha entrada para a narrativa um pouco mais extensa, portanto num género diferente. O primeiro (Consulado do Vazio) foi de poesia, o segundo (A Última Ouvinte) uma coletânea de contos.
JS: O título desta obra não parece ter ligação visível com o texto do livro. Ou estou enganado?
(GP): O título representa basicamente atribuir ao discurso do personagem Man’Toy (que mais tarde passou a chamar-se António Veremos), como se a presenta na última linha do último capítulo, verso de um poema também meu, que a seguir reproduzo.
NA TEORIA DO RESULTADO
O reencontro
mesmo com a prisão
molha
na largura dos olhos
o barro p’ro novo sol
Não tem pernas o tempo
seriam longas
ou curtas demais
Resumindo, tem que ver com o facto de se tratar de um romance suspenso no tempo e em busca de um quase improvável reencontro.
JS: Quais são os próximos títulos que tens na forja? De que géneros te ocuparás a curto e médio prazo?
GP: Livros no prelo e com previsão de sair em 2013: Guardanapo de Papel (inédito, poesia com edição em curso pela NósSomos. Lisboa, Portugal); Fátussengóla, o Homem do Rádio que Espalhava Dúvidas (contos, por uma editora de Luanda)
JS: A literatura para ti é um meio ou um fim? Apenas escrever não garante sobrevivência financeira, salvo em alguns casos de grande sucesso. Situação de vendas?
(GP): Considero-me um bicho que nasceu para comunicar e criar, ao que se junta a missão de contribuir para deixar escrita parte que me for possível recolher e tratar em termos de tradição oral africana. O primeiro livro (Consulado do Vazio), que saiu por auto-patrocínio, permitiu arrecadar pelo menos 60% do investido, embora estivesse sempre claro que se trataria de fundo perdido. Falar do segundo (A Última Ouvinte) é complicado, uma vez que para Benguela, o único lugar em que se fez lançamento, mais não vieram do que duzentos exemplares, já esgotados. Neste último, nos dois actos de lançamento, arrecadamos cerca de 130 mil kwanzas, quando as estatísticas há 10 anos indicavam o litoral de Benguela como tendo acima de 4 milhões de habitantes. Portanto, há que ter emprego convencional para o sustento.
JS: Tens influências especificas quanto a outros poetas e narradores?
GP: Geralmente, fixo textos, não propriamente nomes. Gosto de vários textos específicos de vários autores, é difícil gostar-se de toda a obra. Agora, para mim, o escritor vai além do produto, conta também o seu papel na sociedade enquanto cidadão. De tal sorte que admiro muitos, antes mesmo de tomar contacto com o seu trabalho. Há textos de João Tala, Rodherick Nehone, Carmo Neto, António Lobo Antunes, Gabriel Garcia Marquez, Sidney Sheldom, Viriato da Cruz, Raul David, Manuel Rui Monteiro, por exemplo. Confesso que mais facilmente me atraem narrativas ou mesmo poemas que encerrem não apenas a preocupação estética, mas também a recolha de elementos étnicos africanos (de forma construtiva, não necessariamente como exotismo). Incluiria Uanhenga Xitu, José Samwila Kakweji, David Capelenguela, Abreu Paxe, entre outros.
JS: Descobriste a escrita e a literatura ou foste descoberto por elas?
GP: Diria que tive sempre uma queda pela disciplina de língua portuguesa, sendo que as maiores notas ficavam-se a dever às redacções. Mas tudo começa em finais 1995 quando frequentava a 7ª classe. Morava no bairro da Santa Cruz, no Lobito, e estudava na escola do 3º nível dos bambús, na Catumbela, caminhando a pé diariamente cerca de 12 quilómetros. Num destes dias, "fuguei" às aulas. Ia passar pela administração comunal da Catumbela quando uma carrinha branca parou em minha direcção. Era a reportagem do "Comboio da Amizade", programa infanto-juvenil da Televisão Pública de Angola, delegação de Benguela. Queriam saber onde ficava a escola dos Bambús, e eu disse-lhes que estava a vir de lá. Subi na carroçaria para indicar o caminho e fui entrevistado. E mais, participei ainda no concurso de quem devorava mais rápido um gelado (no frio de Julho). Ganhei, talvez mais por ser uma oportunidade de gozar daquele luxo. Aí fomos mandando cartas ao programa, até um dia ser em 1996 convidado a assistir às gravações. Surgiu ali a ideia de rabiscar um poema, com o qual fui filmado... Nunca mais parei.
JS: Quando é que isso ocorreu?
GP: Respondido na pergunta anterior.
JS: Esperas ir até quando e aonde na literatura?
GP: É um pouco complicado ter metas estanques quando se é mais ou menos principiante. Minhas preocupações prendem-se ainda com a divulgação e distribuição do meu trabalho. Mas devo reconhecer que vou tendo oportunidades incomuns para autores do meu tempo, sendo uma destas o facto de ter sido convidado para ser membro da União dos Escritores Angolanos. Isso dá-me possibilidades de crescer na interacção com grandes nomes da literatura angolana, bem como ter textos internacionalizados por via da tradução de contos incluídos em antologias em hebraico, italiano, entre outros idiomas. Gostaria, claro está, de um dia beneficiar de uma bolsa de criação literária que me permita estar mais concentrado na construção de um livro, já que trabalho em aviação e o ambiente de atendimento público em aeroportos ser estressante. Enfim, a literatura continuará sendo um compromisso meu, enquanto difusor da identidade também.
JS: Que dizes das novas gerações de literatos nacionais, falta lhes o que para seguirem em frente?
GP: Bem, a nova geração de autores reflecte também as debilidades do seu tempo, no que toca ao domínio da língua, à consistência (ou não) da sua cultura geral. Há um entusiasmo crescente, mas como disse recentemente um escritor que se evidenciou na década de 80, está difícil divisar uma geração mais ou menos a partir do ano 2000, o que há são valores isolados. Um dos aspectos que, quanto a mim, representam uma faca de dois gumes é o papel das novas tecnologias de comunicação e informação, bem como a ausência de uma editoria especializada para questões de crítica ou análise literária na imprensa. Por exemplo, quando a única referência que se tem, falo de jovens e adolescentes, é a poesia declamada aos holofotes e gravada em discos, corre-se o risco de se ter uma visão muito reduzida de literatura, confundindo-se a árvore com a floresta. Se antes era o debate, a tertúlia, hoje imperam a declamação e o “elogio”.
JS: E os antigos, qual o papel deles? Cita nomes.
GP: Penso que caberia aos antigos uma contínua identificação de mecanismos e estratégias para orientação metodológica dos potenciais autores, numa espécie de caminhada conjunta. É verdade que isso vem sendo feito, mas é pouco ainda. Há depois o velho problema da inconsistência dos paradigmas para um rigor na tal crítica, de modo a não impor preferências individuais ou de época e amizades como o único critério. E a continuar esse fosso entre os consagrados e os que titubeiam, receio qualquer dia virmos a ter uma nação de escritores a título póstumo.
JS: Fala um pouco do livro NÃO TEM PERNAS O TEMPO e dos anteriores.
GP: Obras publicadas: Consulado do Vazio (poesia), KAT - Consultoria e empreendimentos. Benguela, Angola, 2008. – com capa de Délio Batista; A Última Ouvinte (contos), União dos Escritores Angolanos. Luanda, Angola, 2010; Não Tem Pernas o Tempo (romance), UEA. Luanda, Angola, 2013
Primeira obra:
Em 2008, fiz uma colecção de poemas que vinha produzindo ao longo de 12 anos e publicamos o livro "Consulado do Vazio" (52 páginas). Por sugestão da editora local, KAT, a capa devia ser um quadro de pintura, preferencialmente de um artista local. Depois de várias promessas não cumpridas (de artistas até mais ou menos da minha geração), um amigo apresentou-me ao "tio" Délio Batista. Falei com ele às 9h00 da manhã, tendo recomendado ir ter com ele ao atellier por volta das 11h. Lá posto, deu-me um monte de fotografias para escolher a que me agradasse. Rapidamente, identifiquei o quadro "De Pernas Cruzadas".
Segunda obra
Quando publicamos a primeira, já eu tinha praticamente concluído um projecto de contos, mas sentia que devia sair por uma editora com maior visibilidade. Tentei em algumas, que nem se importaram em ler o material, já que nome de principiante não garante vendas. Ousei submeter o manuscrito à mesa de leitura da União dos Escritores Angolanos. Aquilo deu entrada na 5ª feira e, já na 3ª feira que se seguiu, recebi telefonema do escritor Adriano Botelho de Vasconcelos, na altura secretário-geral, a dizer que tinha lido durante o fim-de-semana e decido publicar, o que veio a ser o livro "A Última Ouvinte"(93 páginas). Foi uma enorme alegria! Já com a obra a sair da gráfica, e somada à primeira, estava completo o requisito básico. Fui na sequência convidado a ser membro, tendo tomado posse em um grupo de 12 novos membros em 2009.
Terceira obra
Entre 2003 e 2010, coordenei e moderei um programa de mesa-redonda radiofónica sobre cidadania, prevenção de conflitos e saúde pública, que incluía uma rubrica chamada "Nossa homenagem", onde apresentávamos em entrevista de perfil a história de sucesso de gente aparentemente simples. Quis sempre entrevistar um profissional do ramo funerário, para ouvir de sua justiça como é que se sentiam quando a sua actividade implica lidar com luto de alguém. Na verdade, nunca conseguimos interlocutor. Ficou-me sempre intrigada essa frustração. Foi então que em 2009, num evento festivo na União dos Escritores Angolanos, fiz uma fotografia a uma planta. A flor tinha uma luz radiante, mas o fundo era todo ele escuro. Ocorreu-me que aquilo tinha aspecto fúnebre... nasceram ali as primeiras linhas do que hoje é o romance "Não Tem Pernas o Tempo" (121 páginas), que terminei em 2011.
O livro é um retrato social que atravessa as últimas quatro décadas. A trama começa em Luanda nos primeiros anos de Angola independente com a perda de emprego de Man’Toy, motorista funerário que se viu tentado a consolar uma jovem viúva em pleno cortejo, gesto interpretado como assédio pela sogra desta. Mais tarde, na viagem de Luanda para o Bié, o autocarro em que seguiam acciona uma mina terrestre, resultando disso a amputação de uma perna ao personagem principal e o desaparecimento da namorada. O ano de 2002 e o fim do conflito armado vêm reforçar as esperanças de reencontro, entretanto dificultado por desconhecer o sobrenome da pessoa que procura.
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