"O homem contemplava do cais do Tamariz, com os profundos olhos de sua alma, o navio que descrevia a última curva do seu destino, a Restinga, o Porto do Lobito. Vinha dos lados de lá. Onde, exactamente, não interessava saber na altura, talvez também não agora. O certo é que Veremos estava quieto, estático mesmo, de pé, só olhando.
Era 4 de Abril de 2002. A televisão e a rádio transmitiam em directo a cerimónia de assinatura do Memorando de Entendimento do Luena entre o exército governamental e as forças militares da UNITA. Estava Angola, finalmente, vestida de sonhos e verdejantes reencontros. Na ponta da caneta nascia o mais afinado cantar das pombas. Mas o dia tinha um motivo ainda mais medular para Veremos: a sua filha, do casamento com a falecida Chiquita, completava o segundo aniversário.
Envolto num silêncio sublimemente engrossado pelo bater das ondas na estrutura de betão, o homem flutuava no auge da abstracção, longe das controvérsias da vida fora do oceano. Que magia se escondia na cena que contemplava? Seria das águas que se rasgavam com a aproximação do navio? Seria da maresia, ou era a sensação de voar, não obstante os pés estarem assentes num solo esquentado pelo sol do meio-dia?
Horas após o navio passar, o homem continuava capturado pelo mar, seguindo as acrobacias do peixe. Plenamente parado no tempo, nem fome nem nada. O sol retirou-se primeiro, antes das dezasseis horas. Depois foram-se os peixes. Mas Veremos sempre ali".
In «Não Tem Pernas o Tempo», pág. 94.
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