segunda-feira, 27 de novembro de 2017

EXTRACTO (homenagem póstuma a um daqueles amores dos anos de adolescência na esperança de um eterno descanso, todavia prematuro)

Na vida real porém não se podia gabar de tal valentia, se em causa estivesse o resgate de um amor interrompido pelos inoportunos dias infindos de guerra civil. Tinha praticamente acabado de contrair matrimónio quando o conheci, mas cá para mim continuavam a coabitar na sua cabeça a esposa e um amor elevado a um patamar platónico.
Linda tinha o dom de o deixar encabulado. Isso foi naquele tempo em que os rapazes se declaravam, plagiando esta ou aquela letra de música brasileira romântica, Roberto, Fábio, Miranda, Fafá, Camargos e companhia limitada, e aguardavam longos dias pelo sim da rapariga, ou então pela gravidez que não era sua. Naquela época, o ajudante de carpinteiro, Lukamba, vivia entusiasmo redobrado, um pouco por ter achado dicionário lá no serviço, velho, velho como o amor e que tinha ganho já a cor da madeira. Outro pouco do entusiasmo devia-se à intensidade dos sentimentos ou, no mínimo, ansiedade. Porém, quando chegasse perto da rapariga, as palavras fugiam.
— Você me procura, não fala quase nada… — disse-lhe, entre o carinho e o protesto.
— Bem, minha bem-quista, é que quando te vejo, sinto… eh, no peito… algumas espingardas.

A garota, a quem a diastema tornava ainda mais radiante, sorriu um pouco para não deixar de dar o ar simpático. Era bem capaz de nunca ter ouvido falar em espingardas (a guerra comia armamento de verdade, não espingardazinhas).

Alguma vez no tempo se fez inevitável a despedida com a certeira promessa de um breve encontro. Isso, digo eu, se as espingardas não explodissem no peito do rapaz. É que se uma já mataria, imaginemos várias explodindo no peito de alguém. Definitivamente, no amor é como na guerra.

Tendo isso ocorrido no século vinte, é escusado contabilizar o vácuo às eternidades. O mais recente beijo permanecia congelado em forma de carimbo estampado naquele bilhete de despedida, no gesto clássico de untar os lábios de batom e seguidamente beijar o papel. Eram dela os lábios no papel hoje carcomido, sobrevivente eterno algures na carteira de documentos, sem margem para dúvidas, apesar de evidente a diferença. Aquele bilhete tinha qualquer coisa de trágico. Nem mesmo a natureza floreada e perfumada do papel usado conseguia disfarçá-lo. E ele não evitava sorrir emparvecido, olhos radiantes e molhados, todas as vezes que seguiram à primeira leitura.

«Vou. Devo ir. Até um dia. Luanda é aqui perto», lia-se. «Guardo tudo, o que esqueci e o que devo lembrar. No outro dia, nessa mania de amar sob a chuva... lembras-te? Tem aquele dia ainda, entre a tua casa e a minha, que esticaste o laço da minha última roupa. Aquilo depois rebentou, tive que o levar embrulhado na mão. Como se não bastasse, o meu irmãozinho quase me obrigava a mostrar, pensou que eram rebuçados. Você!...»
Gociante Patissa, do conto Rua das Empregadas, in «O Homem que Plantava Aves». Penalux, São Paulo, Brasil, 2017
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