No campo das negociações com doadores internacionais, recordo com certa gargalhada
uma cena que tem tanto de caricato, como de puxar ao limite a adrenalina, num
impasse em que a parte mais vulnerável quase botava tudo a perder, no que
poderia pôr em causa a história de realizações da AJS (Associação Juvenil para
a Solidariedade), logo no começo, quando ela mais precisava para consolidar o
palmarés na gestão de orçamentos. Bem-vindo ao terceiro apontamento sobre as
curiosidades e memórias da AJS, desta feita para olhar para as virtudes e
defeitos na liderança.
De resto, em duas ocasiões, uma delas com contornos políticos, recebi
censura pelo “erro” de ter abdicado o poder, responsabilizando-me moralmente
pelas consequências negativas imprevisíveis da “sucessão”. Defendo entretanto que
em liderança, não basta aptidão e desejo de lá chegar, é preciso haver
legitimidade (represento a vontade dos associados?) e responder ao perfil que a
função requer.
A primeira “condenação” deu-se no encerramento de uma excursão de dois dias,
realizada pela Direcção Provincial da Juventude e Desportos na comuna do Chamumi,
município da Baía Farta, no ano de 2004. Fui indicado pelas autoridades para
discursar em nome dos excursionistas (cerca de 150). Era notório o ímpeto de
manifestar a insatisfação pelos erros crassos de ordem logística.
Militante da cidadania e participação, intrigou-me que partisse das
autoridades a escolha de quem falaria em nome das organizações juvenis. Sugeri,
então, irmos a votos, sendo o outro candidato o amigo Adérito Tchiuca, que se
havia destacado, tanto quanto eu. E recaiu a ele a legitimidade. Este, ao tomar
a palavra, dirigiu-se à tribuna de honra em tom e gesto ásperos. A passagem
mais regurgitada foi: “Esses mais-velhos estão cansados!”. E teve de ser o
Patissa o culpado pela afronta ao Exmo. Senhor Administrador Municipal, por “se
armar em maior democrata do mundo”.
Em segundo recebo censura permanente, enquanto fundador, por ter abdicado a
liderança da AJS. Vem dos mais variados segmentos da sociedade (membros da
organização, comunidade, integrantes de organizações parceiras, entidades
governamentais, etc.). Mas quando anunciei o fim de mandato, ao quinto
aniversário da organização, expliquei aos membros que se a organização morresse
em consequência da minha saída do cargo, então é porque ela nunca chegou a
existir. Até porque há uma história de sacrifícios, de ética e de abnegação,
para se chegar a consolidar a AJS, e esta história está nas actas, nas
correspondências, nos estatutos, nos registos fotográficos e nas pessoas ainda
vivas. O motivo tem a ver com o perfil. Tenho eu? É a pergunta que nos devíamos
fazer sempre.
O sonho era assumir a liderança durante o processo instalador e, logo que
se desse a consolidação, cooptar um membro com perfil mais cordato e diplomata.
O ideal eram dois nomes, o irmão Henrique Chissapa e o Edmundo Francisco.
Porque conheço as minhas virtudes e o potencial criativo, todavia suplantados
pelos meus defeitos. Falta-me tacto, habilidades de negociar, além de ser
frontal e com o tubo digestivo estreito demais para dar passagem a sapos. Foi
assim que em 2005, a Assembleia de Membros legitimou o sucessor natural e
indiscutível, pelo empenho dedicado à organização, pela aprendizagem e etc. Na retaguarda
mais directa da Coordenação Executiva destacava-se o César Menha, o eterno
Administrador Financeiro e exemplo de assiduidade, lealdade e gestão do
património.
Antes disso, no que respeita à vida interna e gestão de tensões, para
organizações que nasceram tendo como concreto apenas o inconformismo cidadão,
entre os defeitos de liderança aponta-se a vez que me dirigi aos membros por
missiva, pedindo um posicionamento claro de cada um face à embrionária ONG. Há
um momento na vida em que “mais vale uma minoria activa do que uma maioria
passiva”. A carta visava reforçar comprometimento ou facilitar a desistência.
Como é natural, não foi bem recebida e em resposta alguns membros anunciaram
desvinculação, tendo a reconciliação ocorrido poucos anos mais tarde na
sequência de algum trabalho de reparação do dano.
Retomando a situação caricata. Vivíamos dias de elevada expectativa pela
chegada de uma delegação do CREA/USAID para discutirmos a proposta de projecto
“Palmas da Paz”, que seria o maior orçamento até então, embora dado em géneros,
não em dinheiro. Recebemos um jovem americano, alto, ar estudantil. A proposta incluía
debates radiofónicos e debates e worskshops comunitários sobre reconciliação,
prevenção de conflitos no contexto pós-guerra. E ali residia a discórdia.
Defendia o doador, com base na experiência da sua realidade democrática, de
mais de duas centenas de anos, que os workshops não tinham impacto. Defendemos
que se tratava de realidades incomparáveis e que seriam tais actividades um
complemento de reforçar a cidadania, ainda mais tendo em conta o difícil acesso
ao ensino superior.
Já no alto do impasse, refilei nos seguintes termos: “É assim. Nós
elaboramos projectos nos quais os nossos membros e a comunidade se revejam; não
vamos pela beleza dos dólares!” E tão do fundo da alma vinham tais palavras que não
as consegui exprimir em inglês. O quadro sénior angolano que fazia de tradutor
perguntou ao americano se tinha captado. E realçou palavra por palavra.
Instantes depois, deu-se por encerrada a conversa. Levei a mão à cabeça. Tinha
mandado cerca de USD 40 mil para o ralo, tão úteis para a Associação,
acreditava eu.
Ao sair do armazém feito escritório, ali na “vila” do Bairro Santa Cruz,
cidade do Lobito, o ocidental pôs-se a gravar com uma máquina desconhecida até
então. Perguntei por que faziam aquilo e a resposta foi hilariante: isto é GPS,
estamos a catalogar as coordenadas dos escritórios cujos projectos aprovamos e
que vamos financiar. Era um SIM. Até hoje sorrio ao lembrar isso. Dava mesmo
para dizer que é a refilar que nos entendemos. Ainda era só isso. Obrigado.
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