segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Curiosidades e memórias da AJS (3) | É A REFILAR QUE NOS ENTENDEMOS

No campo das negociações com doadores internacionais, recordo com certa gargalhada uma cena que tem tanto de caricato, como de puxar ao limite a adrenalina, num impasse em que a parte mais vulnerável quase botava tudo a perder, no que poderia pôr em causa a história de realizações da AJS (Associação Juvenil para a Solidariedade), logo no começo, quando ela mais precisava para consolidar o palmarés na gestão de orçamentos. Bem-vindo ao terceiro apontamento sobre as curiosidades e memórias da AJS, desta feita para olhar para as virtudes e defeitos na liderança.

De resto, em duas ocasiões, uma delas com contornos políticos, recebi censura pelo “erro” de ter abdicado o poder, responsabilizando-me moralmente pelas consequências negativas imprevisíveis da “sucessão”. Defendo entretanto que em liderança, não basta aptidão e desejo de lá chegar, é preciso haver legitimidade (represento a vontade dos associados?) e responder ao perfil que a função requer.

A primeira “condenação” deu-se no encerramento de uma excursão de dois dias, realizada pela Direcção Provincial da Juventude e Desportos na comuna do Chamumi, município da Baía Farta, no ano de 2004. Fui indicado pelas autoridades para discursar em nome dos excursionistas (cerca de 150). Era notório o ímpeto de manifestar a insatisfação pelos erros crassos de ordem logística.

Militante da cidadania e participação, intrigou-me que partisse das autoridades a escolha de quem falaria em nome das organizações juvenis. Sugeri, então, irmos a votos, sendo o outro candidato o amigo Adérito Tchiuca, que se havia destacado, tanto quanto eu. E recaiu a ele a legitimidade. Este, ao tomar a palavra, dirigiu-se à tribuna de honra em tom e gesto ásperos. A passagem mais regurgitada foi: “Esses mais-velhos estão cansados!”. E teve de ser o Patissa o culpado pela afronta ao Exmo. Senhor Administrador Municipal, por “se armar em maior democrata do mundo”.

Em segundo recebo censura permanente, enquanto fundador, por ter abdicado a liderança da AJS. Vem dos mais variados segmentos da sociedade (membros da organização, comunidade, integrantes de organizações parceiras, entidades governamentais, etc.). Mas quando anunciei o fim de mandato, ao quinto aniversário da organização, expliquei aos membros que se a organização morresse em consequência da minha saída do cargo, então é porque ela nunca chegou a existir. Até porque há uma história de sacrifícios, de ética e de abnegação, para se chegar a consolidar a AJS, e esta história está nas actas, nas correspondências, nos estatutos, nos registos fotográficos e nas pessoas ainda vivas. O motivo tem a ver com o perfil. Tenho eu? É a pergunta que nos devíamos fazer sempre.

O sonho era assumir a liderança durante o processo instalador e, logo que se desse a consolidação, cooptar um membro com perfil mais cordato e diplomata. O ideal eram dois nomes, o irmão Henrique Chissapa e o Edmundo Francisco. Porque conheço as minhas virtudes e o potencial criativo, todavia suplantados pelos meus defeitos. Falta-me tacto, habilidades de negociar, além de ser frontal e com o tubo digestivo estreito demais para dar passagem a sapos. Foi assim que em 2005, a Assembleia de Membros legitimou o sucessor natural e indiscutível, pelo empenho dedicado à organização, pela aprendizagem e etc. Na retaguarda mais directa da Coordenação Executiva destacava-se o César Menha, o eterno Administrador Financeiro e exemplo de assiduidade, lealdade e gestão do património.

Antes disso, no que respeita à vida interna e gestão de tensões, para organizações que nasceram tendo como concreto apenas o inconformismo cidadão, entre os defeitos de liderança aponta-se a vez que me dirigi aos membros por missiva, pedindo um posicionamento claro de cada um face à embrionária ONG. Há um momento na vida em que “mais vale uma minoria activa do que uma maioria passiva”. A carta visava reforçar comprometimento ou facilitar a desistência. Como é natural, não foi bem recebida e em resposta alguns membros anunciaram desvinculação, tendo a reconciliação ocorrido poucos anos mais tarde na sequência de algum trabalho de reparação do dano.

Retomando a situação caricata. Vivíamos dias de elevada expectativa pela chegada de uma delegação do CREA/USAID para discutirmos a proposta de projecto “Palmas da Paz”, que seria o maior orçamento até então, embora dado em géneros, não em dinheiro. Recebemos um jovem americano, alto, ar estudantil. A proposta incluía debates radiofónicos e debates e worskshops comunitários sobre reconciliação, prevenção de conflitos no contexto pós-guerra. E ali residia a discórdia. Defendia o doador, com base na experiência da sua realidade democrática, de mais de duas centenas de anos, que os workshops não tinham impacto. Defendemos que se tratava de realidades incomparáveis e que seriam tais actividades um complemento de reforçar a cidadania, ainda mais tendo em conta o difícil acesso ao ensino superior.

Já no alto do impasse, refilei nos seguintes termos: “É assim. Nós elaboramos projectos nos quais os nossos membros e a comunidade se revejam; não vamos pela beleza dos dólares!” E tão do fundo da alma vinham tais palavras que não as consegui exprimir em inglês. O quadro sénior angolano que fazia de tradutor perguntou ao americano se tinha captado. E realçou palavra por palavra. Instantes depois, deu-se por encerrada a conversa. Levei a mão à cabeça. Tinha mandado cerca de USD 40 mil para o ralo, tão úteis para a Associação, acreditava eu.

Ao sair do armazém feito escritório, ali na “vila” do Bairro Santa Cruz, cidade do Lobito, o ocidental pôs-se a gravar com uma máquina desconhecida até então. Perguntei por que faziam aquilo e a resposta foi hilariante: isto é GPS, estamos a catalogar as coordenadas dos escritórios cujos projectos aprovamos e que vamos financiar. Era um SIM. Até hoje sorrio ao lembrar isso. Dava mesmo para dizer que é a refilar que nos entendemos. Ainda era só isso. Obrigado.

Daniel Gociante Patissa  | Catumbela, 27.11.2017 www.angodebates.blogspot.com
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